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As Condições Políticas para a ação governamental (página 2)

Simon Schwartzman

 

II

Diante de um Estado com estas características, como se estrutura a sociedade? Em parte, ela segue uma dinâmica própria, que não se explica nem se entende pelo que ocorre a nível político. O país passou da escravatura para o trabalho livre, por um processo dramático de deslocamento populacional do campo para as grandes cidades e de estímulo a imigração, desenvolveu um parque industrial de grandes proporções da região centro-sul, e não se pode dizer que tudo isto ocorreu por decisão ou intenção dos governos, ainda que o Estado neo-patrimonial tratasse sempre de influenciar ou condicionar estes processos. Do ponto de vista político, no entanto, pode-se observar que a sociedade brasileira tende a ser, em geral, dependente do Estado para a obtenção de benefícios, sinecuras, autorizações, empregos, regulamentos, subvenções. A outra face da dependência é a clandestinidade. Como o Estado pretende controlar tudo (sem, no entanto, conseguí-lo), comportamentos não regulados passam a ser vistos como ilegítimos, mas ao mesmo tempo aceitos de forma tácita e consensual: a economia informal, o jogo do bicho, as religiões populares, o contrabando, o poder privado em suas diversas manifestações, os sistemas familiares que se constituem à margem das normas e da moral estabelecida, Com isto, a vida quotidiana tende a ser desprovida de conteúdos éticos e normativos, uma situação endêmica de anomia cujas conseqüências ainda não foram plenamente entendidas por nossos cientistas sociais.

O caso da Igreja Católica é interessante como ilustração destas relações entre o Estado e a sociedade. O que é a Igreja, Estado ou sociedade? Na tradição portuguesa do padroado, transposta para o Brasil, a Igreja era parte do Estado, em uma simbiose na qual a religião cuidava dos ritos e da educação sem se intrometer, e na realidade legitimando, o poder político constituído à sua revelia. A elite política brasileira sempre foi muito mais racionalista, maçon ou positivista do que propriamente católica, e as vezes em que a Igreja desafiou o poder do Estado - como quando da Questão Religiosa no século XIX, ou durante o regime militar - a elite política e burocrática reagiu com energia.

Na década de 20 e 30 deste século a Igreja buscou, pela primeira vez, se constituir em movimento social e intelectual autônomo e capaz de influenciar decisivamente a política do país, agindo assim do lado da sociedade. Ela terminou, no entanto, cooptada pelo regime varguista, que lhe entregou o Ministério da Educação e lhe roubou, ao mesmo tempo, a bandeira do ensino privado, que só seria retomada, com timidez, no após-guerra. O caráter semi-oficial, mas subalterno, da Igreja Católica, contribui muito para o formalismo e a pouca convicção que caracteriza grande parte do catolicismo tradicional brasileiro, em contraste com a intensidade das formas mais espontâneas e "clandestinas" de religiosidade popular. A redescoberta da sociedade vitalizou os movimentos de Ação Católica nos anos 60, se prolongou no envolvimento da Igreja com as questões de direitos humanos nos anos de autoritarismo militar, e prossegue no envolvimento aparentemente irreversível de setores importantes da Igreja com os movimentos comunitários do campo e das periferias urbanas. Uma das facetas importantes desta redescoberta é a tentativa de incutir na vida social e comunitária um conteúdo ética e moral que se tornara impossível de estimular a partir da tradicional identificação entre a Igreja e a ordem política estabelecida. Os sucessos, as dificuldades e os conflitos internos que a Igreja vem experimentando neste processo refletem os dilemas da superação de uma ordem política autoritária e hierárquica e sua superação por formas novas de organização e participação social.

III

O quadro esboçado até aqui descreve, em linhas muito amplas, a situação brasileira até o inicio da Segunda República, em meados do Século XX, assim como alguns de seus desdobramentos mais visíveis. A partir daí a sociedade brasileira entra em grandes transformações, onde o que mais se evidencia é um processo de crescimento demográfico acelerado, que se faz acompanhar da intensificação dos processos migratórios do campo para as cidades. A economia rural mais tradicional e decadente, com sua combinação perversa de minifúndio-latifúndio, vai se esvaziando aos poucos, sendo substituída pelas grandes lavouras mecanizadas de exportação, pelas grandes extensões de criação de gado, pela expansão de uma agricultura e pecuária de alta tecnologia e voltados ao mercado interno, e assim por diante. Os antigos meeiros e posseiros vão perdendo suas raízes, imigrando ou transformando-se em bóias frias ou assalariados das grandes plantações de cana de açúcar e outras agro-indústrias. É um processo intenso e violento, acompanhado do deslocamento forçado da população e por conflitos pela posse da terra. Com tudo isto, os problemas brasileiros dependem hoje muito menos do que ocorre no campo do que o que ocorre nos grandes centros urbanos. O esvaziamento do campo permite sua modernização cada vez mais acelerada, a extensão do sistema previdenciário e da sindicalização ao setor rural, e outras transformações que fazem com que as diferenças entre campo e cidade no Brasil tendam a se reduzir.

A contrapartida do despovoamento do campo é o inchamento das cidades. A existência de "classes perigosas", setores populares que convivem com padrões altos de violência e ameaçam a segurança física das classes médias e altas, não chega a ser uma novidade no Brasil; ao contrário, estas "classes perigosas" tem sido uma constante na história do Rio de Janeiro, e constituem uma característica central de uma sociedade baseada no predomínio de centros político-administrativos desprovidos de adequada estrutura de emprego industrial. No entanto, os processos demográficos do pós-guerra acentuam este fenômeno, e levam ao surgimento de novas formas de organização "clandestina" das sociedades urbanas, que vão das poderosas máquinas de política urbana ao crime organizado, passando por associações locais de todo tipo, e sem que as fronteiras entre elas se definam com clareza. No Rio de Janeiro, que é onde este fenômeno se dá com maior intensidade, já é muitas vezes impossível dizer aonde acabam e aonde começam as organizações do jogo do bicho, o tráfico de drogas, as escolas de samba, os times de futebol, a polícia, os partidos políticos, a burocracia governamental, os donos de hotéis e os agenciadores de turismo.

O pós-guerra assinala além disto o surgimento de uma classe média urbana significativa, que busca se proteger nas asas do emprego público ou na segurança das profissões liberais, mas se volta também para as oportunidades comerciais e industriais proporcionadas pelas grandes concentrações urbanas. Esta classe média força, aos poucos, a expansão do sistema educacional, particularmente de nível médio, que é atendido pela iniciativa privada, e o de nível superior, que é inicialmente proporcionado de forma gratuita pelo Estado, passando depois a ser atendido também pela livre iniciativa. Consolida-se em alguns centros, além disto, uma indústria voltada para o mercado interno (e, na última década, também para o mercado internacional), que serve de base a um crescente proletariado urbano. É este último o setor capitalista por excelência da sociedade brasileira, que, como sabemos, só incorpora uma parte pequena das populações urbanas, e se concentra principalmente na região de São Paulo. É também nesta região que surge, de forma mais marcada do que nunca na história do país, um setor industrial internacionalizado.

IV

Estas transformações tão intensas não poderiam deixar de colocar em crise a relação de simbiose e dependência que havia se estabelecido no passado entre o Estado brasileiro e a sociedade civil. Entra em crise a administração patrimonial clássica, formalista, pesada, ineficiente e voltada para a distribuição de empregos e privilégios. O Estado agora é chamado a gerir com eficiência grandes aglomerados urbanos, proporcionar infraestrutura a uma economia moderna em expansão, regular um sistema financeiro extremamente complexo, e assim por diante. O antigo sistema corporativista, que implicava em um pacto de conveniência mútua entre o Estado em alguns setores mais organizados da sociedade, também entra em colapso: o número de participantes aumenta, os recursos e privilégios a serem distribuídos não crescem na mesma proporção. O "neo-mercantilismo" também sofre. Sua inerente ineficiência, os altos níveis de corrupção, tudo isto é aceito e tolerado quando a economia se expande, e o que uns ganham não chega a ser necessariamente retirado de outros. Quando os recursos se tornam mais escassos, no entanto, quando os mecanismos inflacionários de financiamento do dispêndio público colocam em risco a ordem econômica e social, aumenta a pressão por maior eficiência, racionalidade e previsibilidade das ações do governo.

Um dos setores onde a crise se manifesta com mais clareza é na previdência social. O mito de que o sistema previdenciário brasileiro é "um dos mais avançados do mundo" foi mantido por muitos anos graças à exclusão da população rural e ligada ao setor informal da economia de seus benefícios, e também à juventude e baixa expectativa de vida de todos, o que significava poucos velhos e poucas doenças degenerativas. Só assim foi passível planejar um sistema previdenciário que aposenta pessoas aos 45 ou 50 anos de idade e oferece atendimento médico ilimitado. Ainda que exista, certamente, muito espaço para o aumento da eficiência da previdência social brasileira, pela racionalização de custos, mudanças nas fontes de financiamento e nas formas de atendimento ao público, não há duvida de que sua crise econômico-financeira é extremamente grave, e deverá levar a profundas revisões quanto à maneira pela qual a sociedade brasileira espera, tradicionalmente, receber os benefícios do Estado.

Entra em crise, finalmente, o sistema político de cooptação. A organização de setores mais ativos da sociedade em corporações subordinadas ao Estado é um arranjo cômodo quando estas corporações são relativamente fracas e pequenas, e o Estado tem condições de transferir para elas alguns privilégios e benefícios. Com o tempo, no entanto, estas corporações crescem, aumentam seu poder de reivindicação, enquanto diminui progressivamente a capacidade que o Estado tem de atender a suas demandas. No período pre-64 o antigo Partido Trabalhista Brasileiro, que controlava tradicionalmente o Ministério do Trabalho, perdeu aos poucos o controle do sistema sindical do país, e parte da radicalização política havida naqueles anos se explica pelo esforço do PTB em não se alienar completamente da liderança sindical que lhe escapava. Esta radicalização do movimento sindical corporativizado fez com que as propostas de criação de um sindicalismo livre e desatrelado da tutela governamental (e das vantagens do imposto sindical) nunca encontrassem maior apoio nos meios sindicais brasileiros. Nos anos 80 são as corporações de classe média - funcionários públicos, professores, certas categorias de profissionais liberais - que desenvolvem padrão semelhante de radicalização.

Em síntese, os mecanismos que haviam sido desenvolvidos no passado para garantir uma ordem política estável se transformam, com o correr do tempo, em fatores de instabilidade e perplexidade. Como se adaptar aos novos tempos? Que formatos institucionais, legalmente definidos ou de fato, podem ser estabelecidos para substituir os antigos, em um pacto social mais aberto e socialmente mais justo?

V

A primeira reação à crise foi, como sabemos, a repressiva. Reprimiu-se, a partir de 1964, as demandas por participação política e o direito à reivindicação organizada de interesses. Não foi, desde logo, uma repressão neutra e generalizada, mas que beneficiou uns em detrimento de outros. A história dos 20 anos de governo militar mostra que, apesar de seu compromisso genérico com o que se pode denominar genericamente de "sistema capitalista", houve suficientes variações e contradições que fazem com que esta expressão, em si mesma, explique muito pouco. Tentou-se, em um primeiro momento, um modelo de racionalização capitalista mais clássico e ortodoxo, com o aumento da eficiência e redução do peso do Estado, criação de instituições capitalistas modernas (mercados financeiros, banco central autônomo, grandes conglomerados industriais e financeiros, descentralização administrativa, etc.), e internacionalização da economia. Se estas foram as linhas principais dos primeiros anos de regime militar, elas foram substituídas depois por outras mais ajustadas as tradições do Estado brasileiro: o crescimento do setor público, o lançamento de grandes projetos e programas sociais ambiciosos, como a da padronização e generalização da previdência social e a erradicação do analfabetismo através do Mobral.

Ainda que a discussão sobre os fatores que conduziram ao fim do regime militar ainda continue, é passível assinalar que a resposta desmobilizadora e repressiva à crise do antigo estado patrimonial continha em si mesma alguns limites bastante claros. Processos sociais tão amplos como os de esvaziamento do campo e super-povoamento das cidades são impossíveis de controlar, e os regimes militares nem sequer o tentaram. Obter legitimidade política e ideológica em um contexto de repressão e desmobilização é quase uma contradição em termos, que não pode ser superada pela simples manipulação de símbolos nacionais ou pelo uso mais ou menos competente dos meios de comunicação de massas.

Nada impediu, tampouco, e muitos fatores estimularam, o renascimento de velhos padrões patrimonialistas e neo-mercantilistas em um contexto político autoritário e repressivo. Analistas tendem a atribuir ao governo Geisel um projeto de desenvolvimento sócio-econômico e político definido, que deveria culminar no restabelecimento da ordem democrática em novas bases. O período seguinte, por outro lado, é normalmente reconhecido como aquele em que a apropriação privada da coisa pública mais se exacerbou, em um contexto histórico em que os grandes projetos do governo anterior entravam em hibernação ou eram abandonados. Em grande parte, esta diferença entre os dois últimos governos militares se explica pela mudança nas condições externas que afetaram os projetos governamentais (a segunda crise do petróleo, a crise da dívida, etc.); e, em parte, pelas diferenças pessoais entre as personalidades envolvidas. Mas o que mais chama a atenção não é tanto o contraste quanto a convivência relativamente pacífica entre padrões éticos aparentemente tão distintos, sugerindo que ambos fazem parte de uma síndrome comum, própria dos sistemas autoritários de base neo-patrimonialista.

O regime militar também chegou ao fim por um dinâmica de conflitos internos que tendia, inevitavelmente, a incorporar novos atores às disputas pelo poder, fazendo que, mesmo nos períodos de autoritarismo mais intenso, o setor civil do sistema político do país não fosse completamente desarticulado. A existência destas disputas internas, e a manutenção de canais abertos entre o Estado e setores da elite política e econômica é uma característica histórica do estado patrimonial brasileiro que o regime militar não chegou a destruir, e acabou por alimentar as contradições que levaram a devolução pacífica do poder aos civís.

A transição negociada entre o regime militar e a Nova República implicava na contenção dos ímpetos renovadores expressos pelo movimento das "diretas já" e pelo renascimento de certas lideranças populistas tradicionais e a entrega do poder a uma liderança civil mais tradicional e "confiável", capaz de se valer do populismo sem se deixar dominar por ele; e implicava também na contenção de algumas formas mais agressivas e arrivistas do poder econômico, em eventual aliança com os setores militares mais vinculados ao sistema repressivo e de informações. Buscou-se um novo equilíbrio entre Estado e sociedade que continuasse a dar primazia ao Estado, eventualmente modernizado e adaptado aos novos tempos. Apesar da reconhecida maestria com que este processo foi conduzido, permitindo inclusive que a aliança assim formada sobrevivesse à tragédia pessoal de Tancredo Neves, o fato é que a Nova República transformou-se em um regime frágil, sustentado quase que exclusivamente na inércia institucional e na troca de favores, ansiosamente pendente dos resultados das pesquisas de opinião pública, alimentadas de forma cada vez mais inadequada por ações de impacto de repercussão progressivamente menor, e administrando um calendário eleitoral que não governa totalmente e que parece exaurir quase todas suas energias.

VI

Esta visão panorâmica da evolução brasileira nas últimas décadas, e das frustrações trazidas pelo governo Sarney, permite sugerir algumas respostas à pergunta inicial a respeito da irreversibilidade ou não dos processos de abertura política e democratização que estamos assistindo. Uma das teses defendidas a este respeito é de que os anos de autoritarismo já teriam cumprido sua função, que seria a de realizar, a sua maneira, o processo de transição da economia brasileira de um sistema proto-capitalista para uma economia capitalista plena. Uma vez cumprida esta função, o autoritarismo já não teria razão de ser. É uma tese difícil de ser sustentada, para quem não acredita que exista um padrão uniforme de desenvolvimento a ser seguido pelos diversos países, e sabe que o entendimento de uma sociedade nem de longe se esgota na análise das transformações de seu sistema produtivo; ou, mais especificamente, que o Estado brasileiro tem características próprias, ligadas a suas origens patrimonialistas, que o tornam bastante distinto dos modelos dos países capitalistas ocidentais. Bastaria, além disto, uma simples visão da conjuntura econômica brasileira ao final da década de 80 - o problema da dívida externa não equacionado, a dívida interna quase que fora de controle, gastos públicos também descontrolados - para vermos que os anos futuros serão, certamente, turbulentos na área econômica, com inevitáveis repercussões ao nível político e social.

Uma outra tese, certamente mais complexa que a anterior, é o que poderíamos chamar de "tese do transbordamento". Basicamente, ela consiste em afirmar que o crescimento e a modernização da sociedade brasileira nas últimas décadas foi de tal ordem que os sistemas tradicionais de controle político da sociedade, pela cooptação das lideranças e enquadramento corporativista dos setores organizados da população, ou pela mobilização populista do eleitorado, já seriam coisas do passado, e neste sentido a volta aos padrões tradicionais de dominação de nosso Estado neo-patrimonial seria impensável.

Trata-se de uma tese somente em parte verdadeira. É certo que a parafernália de controles políticos e institucionais que conhecemos, em parte constituída nos anos do Estado Novo, está começando a se desmoronar, e a sociedade brasileira se organiza hoje em uma pluralidade de formas não previstas e dificilmente enquadráveis em qualquer mecanismo estável de dominação estatal. O que não é certo é que este processo significa a consolidação da ascendência permanente da "sociedade civil" sobre o Estado, superando assim, de maneira definitiva, nosso passado neo-patrimonial e autoritário. Para que isto fosse verdade seria necessário não somente que as estruturas tradicionais de dominação tivessem "transbordado" - que não deixa de ser um fato - mas também que a sociedade brasileira tivesse se tornado "mais madura" neste processo, e o Estado, mais competente - duas premissas bastante problemáticas.

VII

Teorias sobre a "maturidade" dos cidadãos costumam vir em duas versões, uma de tipo evolucionista, outra de fundamento mais religioso. A primeira destas versões consiste em afirmar que, na medida em que as sociedades se desenvolvem, é o povo se torna mais culto e educado, aumenta também seu nível de politização, seu grau de consciência política, sua maturidade. Como todas as teses evolucionistas, esta também tem duas vertentes, uma mais liberal, outra mais marxista e revolucionária. Pela vertente liberal, o processo de "amadurecimento" se relaciona basicamente com a educação a ser obtida nas escolas a ser transmitida pelas famílias. Na vertente mais revolucionária, o processo de amadurecimento político estaria diretamente relacionado com o desenvolvimento do capitalismo, que traria como conseqüência a transformação das antigas "classes em si" em "classes para si". Ambas teorias tem em comum a noção de que o amadurecimento político não se dá de forma espontânea e automática, mas é um processo evolutivo que depende de um trabalho constante e permanente de educação e proselitismo, tanto para que as pessoas "evoluam", na vertente liberal, quanto para que elas superem os condicionantes das ideologias hegemônicas e mascaradoras dos verdadeiros interesses, na segunda vertente.

As teorias de fundo mais religioso dispensam a evolução, e partem da tese que o povo é naturalmente bom, justo e sábio. O problema com o regime político brasileiro não estaria na "imaturidade" ou falta de consciência política do povo, mas sim nas manipulações das elites, que sistematicamente tratariam de escamotear a realidade e apresentá-la de maneira falsa e deturpada. O verdadeiro trabalho político não seria o de educar e catequizar o povo, mas sim o de desmascarar seus inimigos explícitos ou ocultos. Esta visão religiosa da sabedoria popular se manifestou com muita clareza na idéia lançada por alguns setores segundo a qual a Assembléia Constituinte de 1987 não deveria ser eleita pelos partidos convencionais, e sim formada, "diretamente", pelo povo. Havia a idéia de que os partidos políticos, mesmo nas condições de liberdade estabelecidas para as eleições de 1986, seriam necessariamente corrompidos e alienados; mas que o "povo", se pudesse se manifestar em sua pureza, poderia se expressar de maneira plena, fazendo com que o Brasil finalmente encontrasse o regime político de seus sonhos. O mesmo raciocínio foi utilizado nas eleições municipais de 1988.

Resultados de eleições permitem testar algumas destas teses, e neste sentido as evidências de 1986 e 1988 parecem muito contraditórias. Chamou a atenção, em 1986, tanto o fracasso dos candidatos mais ideológicos quanto o dos candidatos cuja principal base eleitoral fosse o simples poder econômico ou a identificação de classe. A eleição paulista poderia ter se polarizado entre o grande capitalista, Ermírio de Morais, e a liderança operária organizada no Partido dos Trabalhadores; no entanto, ela terminou sendo muito mais um conflito entre o líder municipalista Quércia e o arrivista Paulo Maluf. No Rio de Janeiro, a tentativa de polarizar as eleições entre "ricos" e "pobres" fracassou, levando com ela o candidato do PDT. Em Minas Gerais a polarização foi entre um político tradicional mas rebelde e outro de base populista, que contava com o apoio do governo do Estado. Entre os dois, foi punida a rebeldia. A vitória maciça do PMDB, alimentada pelo sucesso temporário do Plano Cruzado, foi, em sua maior parte, a vitória do governo federal. Em alguns casos, o voto peemedebista ainda poderia ser visto como voto de oposição aos remanescentes do regime militar; mas, em muitos estados, o peemedebista de hoje é o pedeessista de ontem, e o governo é sempre governo. As eleições de 1988, em plena crise do governo Sarney, mostrou resultados diametralmente opostos, com a derrota generalizada dos candidatos governamentais. Mas é bastante óbvio que este foi um voto contra "tudo isto que está aí", mais do que o resultado de um processo de amadurecimento ou "sabedoria" popular.

Sem pretender esgotar a complexidade e variedade dos resultados eleitorais, e pensando não só nas eleições de governadores, mas também nas proporcionais, é possível dar uma lista dos atributos necessários para que um candidato fosse eleito. A primeira é que ele conseguisse, de alguma forma, furar a barreira do anonimato, é se transformasse em um "mídia event", uma figura dos meios de comunicação de massas. É claro que dinheiro conta para isto, mas radialistas e comentaristas de televisão foram eleitos sem maiores dificuldades, assim como candidatos de pequenos partidos que souberam utilizar bem os horários gratuitos de propaganda eleitoral. O segundo tipo de candidato bem votado foi o que tinha uma base institucional bem estruturada: a polícia civil, um grupo religioso organizado. Alguns candidatos conseguiram boa votação ao se identificar com um ou dois pontos de grande apelo ideológico para a classe média, como os "candidatos da pena de morte" do Rio de Janeiro e São Paulo. Acima de tudo, no entanto, foram eleitos candidatos que, pela posição atual ou passada na máquina administrativa de seu estado ou município, conseguiram construir no passado redes de lealdades pessoais que agora se pagam, ou se renovam na esperança da continuidade. Para o eleitor que não fosse ligado aos meios de comunicação de massas, não fosse beneficiário de uma rede de favores públicos, não tivesse um tema que o identificasse fortemente com um candidato e nem tivesse um parente ou amigo concorrendo, as eleições majoritárias não chegaram a fazer muito sentido, o que explica o grande número de votos em branco. As eleições de 1986 significaram não só a derrota eleitoral dos candidatos ideológicos e programáticos, que tentaram basear sua campanha na problemática da Assembléia Constituinte, como também dos partidos que pretenderam a uma definição ideológica mais clara - o Partido Socialista, o Partido dos Trabalhadores e os partidos comunistas. As eleições de 1988, apesar da eleição de Luisa Erundina em São Paulo e outros candidatos de esquerda, não dsconfirma esta generalização, que foi apenas mascarada pelo voto de protesto. Em 1989 este voto deverá ir novamente contra o governo, tanto a nível federal quanto estadual; quem polarizará este voto, no entanto, é menos uma questão de ideologia do que de capacidade de manipulação dos meios de comunicação de massas, e de formação e transmissão de imagem.

O que esta análise suscinta revela é que a "maturidade do povo", tanto quanto sua hipotética sabedoria e bondade naturais, estão longe de proporcionar uma base sólida para a constituição de uma nova ordem democrática. Na realidade, o exemplo de outros países que lograram um sistema político-eleitoral estável revela que a questão fundamental não é a da "maturidade" do povo, mas a da natureza das instituições sociais, governamentais e partidárias existentes. Se estas instituições são bem constituídas e autônomas, elas conseguem traduzir as preferências eleitorais em mandatos políticos legítimos e regimes políticos responsáveis. O problema principal com os estados de base neo-patrimonial não é que eles mantêm o povo em situação dependente e alienada, mas, principalmente, que todas as formas de organização social que eles geram tendem a ser dependentes do poder público e orientadas para a obtenção de seus favores. O simples transbordamento das estruturas de dominação mais tradicionais, e a criação de novas formas de organização política e social, não garante que este padrão de comportamento não vá se reproduzir.

VIII

Em última análise, se o Estado é todo-poderoso, nada mais racional do que buscar seus favores e proteção. A crise atual do Estado patrimonial brasileiro, no entanto, revela que ele parece ter cada vez menos capacidade de atender às demandas que lhe são feitas, ou os interesses dos grupos que dele participam ou a ele se associam. Para usar uma expressão da moda, o Estado brasileiro enfrenta o problema da "ingovernabilidade" do país. A maneira mais simples de caracterizar esta ingovernabilidade é pensar que ela se coloca quando se dão simultaneamente duas condições; primeiro, o volume de demandas e expectativas que se dirigem ao Estado supera sua capacidade de atendê-los; e, segundo, quando o Estado não dispõe de força, legitimidade e competência técnica suficientes para hierarquizar estas demandas, postergá-las ou suprimí-las.

A primeira destas condições é comum a quase todos os países, e surge na Europa e nos Estados Unidos, por exemplo, na forma da crise do "Welfare State". A segunda, no entanto, nos atinge de maneira mais grave, ainda que não somente a nós. Esta situação foi descrita para a França de 20 anos atrás como a de uma "sociedade bloqueada", ocupada por grupos de interesse organizados ao longo de toda a estrutura social, e que tornam os governos imóveis e incapazes de agir. Em certo sentido, as sociedades bloqueadas são a culminação das sociedades corporativas, quando as corporações deixam de ser as partes manipuladas de um todo comandado de cima, e tratam, a partir da perspectiva de cada uma, comandar o todo deste baixo, sem conseguir, ou mesmo pretender, exergá-lo em seu conjunto. É disto, aparentemente, que estamos nos aproximando.

"Sociedades bloqueadas" não são, simplesmente, aquelas em que os mais ricos detêm o poder, e exploram os mais pobres. Elas ocorrem, possivelmente com mais força ainda, quando existem interesses organizados e poderosos em todos os níveis, dos donos das fábricas aos sindicatos, dos partidos políticos às associações de bairro, dos sindicatos de professores à academia de ciências, das corporações profissionais às universidades, dos bancos aos fazendeiros, do poder legislativo ao executivo e ao judiciário. Isto não significa, obviamente, que estas sociedades sejam igualitárias. O que significa é que cada setor tem seu pedaço de poder, seus direitos adquiridos, seus pequenos ou grandes privilégios (conquistados muitas vezes de forma árdua e prolongada), e não estão dispostos a abandoná-los. O bloqueio atinge seu ponto máximo quando os privilégios e as conquistas de cada um são transformados em direitos, escritos em lei, e garantidos pela rotina do judiciário.

Sociedades bloqueadas na riqueza são pesadas, pouco inovadoras, lentas, mas relativamente prósperas, harmônicas e não conflitivas. Disputas, quando ocorrem, são na negociação de ajustes e acertos marginais; conflitos, quando surgem, são contra os jovens, os estrangeiros ou radicais que perturbam a ordem tão penosamente conquistada, trazendo a ameaça do desconhecido. Este bloqueio, comum a quase todos os países da Europa, e incluindo os do lado oriental, começou a se desfazer com a crise do Welfare State e a ameaça da obsolescência tecnológica e industrial, ao qual se somou a impaciência das novas gerações com o apego de seus pais às seguranças do passado. Apesar dos custos e dificuldades evidentes, chama a atenção, na Europa, o ímpeto com que ocorre este desbloqueio, tanto através de lideranças políticas marcantes, de Tatcher a Gorbachev, quanto pelo surgimento de novas modalidades de estilo de vida e ação social, e quanto, finalmente, por um movimento aparentemente irresistível no sentido da integração e cooperação supra-nacional.

O Brasil do final da década de 80, no entanto, parece estar sendo bloqueado na pobreza. Já existem suficientes interesses criados e estruturados para paralisar a ação do Estado, reverter decisões e imobilizar governantes. Que estes interesses se mobilizem na forma de "lobbies" que operam às escondidas, "anéis burocráticos" que vinculam órgãos de governo a interesses privados, funcionários ou empregados de grandes empresas que fazem greve e paralisam a vida das cidades ou funcionários que conseguem equiparações salariais, promoções e estabilidade na justiça do trabalho; que eles venham cercados de ideologias deste ou daquele tipo, ou simplesmente se apresentem na nudeza do que são é menos importante do que eles significam enquanto implantação de bloqueios que impedem qualquer política pública de longo prazo, e diminuem progressivamente a capacidade de ação do Estado.

Levada a suas últimas conseqüências, esta ingovernabilidade pode vir a significar o colapso do Estado neo-patrimonial tal como o conhecemos, e a conseqüente destruição de todas as formas de dependência que a sociedade civil tem desenvolvido em relação a ele, a um custo social certamente muito alto. Esta situação limite dificilmente se colocaria, no entanto, já que o potencial repressivo de que o Estado dispõe tenderia a se manifestar muito antes que um colapso deste tipo se materializasse. A "ingovernabilidade" não é uma situação absoluta e extrema, mas pode se manifestar em graus e formas distintas, e países podem muito bem deslizar lentamente pela rampa inclinada do desgoverno sem maiores convulsões; é o que mostra o exemplo da Argentina nos últimos anos, assim como o de outros países latinoamericanos.

Os anos de regime militar serviram para mostrar que a ingovernabilidade não se resolve, simplesmente, pela força. Ela afeta com freqüência os regimes fortes, fechados e imunes aos controles da imprensa, da opinião pública e dos partidos políticos. O que a democratização mostra é que ela não basta para que a governabilidade seja instaurada. A experiência dos poucos anos da Nova República já mostra como algumas decisões e ações são certamente mais fáceis do que outras. Decisões grandiosas e de grande impacto, quando possíveis, são sempre as preferidas (veja o plano cruzado). Políticas setoriais e de longo prazo, no outro extremo, são quase impossíveis, pela paralisação provocada pelo trabalho continuado de interesses contrariados (reforma agrária, eliminação dos subsídios agrícolas, reforma administrativa, os próprios ajustes do plano cruzado). Ações aparentemente "técnicas", de pouca visibilidade pública, são em princípio mais fáceis de serem conduzidas. Mas, freqüentemente, seu caráter técnico significa também que estas ações se subtraem facilmente ao controle político, e são suscetíveis à influencia de grupos de interesse especializados (decisões sobre mercado financeiro, políticas de exportação, subsídios, política nuclear, incentivos fiscais, etc.)

Pareceria que o principal ingrediente para o rompimento do bloqueio é a legitimidade política, e daí a importância dos processos eleitorais, onde lideranças podem surgir e se afirmar. Os mecanismos produzem votos geralmente não são, entretanto, aqueles que produzem os instrumentos adequados de governo, que incluem o uso adequado da competência técnica e o exercício pleno de autoridade decisória.

O desenvolvimento de graus mais altos de governabilidade em um contexto de legitimidade política depende, tanto quanto a construção de uma ordem democrática estável, da constituição de uma série de instituições estáveis e auto-referidas que intermediem entre, por um lado, a opinião pública amorfa e manipulável e os interesses privados e setoriais capazes de mobilizá-la, e, por outro, o Estado. Estas instituições são necessárias não somente do lado da "sociedade civil", como os partidos políticos, os meios de comunicação de massas, as associações profissionais e sindicais, os grupos de interesse organizado, etc., como também do lado do Estado, através da constituição de um funcionalismo público motivado e cioso de suas responsabilidades, de um judiciário zeloso de sua competência e independência, e assim por diante. O problema é fazer com que estas instituições, indispensáveis ao funcionamento adequado de qualquer sociedade moderna, não se esclerosem antes do tempo, prisioneiras de suas primeiras conquistas, e se transformem em instrumento de paralisia para o que venha depois. São as lideranças políticas que podem, pelo menos em princípio, impedir que isto ocorra, pelo uso de mandatos que transcendem os interesses particulares, e que possam encarnar uma perspectiva de conjunto e de longo prazo, sem cair, seja no populismo que tudo destrói, seja na demagogia da defesa impensada de todos os interesses que falem mais alto. Infelizmente, nada nos garante, a não ser sua necessidade dolorosa, que lideranças deste tipo venham a surgir pelo processo tortuoso que são nossas disputas eleitorais.

É de se esperar que estas novas formas de institucionalização surjam e se desenvolvam não pela simples boa intenção de algumas pessoas, mas pela própria lógica de interesses dos grupos envolvidos, na medida em que eles comecem a sentir a precariedade de sua dependência exclusiva dos favores e privilégios de um Estado neo-patrimonial em crise. O resultado final deste processo, se ele for bem sucedido, não será, possivelmente, um Estado controlado pela "sociedade civil", mas uma situação em que instituições públicas solidamente constituídas possam colocar freios e contrapesos efetivos tanto à volatilidade da opinião pública quanto ao abuso de poder do Estado e dos interesses privados. A opinião pública, os grupos de interesse e o poder político do Estado serão também essenciais, neste contexto ideal, para manter sempre em cheque as tendências paralisadoras e conservadoras de qualquer sistema social que se institucionaliza. Nestas condições, as fronteiras usuais entre "público", "privado", "Estado" e "sociedade" estarão profundamente alterados, assim como os conceitos que hoje utilizamos para seu entendimento.

IX

Vislumbrar a possibilidade de um encaminhamento adequado para os problemas políticos e institucionais do país não é o mesmo que afirmar que este caminho será seguido, e nem mesmo que ele é o mais provável. Se este caminho vier a ser efetivamente trilhado existem uma série de questões e dilemas a serem enfrentados, dois dos quais merecem uma atenção especial, e servirão para concluir este texto.

Uma questão que se coloca com intensidade é a dos mecanismos de inclusão ou exclusão dos setores hoje marginalizados do "Brasil moderno" em relação a sociedade futura que se pretende construir. Esta questão é por vezes colocada em termos de uma oposição entre um modelo de desenvolvimento internacionalizado, baseado no fluxo relativamente aberto de idéias, pessoas e mercadorias do Brasil com o resto do mundo, e um modelo mais autárquico, fechado e, presumivelmente, mais autêntico e nacional. O que dá argumentos à segunda posição é a constatação de que o desenvolvimento do "Brasil moderno" tem se caracterizado pela exclusão de grandes setores da população, afetando particularmente as regiões nordestinas, o interior e a população de cor. No seu extremo, esta posição vem acompanhada de um rechaço generalizado à civilização ocidental e seus valores de eficiência, racionalidade, e individualidade, é sua substituição por valores supostamente mais autênticos de identidade étnica e cultural, afetividade, e coletividade. Não falta, nesta perspectiva, os que sustentam que o Brasil possui os elementos de uma civilização superior à do racionalismo e materialismo ocidentais, que estaria tão somente mascarada pelas manipulações das classes dominantes e seus aliados internacionais.

Quem conhece algo da história do Brasil sabe, no entanto, que não possuímos no passado um modelo de civilização próprio e mais autêntico para o qual possamos aspirar a retornar. Desde sua criação este país tem sido um complemento - e, freqüentemente, uma imagem retorcida - dos impérios coloniais e dos centros mundiais cujas influências culturais e interesses econômicos até aqui chegaram. A busca de um passado idealizado, apesar de provavelmente irrealista e ilusória em todos os casos, pode fazer algum sentido em países com uma história distinta, e uma cultura não ocidental identificável. Isto não significa, evidentemente, que não existam especifidades culturais próprias do país que não tenham valor e não possam florescer. Mas esta especificidade, para florescer e adquirir valor universal, há de residir nas maneiras próprias que os brasileiros construirão para se inserir no mundo moderno, e não no retorno nostálgico a formas culturais de um passado que não chegou a existir.

Assinalar o beco sem saída do nacionalismo cultural não significa ignorar a gravidade dos problemas de incorporação assinalados acima. O que é importante frisar em relação a esta discussão sobre a cultura brasileira é menos a solidez das teses nacionalistas e isolacionistas - que é quase inexistente - do que seu potencial de criação de formas explosivas de nacionalismo populista, em um contexto de altos níveis de exclusão social causados por uma internacionalização da cultura e da economia caracterizada pelo uso de tecnologias complexas e em qualificações educacionais cada vez mais elevadas.

Esta discussão traz à tona uma questão que permaneceu latente até aqui, e que não ocupa o primeiro plano no próprio livro: a da dependência do Brasil em relação aos centros do capitalismo internacional contemporâneo. As chamadas "teorias da dependência", que existem de muitas formas, partem de um fato importante e conhecido - que países como o Brasil se constituíram, desde suas origens, como dependências de outros centros - para chegar muitas vezes a duas conclusões pelo menos paradoxais. A primeira é a de que o peso da dependência é tal que nada pode ser entendido em um país como o nosso a não ser a partir de sua inserção ao contexto externo. Em sua forma mais extremada, a teoria da dependência assume feição claramente paranóica: países como o Brasil são uma tragédia só, e tudo isto por culpa única e exclusiva "deles". O que pretendemos mostrar, ao contrário, é que a dependência não exclui o fato de existir uma realidade própria, especifica e interna ao país, que não se esgota nem se exaure nas relações com os centros capitalistas mais desenvolvidos. A outra conclusão paradoxal, que decorre da primeira, é a de que todos os problemas poderiam ser resolvidos pela superação das relações de dependência. Mas se, de fato, a dependência é tão constitutiva, fica difícil imaginar de onde o país encontrará forças e recursos para superá-la. Se, ao contrário, entendermos que a realidade de um país com a complexidade do Brasil não se esgota nas suas relações externas, isto nos dá condições de pensar nas coisas que podemos fazer com nossos recursos, ter uma visão menos persecutória do mundo que nos cerca e, a partir daí, ter elementos para buscar reverter as situações de dependência que nos pareçam inadequadas.

X

A conclusão geral de tudo o que foi dito até aqui é que o autoritarismo e neo-patrimonialismo brasileiros, cujas bases se erguem a partir da própria formação inicial do Brasil como colônia portuguesa, e que evolui a se transforma ao longo de nossa história, não constitui um traço congênito e insuperável de nossa nacionalidade, mas é certamente um condicionante poderoso em relação a nosso presente e futuro como país. A complexidade das questões envolvidas nesta discussão deve ser suficiente para deixar claro que, na realidade, termos como "corporativismo", "autoritarismo" ou "patrimonialismo" são pouco mais do que expressões de conveniência que utilizamos para nos referir a uma realidade cheia de contradições e contra-exemplos, onde, no entanto, um certo padrão parece predominar: o de um Estado hipertrofiado, burocratizado e ineficiente, ligado simbioticamente a uma sociedade debilitada, dependente, alienada e bloqueada. É da superação deste padrão histórico e suas conseqüências que depende nosso futuro. E como o passado é contraditório e o futuro aberto e pronto para ser construído, é sempre possível ser otimista.

Rio-São Paulo, maio de 1989.
* Este texto, de 1989, se baseia em parte na introdução à terceira edição deBases do Autoritarismo Brasileiro, Rio de Janeiro, Editora Campus, 1985.

Simon Schwartzman
simon[arroba]schwartzman.org.br
http://www.schwartzman.org.br/simon



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