Entre o Congresso de Viena, no qual estiveram representados apenas oito Estados "cristãos", as conferências da paz da Haia e o tratado de Versalhes, que envolveram pouco mais de duas dezenas de países, e o atual sistema onusiano, praticamente universal, a sociedade internacional conheceu uma profunda democratização nos últimos dois séculos, mesmo se os fundamentos do poder político e econômico não tenham conhecido modificação substancial. Esse fenômeno de ampliação da antiga "democracia censitária" é particularmente visível na elaboração de normas e instituições para o relacionamento econômico internacional, onde as organizações multilaterais de cooperação técnica e econômica, entre as quais se destacam o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e a Organização Mundial de Comércio, desempenham relevante papel na construção da interdependência global.
Este ensaio histórico segue, na longa duração, a evolução do multilateralismo, fundamentalmente em sua vertente econômica, e examina a inserção internacional do Brasil, um dos poucos países da periferia a terem participado ativamente da construção da ordem econômica internacional em várias épocas, através de sua presença nas mais diversas conferências multilaterais que presidiram ao nascimento dessas organizações intergovernamentais de cooperação.
Palavras-chave: política internacional, relações econômicas internacionais, organizações intergovernamentais de cooperação, inserção do Brasil, multilateralismo.
Starting from the Congress of Vienna, in which only eight "Christian" states assisted, through the Hague Peace conferences and the Versailles treaty, mobilizing no more than two dozens countries, to the current UNO system, virtually universal, international society has undergone a deep democratization in the last two centuries, even if the sources of political and economic power and its distribution among countries have been substantially maintained. This process of enlargement of the old "restrictive democracy" is mostly evident in the institutional rule making for the international economic relations, where multilateral organizations for technical and economic cooperation – among them the IMF, the World Bank and the WTO - have a significat role in reinforcing the global interdependence among states. This historical essay follows the evolution of multilateralism, in the longue durée, with particular attention to its economic features, and examines Brazil’s international insertion in the world economy, as one of the few "peripheric" countries which took an active part in the making of "international economic order". Indeed, Brazil was present at the creation of most, if not all, intergovernmental organizations and took part in various multilateral conferences from the 19th century to our times.
Key-words: international politics, international economic order, intergovernmental cooperation organizations, Brasil’s insertion, multilateralism.
[Brasília, 1237b, 12 de abril de 2004].
1. Introdução: da ordem oligárquica ao sistema global1
Como se desenvolveram a construção da ordem política e econômica mundial e o estabelecimento da própria sociedade internacional a partir do século 19? Teriam esses processos conservado os mesmos traços hegemônicos e as mesmas linhas de dominação política e de subordinação econômica que caracterizaram os sistemas imperiais formados no século 19? Seria a Pax Americana do século 20 a sucessora direta da Pax Britannica do século 19? Teria esta reproduzido, em escala transcontinental, nos três oceanos nos quais a Royal Navy navegou soberanamente, o mesmo tipo de monopólio do poder e de centralização econômica que a Pax Romana trouxe ao mundo antigo, ou que outros impérios — islâmico, chinês, persa — consagraram em suas respectivas esferas de dominação? Como o Brasil inseriu-se nesse mundo de relações assimétricas e de soberanias diferenciadas e qual foi seu relacionamento com uma ordem internacional dotada, reconhecidamente, de um baixo coeficiente intrínseco de democracia? O presente texto trata da construção da ordem econômica internacional contemporânea. A ênfase é colocada nas instituições intergovernamentais, de caráter técnico-econômico e de tipo multilateral, de cujos processos constitutivos participou o Brasil e às quais ele veio a aderir precocemente, reconheça-se de imediato. Com efeito, o Brasil foi um dos países ditos "periféricos" que mais participaram da construção da ordem internacional desde meados do século 19 até os dias que correm.
O estudo parte de um pressuposto empírico, na verdade uma das constatações mais recorrentes da politologia clássica, o de que o poder se distribui desigualmente na república e na sociedade internacional, envolvendo tanto aspectos coercivos (uso ou ameaça de sanções físicas) como normativos (legais) ou compensatórios. Com efeito, desde a antigüidade clássica que se distinguem diferentes estruturas de poder: oligarquia, autocracia, democracia, plutocracia. Aristóteles, por exemplo, concebeu três tipos fundamentais de estruturas políticas — monarquia, aristocracia e democracia — e suas derivações deformadas — ditadura, oligarquia e oclocracia. Marx relacionou diretamente o poder político com as fontes de poder econômico nas sociedades de classes. Max Weber, por sua vez, se preocupava com as fontes de legitimidade do poder político, para ele baseadas num relação de autoridade que envolvia papéis políticos, funções desempenhadas na vida societal e posições ocupadas por diferentes estamentos ou grupos sociais.
A sociedade internacional, a despeito de seu caráter difuso — isto é, não definida territorialmente e heterogênea do ponto de vista civilizacional — não é muito diferente da civis ou da república, construindo progressivamente instituições para disciplinar a autoridade especificamente política ou o poder essencialmente econômico.
O poder, a autoridade e a liderança não se mantêm indefinidamente pela coerção, assim como a estratificação social — ou societal, neste caso — evolui em função das mudanças nas técnicas e nos mercados. Os conceitos de Macht, Power, Puissance, tão bem estudados por Raymond Aron em muitas de suas obras hoje clássicas, são ainda mais válidos na esfera da sociedade internacional do que no âmbito puramente societal ou doméstico.
Antes, contudo, de tratar da construção e evolução da ordem econômica internacional contemporânea seria útil visualizar, ainda que rapidamente, como evoluiu a sociedade internacional desde princípios do século 19 até meados do século 20 e como seus atores principais, os Estados nacionais, foram aceitando determinadas limitações de soberania em prol de uma ordem internacional ainda pouco definida e certamente mutável em termos políticos e econômicos. Estas são as linhas conceituais da discussão basicamente histórica que se procederá na seção seguinte, com ênfase na participação do Brasil nesse sistema em construção.
2. Um mundo restaurado: a sociedade internacional pós-napoleônica
Assim como o moderno Estado nacional não é uma cópia ampliada da cidade-Estado grega, a sociedade internacional da era contemporânea não é uma reprodução, ainda que melhorada, da ordem internacional da idade moderna, que esteve marcada pela afirmação unilateral do poder militar e por uma vontade hegemônica de vocação imperialista. O império napoleônico representou provavelmente o auge dessa concepção "militarista" da sociedade política, uma autocracia quiçá benevolente com as massas e socialmente mais "democrática" que as monarquias derrocadas em quase toda a Europa — no sentido de retirar o poder político e econômico das velhas aristocracias para colocá-lo nas mãos da burguesia — mais ainda assim basicamente inaceitável para os que não eram franceses (ou parentes da família de Napoleão). O regime de hegemonia coletiva que se desenha em princípios do século 19 na Europa, a partir do Congresso de Viena, contribui para a afirmação de um sistema de Estados que retoma alguns dos princípios do mundo vestfaliano: soberania e independência dos Estados "cristãos", tutela e contenção mútua nas diferentes esferas de influência.
O princípio do legitimismo dinástico e a tentativa de se formar uma "santa liga dos príncipes cristãos" se encaixavam mal, por certo, com o espírito e o projeto kantianos da uma paz universal e duradoura, fundamentalmente baseados, este últimos, na existência de repúblicas democráticas. Mas, ainda assim, o sistema de Viena contribui para orquestrar uma nova e inédita realidade nas relações internacionais: uma espécie de hegemonia difusa que permite a emergência oportuna de instituições de cooperação interestatal que iriam se desenvolver enormemente no decorrer da segunda metade do século 19 e ao longo do século 20. Em Viena, apenas cinco nações determinaram o perfil da sociedade internacional pós-napoleônica, o que aliás estava perfeitamente de acordo, no plano da sociologia política, com os sistemas oligárquicos e as poucas democracias censitárias que então dominavam o espectro político europeu.
O Brasil emergia para o mundo nesse contexto de reorganização da ordem internacional, tendo passado do status de colônia ao de Reino unido no mesmo movimento que levou da hegemonia napoleônica ao "concerto europeu". Considerandose o longo período de paz do século 19, a primeira observação a ser feita no que se refere à "macropolítica" institucional da ordem internacional é, precisamente, as grandes diferenças que marcam os cenários políticos e econômicos internacionais respectivos sob os quais terão de atuar, numa primeira etapa, a experiente mas enfraquecida diplomacia portuguesa transplantada ao novo mundo, logo depois, em 1822, a incipiente diplomacia do jovem Estado independente e, finalmente, a segura "diplomacia imperial" do Segundo Reinado, que forneceria tantos bons quadros à diplomacia republicana, no final do século 19 (ALMEIDA, 2001).
Observa-se, em primeiro lugar, uma grande mudança na quantidade e também na qualidade dos atores participando do chamado jogo internacional. Com efeito, no Congresso de Viena, em 1815, estiveram representadas oito nações "cristãs":
Grã-Bretanha, Prússia, Rússia, Áustria, França, Espanha, Suécia e Portugal, este apenas em virtude de sua relação privilegiada com a Grã-Bretanha e basicamente no contexto de seu envolvimento, embora involuntário e marginal, com o grande drama napoleônico que agitou a Europa na seqüência da Revolução francesa. As relações de força e de poder desenhadas naquela primeira grande conferência diplomática da época contemporânea continuaram a dominar os desenvolvimentos diplomáticos (e militares) durante a maior parte do século 19, relações de poder algo temperadas, é verdade, pela Doutrina Monroe — proclamada unilateralmente pelos Estados Unidos, secundados pela própria Grã-Bretanha — e seu modesto poder de coerção ou de "dissuasão" contra as potências recolonizadoras da Santa Aliança.
Em Viena foram debatidos, quase que exclusivamente, os interesses das grandes potências e acomodados os desejos das menores. Portugal teve de ceder de volta a Guiana à França e aceder à pressão inglesa para restringir o alcance do tráfico de escravos. Quanto ao Brasil, que logo mais buscaria sua legitimação internacional depois do movimento da independência, ele é, em face do novo equilíbrio político europeu que emerge dos compromissos de 1815, uma nação claramente periférica no quadro do sistema de alianças e da diplomacia dos congressos. Dois dos temas tratados em Viena, ainda que de forma secundária, interessariam diretamente à jovem nação sul-americana:
a livre navegabilidade dos rios internacionais, sobretudo para fins comerciais, e a restrição ao tráfico de negros africanos, sustento econômico da poderosa classe mercantil carioca, que constituía aliás a própria base política do poder imperial.
Transformados ambos em princípios reconhecidos das relações entre Estados, eles estariam no centro das relações exteriores do País, marcando de forma indelével os primeiros passos da diplomacia brasileira.
Nessa fase, as forças incipientes do primeiro capitalismo industrial e a afirmação ainda relativamente tímida da "ordem burguesa" não são suficientes para romper com a soberania política absoluta dos Estados nacionais em favor da construção de uma ordem internacional que privilegiasse o poder da técnica no confronto com a técnica do poder. São finalmente poucas as instituições intergovernamentais surgidas na primeira metade do século 19, praticamente nenhuma que tivesse tido continuidade ou seguimento nas décadas seguintes, marcadas por intensos intercâmbios comerciais, tecnológicos e financeiros. Se os esforços de alguns promotores do "liberalinternacionalismo" capitalista nos anos "heróicos" da burguesia ascendente poderiam talvez, retrospectivamente, orgulhar filósofos como Immanuel Kant ou Adam Smith, eles não lograram contudo impulsionar organizações de cooperação industrial ou comercial de cunho "supranacional", ou pelo menos "desnacionalizado".
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