Resumo:
Esse artigo discute o modo como a escrita autobiográfica revela a construção do "eu" de Graciliano Ramos, que em Memórias do Cárcere assume os papéis de escritor (profissional), narrador (voz que encena a história), autor (que garante a unidade do texto) e herói (personagem). A obra é um relato das experiências vividas por Ramos quando ele esteve preso durante a Ditadura de Getúlio Vargas, no ano de 1936. Para tanto, algumas questões são centrais: a primeira delas é a relação entre tempo e espaço que se apresenta de modo constitutivo na própria estrutura do texto, "o tempo deixara de existir" (RAMOS, 1953); a segunda é o uso dos pronomes que revelam a construção do gênero autobiográfico e da identidade dos participantes do discurso, "desgosta-me usar a primeira pessoa" (RAMOS, 1953); e a terceira é a discussão do "estilo" da autobiografia, "Quem dormiu no chão deve lembrar-se disto, impor-se disciplina, sentar-se em cadeiras duras, escrever em tábuas estreitas" (RAMOS, 1953).
Palavras-chave: memória, autobiografia, tempo, narrativa.
Abstract:
This article argues about how the autobiographyc"s writing reveals the construction of "I" from Graciliano Ramos, who in Memórias do Cárcere assumes the roles of writer (professional), narrator (voice which put on the story), author (who guarantees the unity of the text) and hero (character). The book's an account of experiences lived by Ramos when he was prisoner during the dictatorship of Getúlio Vargas, in 1936. Therefore, some questions are centrals: the first of them is the connection between time and space which is introduced in a constitutive way in the self structure of the text, "o tempo deixara de existir" (RAMOS, 1953); the second question is the use of pronouns which reveal the constrution of autobiographyc gender and of the participants identity of the speech, "desgosta-me usar a primeira pessoa" (RAMOS, 1953); and the third question is about the discussion of the autobiography"s "style", "Quem dormiu no chão deve lembrar-se disto, impor-se disciplina, sentar-se em cadeiras duras, escrever em tábuas estreitas" (RAMOS, 1953).
Key words: memory, autobiography, time, narrative:
A obra Memórias do Cárcere foi escrita por Graciliano Ramos a partir de sua vivência quando preso durante a Ditadura Vargas, em 1936, e o título dessa narrativa apresenta o seu propósito mais evidente: relatar as lembranças dessa experiência. Nosso objetivo é fazer uma reflexão sobre como a escrita autobiográfica revela a construção do "eu" de Graciliano Ramos nesse relato, revelando que esse "eu" assume os papéis de escritor, narrador, autor e herói.
Ramos permaneceu em poder da polícia por dez meses, embora tenha sido condenado sem processo jurídico; por isso, não se sabe oficialmente qual a causa de sua prisão, mas tudo faz crer que ele foi vítima de vingança política por suas decisões quando diretor da Instrução Pública de Alagoas. Ao longo das memórias, ele não insiste na tentativa de desvendar esse mistério, ou seja, mostra-se mais interessado em relatar a experiência do que em buscar respostas.
Enquanto presidiário, Ramos transitou por diferentes lugares que são recuperados por fases em sua narrativa da memória, ou seja, a ordem cronológica dos acontecimentos é submetida à ordem de lugares em que ele vivenciou as experiências: primeiro no 20º Batalhão, em Maceió; em seguida em um quartel, no Recife; depois no porão do navio Manaus; mais tarde na Casa de Detenção no Rio de Janeiro, onde ficou no Pavilhão dos Primários; houve ainda o período em que permaneceu no Pavilhão dos Militares; também a Colônia Correcional, em Ilha Grande; na Polícia Central, novamente no Rio de Janeiro e, por último, na Casa de Correção. O espaço é, portanto, o eixo organizador da experiência traumática; uma escolha totalmente coerente a partir da constatação de que "o tempo deixara de existir" (RAMOS, 1953, vol. 4, p. 7)[1]. Nesse caso, a questão temporal é de extrema importância, pois o narrador faz diversas considerações a esse respeito ao longo da obra; mas, além disso, Márcio Seligmann-Silva afirma tratar-se de uma constante em narrativas que abordam experiências de presídio ou perseguições políticas:
Uma das características mais marcantes da experiência em instituições totais (ou sob regimes de exceção), onde a qualquer momento e por qualquer motivo absurdo pode-se perder a vida, é a temporalidade marcada pela ditadura do agora. (SELIGMANN-SILVA, 2006, p. 55)
A opção de utilizar o espaço como substituto da referência temporal é muito significativa, pois, do ponto de vista da linguagem, a relação entre tempo e espaço é intrínseca, o que se comprova nas metáforas que utilizamos para falar do tempo. Metáforas como: passar do tempo, anos atrás, daqui para frente, pertencem a princípio ao universo semântico do topos, pois só podemos pensar sobre o abstrato passando pelo sensível. Em outras palavras, não somos capazes de falar do tempo sem nos referirmos ao espaço (como metáfora), mesmo que esse vocabulário espacial não seja suficiente para tratar da atividade espiritual. Nesse sentido, observa Gagnebin (1997):
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