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Universidade que não custa nada é a pública. E o mistério está no fato de que os cursos dessa – é o que Beta ouve falar – são os melhores. Os prédios estão caindo aos pedaços e chega a faltar giz, até parece a escola da vila, mas os cursos são os melhores, é o que dizem. Mas Beta não está interessada em pensar sobre esse mistério. Beta não é dada a perder tempo com mistérios e sonhos. Quem consegue entrar para a universidade que não custa nada são os ricos e os da classe média, pois existe o exame vestibular e, na seleção do vestibular, quem tira as melhores notas é quem paga por colégio que, nos últimos dois anos do ensino médio, repassa o tempo todo os macetes para acertar as questões do vestibular. Beta escutou uns professores conversando sobre política de cotas e fim do vestibular – seriam reservadas vagas para os estudantes com melhor desempenho na escola pública. Porém, também escutou esses mesmos professores afirmando que, no dia em que isso estiver estabelecido, logo, logo, as verbas para a universidade pública vão minguar ainda mais, os cursos irão decair e em seguida se tornarão iguais aos prédios, umas sucatas.
Beta não conhece ninguém da vila que tenha entrado em curso valorizado na universidade pública. Conhece alguns que entraram, mas não nos cursos mais disputados. E, nesse caso, não adianta para muita coisa. Esses cursos menos disputados são as licenciaturas, servem para formar professores. Ser professor não resolve o problema da vida: professor trabalha muito e ganha pouco. Viver assim é coisa para otários, é o que pensa a garotada da escola. As meninas que trabalham em boates, por exemplo, ganham mais do que as professores da escola, e trabalham menos, nem têm que se aborrecer todos os dias com salas de aula cheias de alunos que acham que a escola não presta para nada, ou somente serve como lugar para encontrar os colegas. Não que Beta pense em ir, daqui a dois ou três anos, trabalhar em boate. O caminho que ela vê pela frente é outro. Se for para ganhar pouco, que seja sem se esforçar muito. Pode ser como sua mãe e sua irmã mais velha, que vão levando a vida empregando-se aqui e ali, como auxiliares num estabelecimento comercial ou noutro. Pode ser também que dê sorte e se encoste em algum rapaz e engravide em seguida, deixando o problema de arranjar sustento para ele resolver.
Ela talvez levasse a sério, se fosse menino, a possibilidade de entrar para alguma das gangues e fazer carreira no tráfico, que é – todos sabem – onde o dinheiro circula de verdade e recompensa aos mais espertos, ainda que elimine a muitos.
O certo é que Beta não enxerga recompensas em seguir até o fim o caminho da escola. Talvez o percorra, por falta de alternativas, e porque a vida é assim mesmo, é para ir levando. Conhece na vila muita gente que estudou e trabalha duro, e nem por isso jamais conseguirão lugar e casa melhores para morar e, se adoecerem, terão que esperar o tempo que não podem esperar por uma vaga em leito de hospital público.
Beta poucas vezes colabora com os professores em sala de aula. Na verdade, com freqüência ela os agride com palavras e gestos. Nas anotações dos conselhos de classe, está escrito que seu comportamento revela uma agressividade em crescendo. A mãe diz que não sabe o que fazer e que nada pode fazer, que a escola o faça.
Apenas um ou dois quilômetros distante dali, mas ao mesmo tempo tão longe, anotações de outro conselho escolar igualmente apontam para uma agressividade crescente em Alfa. A desigualdade se manifesta na interpretação e no prognóstico que os pais e a psicóloga da escola fazem a respeito disso. Consideram a agressividade de Alfa um sinal positivo, revelação de um ímpeto que se redirecionará e se confirmará, em seu devido tempo, como alicerce para que Alfa se torne uma líder empresarial competitiva. Talvez suceda ao pai na direção dos negócios da família.
Diferenças são pontos de partida para percursos de Gama, professora de geografia na escola pública. Afirmar as diferenças, para ela, é criar um caminho inverso ao da desigualdade. Conforme Gama repete em conselhos de classe, afirmar uma diferença não é apenas relembrar que ela existe, mas encontrar o valor positivo onde, para um olhar menos atento, haveria apenas a desesperança.
Gama considera fundamental relembrar que o óbvio existe. Quando algum colega professor reclama com azedume que os alunos são quase todos uns ineptos, Gama lhe recorda que talvez o modo de conduzir as aulas possa estar inadequado. Desde há tempos ela compreendeu que convive com muitos colegas que se recusam a enxergar o óbvio.
Formados em cursos universitários que privilegiam desproporcionalmente o conhecimento acerca das coisas em relação à construção do saber sobre as pessoas e entre as pessoas, os professores das diversas disciplinas consideram secundário, talvez irrelevante e até aborrecido, prestar atenção em quem são os seus alunos. Cada um desses professores gostaria de ser admirado como detentor de conhecimentos sobre os temas de sua disciplina, apreciaria uma platéia cativa e atenta, interessada em assimilar as informações e conceitos contidos em suas exposições. Seu aluno idealizado seria assim – um receptor -, e os alunos reais apresentam-se como estorvos. Estorvos que se reapresentarão a ele um dia após outro. O conteúdo temático é o que esse professor considera como objeto de sua profissão; não, os alunos. Ele basicamente se concebe como especialista de uma disciplina, geografia, história, português, inglês, matemática, física, química, biologia, e os alunos – os alunos reais – os alunos de carne e osso e personalidade – aparecem-lhe como um acidente, um acidente para sempre. Estorvos, e não desafios a serem compreendidos na relação central de seu trabalho.
O seu modelo de ensino também não privilegia a atenção em relação ao contexto da escola pública, seja em periferias urbanas, seja em localidades de cotidianos rurais – ele não privilegia tal atenção, mesmo que trabalhe nessa escola. Seu pacote temático é quase sinônimo de seu modelo de ensino. Afinal, seu pacote temático é quase sinônimo do que foi a sua formação (ou da parte de sua formação que ele valorizou quando estudante) – e seu pacote é concebido como universal. As contextualidades, as aborrecidas contextualidades, são novamente os acidentes acontecendo para sempre em sua vida. Assim, se o seu pacote mantém uma forte afinidade com a seleção para entrar na universidade e a universidade é apenas uma tênue perspectiva na vida de seus alunos, para esse professor, o problema não está em seu pacote. Está somente nas expectativas que seus alunos trazem internalizadas e, em relação a isso, ele alega que nada pode fazer. O contexto no qual trabalha é o que lhe paga, através de impostos, sua remuneração, mas a esse contexto ele se recusa a dar estatuto de existência em sua mente.
A professora Gama considera fundamental relembrar a esses colegas que o óbvio existe, pois, sendo eles partes importantes desse mesmo contexto ao qual recusam, sua recusa contribui para reproduzir as adversidades que envolvem a todos.
Porém, para Gama, não basta relembrar que diferenças existem, ela procura discernir um caminho onde muitos só enxergam a repetição do andar em círculos. Em suas aulas de geografia, diferenças são pontos de partida para percursos de Gama e seus alunos.
Por exemplo, no início do ano, quando Gama solicitou que seus alunos escrevessem redações e fizessem desenhos representando a vila, a percepção dos alunos delineou a vila como um lugar de muita violência, marcado pelas disputas entre três gangues de narcotráfico em guerra permanente. Então, Gama explicou aos alunos que entrevistas podem ser um valioso instrumento para pesquisas que podem tornar mais visível a realidade. Auxiliou os alunos a formularem as perguntas para um roteiro de entrevistas e a colherem depoimentos junto à comunidade da vila. Os depoimentos criaram um painel mais amplo e documentado do cotidiano intimidado por atos de violência e ausência de proteção por parte do Estado. Com ajuda dos alunos, de outros professores e da direção da escola, Gama organizou uma exposição no galpão anexo à escola, juntando os depoimentos, as redações e os desenhos. Aliás, para fazer isso, Gama e os alunos e alguns professores antes realizaram um pequeno mutirão para restaurar minimamente o galpão, que estava deteriorado e esquecido pelo desuso.
A exposição foi aberta à comunidade e, no dia da inauguração, foi como se todos, olhando uns para os outros, houvessem declarado e indagado juntos: sim, nós tivemos coragem de falar e, neste momento, estamos nos sentindo melhor, será que a partir de agora alguma coisa vai mudar, mesmo que só um pouco?
Nas aulas seguintes, Gama notou que os alunos demonstraram orgulho por terem sido protagonistas do acontecido. Depois da denúncia, a elevação da auto-estima. Gama observou isso, e transformou a pesquisa de temas relacionados à identidade cultural que se mistura à auto-estima em seu próximo passo. Voltou a examinar com os alunos as redações e os desenhos que haviam sido o ponto de partida para as entrevistas e a exposição. Era evidente nas redações e desenhos que o tema recorrente era a violência que fora denunciada, mas não era apenas isso que podia ser encontrado ali.
Gama ajudou a turma a formular que nas figuras desenhadas por um menino, onde apareciam três meninas dançando, e a dança sacudindo suas trancinhas de estética afro, estavam contidas referências a raízes culturais e a novas pulsações dessas raízes. Podiam imaginar uma seta partindo das três meninas e das trancinhas desenhadas. Essa seta alcançaria a África, e retornaria do outro continente para a vila, rodopiaria pelos terreiros de umbanda e pelo pátio da escola de samba, e partiria para os Estados Unidos e, de lá, retornaria trazendo o hip-hop e o grafite. Música, religião, grafite, viagens transcontinentais e trancinhas ao vento conduziriam a seta flutuante ao sentimento da vila.
Os alunos garimparam nas redações e desenhos a lista de sinais e referências ao sentimento da vila, e não consideraram descabido quando Gama lhes explicou o significado de uma palavra estranha, topofilia.
Os temas da cultura foram unidos aos do trabalho, pesquisaram a formação econômica e territorial do país com base no trabalho escravo, indagaram se, hoje, o trabalho não será ainda escravo. Pesquisaram, por exemplo, quanto ganham os operários da construção civil e quanto lucram os donos das construtoras, para entenderem porque alguns moram em palácios e outros, aqueles que levantam tijolo por tijolo os grandes edifícios, habitam em casebres, em bairros sem saneamento.
As setas continuaram partindo das redações e desenhos, motivando novas pesquisas. Um website foi aberto pela classe, com as reportagens produzidas por eles. Da vila para o mundo, do mundo para o país, da capital do país para o ponto antípoda e do outro hemisfério de volta para a vila, temas da geografia foram pesquisados unidos aos da história e de outros campos do conhecimento, e unidos ao exercício da escrita e das formas de expressão.
No decorrer do ano, os alunos construíram o conhecimento de que não apenas a sua vila é dominada pelo narcotráfico, mas o mundo inteiro. Descobriram que a existência machucada pela droga não é exclusividade de sua vila, pois acontece também, e muito, em países ricos, entre pessoas ricas. Perguntaram, então, pelas razões desse vazio global. E construíram conhecimento de que não é apenas em sua vila que a guerra é permanente, e agora querem saber as razões da persistência da guerra no mundo. Construíram, igualmente, o conhecimento de que, entre os escombros, existem múltiplas belezas, na vila e no mundo.
Evidentemente não faltam professores que perguntam a Gama se tudo isso fará os alunos passarem na seleção do vestibular. Gama não se sente obrigada a ter respostas definitivas para tudo, e sua réplica é perguntar se o outro modelo dá resposta positiva à mesma pergunta. Sente prazer em enfatizar os indícios de que, em suas aulas, conhecimento é construído, sim. Gosta de demonstrar percursos nos quais o conhecimento sobre as coisas se entrelaça a um renovado "conhece-te a ti mesmo" mediatizado pelo conhecimento do mundo e do lugar que eu posso, na relação desenvolvida com os outros, um pouquinho, transformar.
Para Gama, o problemático, mesmo, advém do próprio reconhecimento que seu trabalho consegue alcançar junto à comunidade da escola. Reconhecimento, muitas vezes, ambíguo. Gama é a professora que consegue converter feridas causadas pelos estigmas raciais, sociais, econômicos em orgulho identitário e busca pelo saber? Então, solicite-se a Gama soluções para lidar com as crises armadas por todos aqueles alunos mais conflituados com o mundo e com os estigmas sobre eles lançados.
Gama é criativa e dotada de uma perceptividade que lhe permite adaptar-se às dificuldades de cada aluno? Então, que suas aulas recebam com freqüência as visitas de alunos enviados por outros professores, aqueles alunos com dificuldades de visão ou audição e que, não podendo pagar por atendimento especializado e nem o Estado isso lhes oferecendo, para Gama são remetidos, para que ela com sua boa vontade descubra meios para lhes compensar parcialmente as dificuldades.
Gama busca criar caminhos? Então, que para suas aulas sejam deslocados alunos que, nas conversas informais entre os professores, são chamados por alguns muito simplesmente de burros.
O que outros chamam de estorvos, Gama qualifica como desafios a serem compreendidos na centralidade de seu trabalho? Que sobre as costas de Gama, por ela mesma oferecidas como largas, sejam despejados os dramas da humanidade.
Gama sente-se feliz com as pequenas e múltiplas vitórias que alcança em seu trabalho, ainda que muitas vezes fracasse. Sente-se feliz, e também cansada. Às vezes, profundamente cansada. Sabe que os cochichos de alguns colegas que ouve pelos cantos dizem "viu, quem mandou se envolver?" Pergunta-se sobre qual é o limite entre engajamento e ingênuo voluntarismo. Sabe que a resposta, qualquer uma das respostas que poderia formular, não estabelecerá com segura nitidez essa fronteira imaginária.
O fato é que cada pequena vitória parece atrair mais e mais desafios, que estavam por perto, à espera de quem se propusesse a aceitá-los. Gama sente-se feliz com as pequenas vitórias, porém existem dias em que a avalanche do mundo parece desabar sobre ela.
Delta sente falta da linha de frente que é o convívio com a sala de aula escolar. Em sua trajetória como professora na escola pública e, após, na universidade, a militância pelas questões da educação acabou por conduzi-la a sucessivos cargos técnico-científicos na Secretaria de Educação de seu estado. Em anos recentes, Delta integrou-se a uma equipe ministerial de alto escalão. Há vinte anos, não convive mais com as pulsações da sala de aula escolar.
Ela se sente parcialmente recompensada ao participar da elaboração de políticas públicas para a educação e, especialmente, por exercer influência na criação de documentos oficiais plenos de diretrizes que lhe parecem fecundas para os ensinos fundamental e médio.
O que a incomoda, no entanto, é a consciência de que entre o documento e a realidade da sala de aula existe uma distância que se afigura tantas vezes como intransponível.
O exercício de produzir sínteses e aberturas teóricas com seus proeminentes parceiros de diálogos parece-lhe belo. Porém, o resultado desse esforço causa-lhe a impressão de assemelhar-se à criação de uma delicada e talvez hermética obra de arte, a ser apreciada tão somente no nicho que lhe é próprio: no papel.
Ainda assim, Delta felicita-se pelas teorizações desenvolvidas e vertidas sob a forma sintética de diretrizes explanadas em documentos oficiais.
No campo que encontra sua origem na matriz materialista, histórica e dialética, Delta busca salvaguardas para que a educação não esqueça que a aquisição de competências acontece não num mundo socialmente homogêneo, imparcial, mas, ao contrário, ocorre num mundo onde as hegemonias intencionam à reprodução dos privilégios associados à desigualdade instituída. Busca, ainda, o precioso auxílio para que a educação se familiarize a descobrir – nos objetos – a historicidade dos sujeitos que geram aos objetos. Ao mesmo tempo, Delta considera que esse campo, tão fecundo em produzir a crítica da sociedade, é tradicionalmente precário quanto a agenciar animicamente a reinvenção dos indivíduos.
No campo que se desdobra a partir das fenomenologias, Delta procura os caminhos para que prosperem na educação as surpresas trazidas pela multiplicação das vozes. Deseja que, através dos convites feitos por sons, imagens, epiderme e pensamento, a pessoa se habitue a pensar que o mundo pode ser a sua casa. E que, na sua casa-mundo, com passagem pela escola, cada um se invente como pessoa tornando-se o singular autor de sua linguagem e de suas ações. Delta, porém, teme que a ênfase posta unicamente em direção às singularidades torne pálido o valor e débil a compreensão do coletivo, que permeia e dá respostas às possibilidades do indivíduo.
Delta felicita-se por contrapor matrizes de pensamento, fazê-las divergir, fazê-las convergir, propor sínteses e novas interrogações. Tecer lógicas complexas parece-lhe uma longa estrada, onde, com o tempo, foi diminuindo o peso do esforço e acentuando-se a leveza da aventura, a descoberta de que o complexo pode ser a desconstrução do complicado e o reconhecimento do simples.
Porém, existe aquele incômodo. A impressão de que os resultados de seus esforços assemelham-se à criação de uma obra apreciada apenas por alguns, restrita a existir somente em seu nicho de papel.
Delta rende-se ao fato de que os problemas que se apresentam lá na linha de frente, na multiplicidade das salas de aula, estão muito além de uma equação passível de ser resolvida por elaborações teóricas. Não seria apenas uma arrogância, seria uma espantosa inconsciência acreditar que suas diretrizes poderiam simplesmente ser transpostas de seu gabinete para as salas de aula. Entre o projeto e a prática, interpõe-se o conjunto das circunstâncias sob as quais são vividas as existências.
Essas circunstâncias incluem o enraizado crime de pagar aos professores salários que não permitem o alívio em suas mentes das preocupações sobre como prover suas necessidades básicas e, ao mesmo tempo, deles exigir que se dediquem a interagir diariamente com as inquietudes de cem, duzentas ou trezentas outras mentes, e exigir que entrem e saiam correndo de salas de aula, do início da manhã ao fim da tarde ou da noite, e ainda a eles solicitar que levem algum trabalho para completar em casa. As circunstâncias incluem do mesmo modo a incongruência dos discursos que delegam a esses proletarizados a responsabilidade de realizarem as lindas teorias na prática.
Delta sente-se às vezes como uma personagem de ficção, como, talvez, alguma personagem do filme Matrix, amarrada a fios que a aprisionam na caverna platônica, onde sucumbe à quimera de que suas construções teóricas conseguirão tocar com a ponta de seus dedos estendidos a mão que possa estar estendida adiante.
Delta se surpreende ao encontrar, apesar de tudo, sinais de esperança resistindo e multiplicando-se. Ela costuma verificar os anais de congressos e encontros de professores, percorre os sumários, escolhendo os títulos que lhe sugerem relatos reflexivos de experiências. Apreciou, por exemplo, o texto da professora chamada Gama, assim como diversos outros relatos reflexivos, trabalhos registrados em variados encontros. Supõe que provavelmente poucos desses professores se debrucem sobre os documentos oficiais que ela ajuda a redigir, mas a teia das práticas comunicadas demonstra similaridades e isso lhe indica um paradigma aos poucos sendo construído em rede.
Essa tessitura exige conexões. Sinapses, como se fosse um cérebro imenso e generosamente múltiplo tentando se estruturar. Mas essas conexões exigem suportes. Dinheiro para comprar livros e assinar periódicos. Incentivo para refletir e comunicar e escutar experiências. Tempo para descansar e maturar resultados e indagações.
Apesar de tudo – Delta nem se atreveria a tentar explicar como isso acontece –, as conexões vão se estabelecendo. Se fossem recompensadas com os suportes necessários, Delta arriscaria a anunciar o desencadeamento de uma maravilhosa germinação de experiências transformadoras da escola. Talvez a transformação da escola pública ajudasse um pouco, ou muito, a transformar o país.
Se além de ser influente na caverna platônica da elaboração de documentos teóricos, Delta pudesse ser igualmente influente na utilização de recursos públicos federais, estaduais, municipais, ela buscaria contribuir para que fosse conquistada a complexa simplicidade de algumas metas.
Uma das mais básicas dentre essas metas seria a de que os professores ganhassem mais e fossem contratados em maior número, possibilitando a diminuição do número de alunos por professor e a elevação da atenção do professor para com cada um de seus alunos. É uma questão interessante discutir se ser professor é exercer um sacerdócio – Delta, inclusive, pensa que sim –, porém preferiria deixar essa questão para ser discutida depois de garantidas a prestação da casa, a saúde, a aposentadoria.
Outra meta seria instituir, não apenas como ideal, mas como práxis escolar, o professor como pesquisador de seu próprio trabalho. Isto é, que aqueles relatos reflexivos de experiências, que despertam a admiração de Delta, ao invés de serem as exceções, fossem acolhidos pelo contrato da jornada de trabalho. Acredita que aos professores deveria ser reservado algo diverso do que entrar e sair correndo de salas de aula, do início da manhã ao fim da tarde ou da noite. Para ela, um bom número de horas remuneradas para refletir, relatar e escutar, ensinar e aprender experiências, construir em rede a teoria em diálogo com a prática, não deveria ser uma meta impensável, a não ser que se admita que o perpétuo discurso eleitoral que diz ser a educação a base de uma sociedade seja apenas isso mesmo, um discurso vazio, cuja repetição sem correspondência em atos torna semelhantes palanques políticos apresentados como divergentes.
Delta sente falta de suportes concretos para a tessitura que, apesar de tudo, se desenvolve, revelando uma educação que procura atuar em relação aos contextos que, desde fora, marcam por dentro as trajetórias vividas.
Entre os suportes a serem conquistados, considera que deveria ocupar lugar fundante na pauta de metas para a escola pública a instituição de fato do professor-pesquisador, com significativa porcentagem de sua jornada de trabalho remunerada para ele ensinar-aprender, criar dialogicamente nada menos do que a renovada práxis de seu ofício. E considera que tal dialogicidade deveria instituir suas conexões desde a base até a formulação da política educacional pública, e desde a formulação da política até a linha de frente da base escolar, onde se vive diretamente o contexto sobre o qual o conhecimento não mais pode calar. Para tanto, seriam necessárias as horas remuneradas para falar e escutar, meditar, criar.
Autor:
Nelson Rego
Geógrafo, Doutor em Educação, Professor nos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Geografia na UFRGS.
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