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A acumulação dos conhecimentos científicos e a proliferação de técnicas teve um efeito constante na formação das sociedades modernas. A ciência produziu uma divisão não cíclica na história através do acúmulo de riquezas e da competição militar, conferindo às sociedades que a desenvolveram, uma primazia quanto à sua autodeterminação. Além de propiciar uma organização militar tecnologicamente eficiente, os estados modernos promovem uma estruturação da sociedade através de uma produção econômica excludente. Impondo, com isto, a tarefa da manutenção de uma unidade nacional mediante uma autoridade forte e a dissolução de todo tipo de valor que impedia esta nova forma de organização racional. Neste modelo social e econômico, estatal-militar, a educação cumpre a tarefa de otimizar a produção e de contribuir para a manutenção do status quo.
A concepção moderna de educação, esboçada a partir deste modelo social, está comprometida com a organização racional do trabalho, com as inovações tecnológicas e com a organização da sociedade estabelecida a partir da exploração econômica. Ora, uma vez que a educação deve reproduzir a inexorabilidade da realidade existente, não podem suas instituições obedecerem a uma lógica distinta dessa realidade. O que nos permite compreender porque o estado busca moldar o ensino a partir de uma lógica de mercado.
Neste sentido, a educação é entendida enquanto uma maneira pela qual se aprende os ofícios, ou seja, uma espécie de instrumentalização preocupada com a prevenção e com o controle, o que fez com que o processo educacional estivesse voltado para a reprodução da cultura instituída e para a formação de mão-de-obra. Este projeto educacional é fortemente criticado em nosso século, surgindo assim a possibilidade de repensar a educação num contexto de desenvolvimento social mais amplo. No entanto, qualquer tentativa de reestruturar os fundamentos da educação, implicará no abandono de condutas que ainda defendem a primazia deste padrão científico-tecnológico e das concepções teóricas que lhe estão subjacentes.
Atualmente vivencia-se um momento de grandes questionamentos acerca deste esquecimento que acompanhou o pensamento moderno desde suas origens. Entre eles podemos mencionar alguns, tais como:
1) questionamento sobre a legitimidade dos grandes sistemas e das grandes narrativas teóricas;
2) da pretensão universalizante das verdades científicas e do domínio das metodologias científicas em todas as esferas do saber, seja ele teórico ou prático;
3) da concepção separatista que contribuiu para a instauração das disciplinas;
4) da estruturação social fundada a partir do modelo econômico excludente e do aparato técnico-científico;
A crítica à modernidade passa pela crítica da hegemonia do modelo tecnológico, mais precisamente pela crítica à racionalidade que tomou possível tal hegemonia. Com relação a este estado de coisas, Jürgen Habermas tem razão ao afirmar que uma sociedade não se estrutura somente ao nível tecnológico, pois há um espaço de interesses e de decisões que é mais basilar, e, cujo redimensionamento, toma-se fundamental para a manutenção de uma sociedade democrática. Segundo ele, a colonização do mundo da vida pela racionalidade sistémica, pôs em risco valores e práticas imprescindíveis para a vida em sociedade. Neste sentido, o pensamento moderno priorizou alguns meios em detrimento dos fins, e, com isto, abandonou o ideal da autonomia do sujeito, não apenas frente a outros indivíduos, mas também em relação aos desígnios da natureza. Numa breve metáfora, poderíamos dizer que ao revisitar o mundo grego, o homem moderno não resistiu a tentação de banhar-se no rio Lethéia, banho este que lhe causou um certo esquecimento, principalmente no tocante às questões que dizem respeito ao âmbito da vida prática.
Aceitar a crítica moderna em relação a natureza humana e o determinismo nela gerado não implica, em hipótese alguma, propor uma concepção de educação que se orienta pelo escopo cientificista. Esta atitude teórica revela algo que é próprio do pensamento moderno, a saber, um constante processo de crítica e de mudança frente ao instituído. Pois, sem ela, dificilmente se poderia construir uma concepção de mundo tal como nos legaram alguns pensadores na aurora da modernidade.
Pensar a educação num contexto de ampliação do horizonte de interpretação da realidade implica numa tomada de posição teórica e prática frente aos problemas, num questionamento do cânon modernista e numa abertura de espaços para o discurso marginal, caracterizado por Dorando Michelini enquanto um discurso "de lo otro de la razon: de lo natural, particular y cambiante, de los sentimentos y afectos, de lo onírico y estético, de lo mítico y religioso"l.
Aristóteles não possui uma obra que aborda especificamente o tema da educação, mas, de uma maneira diferenciada, sua posição encontra-se diluída em diversas produções, como a Metafísica, Política, De Anima, Ética a Nicômacos, Retórica ea Poética. Cabe lembrar, inicialmente, que não se trata de uma transposição do modelo estético que subjaz à manifestação artística das tragédias. Antes sim, rediscutir o papel e a relevância contemporânea de alguns elementos da tragédia que poderiam tomar parte do campo de teorização e operacionalização da educação.
A pretensão de interpretar a obra aristotélica sob a ótica pedagógica, enquanto uma hipótese, pode ser apoiada no posicionamento de Werner Jaeger sobre o ideal pedagógico das tragédias gregas. Em seu clássico Paidéia: A Formação do Homem Grego, ele afirma que: "Um escultor de homens como Sófocles pertence à história da educação humana", ou seja, "Sófocles humanizou a tragédia e fez dela o modelo imortal da educação humana"[2]. Se de fato tem sentido dizer que a tragédia serviu como modelo de educação do povo grego, é porque nela há algo que toma possível a educação. Portanto, não deixa de ser plausível a idéia de estabelecer uma relação entre tragédia e educação, desde que sejam respeitados os limites históricos das formulações antigas e que sejam reconhecidas as significativas mudanças ocorridas desde aquele período até os nossos dias.
O esforço realizado pelos poetas trágicos, somado a outros fatores como a construção dos sistemas dos grandes filósofos, fez com que o ideal pedagógico da pólis grega consistisse no "cultivo da alma", o qual se dava enquanto "um esforço conjugado do discípulo e do mestre em aprimorar as faculdades físicas e espirituais de cada um"[3]. O "cultivo da alma" estava baseado na inseparabilidade entre o saber teórico e o saber prático, ou seja, na união indissolúvel entre o conhecimento e a ética, expresso pelo ideal grego da kaLokagathia. Sendo a tragédia a expressão desse modelo educacional, então ela pode ser interpretada enquanto uma proposta pedagógica, que pode colaborar no restabelecimento da dimensão prática, ética e política; dimensão esta por vezes esquecida[4]nos debates e nas elaborações sobre a educação na modernidade. Acredita-se que desta maneira será possível resgatar o papel pedagógico da tragédia numa perspectiva eminentemente educativa.
Na Poética de Aristóteles, o enredo adquire um significado especial, ou seja, ele se constitui enquanto a natureza da tragédia, expressa em termos de probabilidade e necessidade. Este significado do enredo faz com que a tragédia se tome, do ponto de vista filosófico, mais significativa que a história. O rebaixamento ontológico da história se dá pelo fato da mesma estar submetida aos acontecimentos passados, os quais pertencem ao âmbito da contingência e da particularidade. Portanto, ao se vincular ao passado, a história se reduz à simples cronologia, não possuindo o mesmo estatuto ontológico da tragédia.
Aristóteles defende em sua Poética que "não é o ofício do poeta narrar o que aconteceu; é sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade"[5]. Esta conexão necessária entre as representações artísticas, traz para o interior da tragédia o elemento da universalidade, tomando-se uma das expressões da filosofia primeira de Aristóteles. Esta relação entre princípios ontológicos e a arte trágica fornece a possibilidade de realizar uma interpretação sobre o modelo de aprendizagem, o qual encontra-se implícito na construção das tragédias gregas.
Ao definir o vocábulo dynamis, Peters comenta que "a passagem da potência à atualidade (enérgeia) dá-se quer através da arte, quer por meio de um princípio inato"[6]. Portanto, a interpretação do modelo educacional contido na tragédia requer, primeiro, uma avaliação acerca da "passagem da potência àatualidade" mediante a atividade artística. Para que esta "passagem" seja esclarecida será necessário que além da "potência" e da "atualidade", sejam acrescidos os princípios que tomam possível toda e qualquer mudança, quer se trate de movimento, de geração ou de corrupção e as categorias implícitas na concepção da própria tragédia. Cabe ressaltar que os princípios constitutivos da referida mudança, equivalem ao que a tradição conhece enquanto as quatro causas:
1- causa material (hyie)
2- causa eficiente (kinoun)
3- causa formal (eidos)
4- causa final (téios).
Esta estrutura remonta a um esquema da arte da tragédia concebido como uma possível interpretação dada por Aristóteles. Da matéria à forma ocorre a transformação da Ia potencialidade em la atualidade, perfazendo a primeira parte do esquema. Na segunda parte, que compreende o raio de ação da causa formal à causa final, a Ia atualidade converteu-se em uma 2a potencialidade que, ao cabo de todo o processo, se toma 2ª atualidade.
Cumpre destacar que Aristóteles se orienta através de duas certezas na aplicação de seu sistema metafísico das 4 causas:
1ª) os fenômenos que não se enquadram na doutrina de explicação pelas causas são irracionais, isto é, incertos e duvidosos, guian do-se cegamente pela sorte ou azar;
2ª) princípio da isonomia, ou seja, para um perfeito funcionamento de um sistema é preciso um equilíbrio das diversas partes que o compõem.
Para Aristóteles, a tragédia, assim como outras expressões artísticas, são frutos da criação humana. Ao nível das relações humanas a intervenção da inteligência racional pode produzir objetos ou ações. O conhecimento também entra neste processo através da conceitualização. As atividades humanas dividir-se-ão basicamente em dois gêneros: da téchne e o dapráxis. A téchne é uma característica dirigida mais à produção (poietike). A primeira visa um fim além do próprio processo, porém, a práxis, tem uma relação com o télos compreendido dentro da própria ação.
A tragédia, no primeiro estágio, manifesta-se como um produto no sentido da téchne. É uma construção racional e conceituaI de acordo com regras rígidas, tendo um início, meio e fim. No início, a matéria, sendo suscetível de assumir uma forma diferente, se realiza através de uma causa eficiente que a transmuta em uma forma. A dynamis, sendo a capacidade de uma coisa ser outra além daquilo que ela é, como Ia potencialidade, encontra-se no mito (tradicional). A causa eficiente não é um demiurgo ou um Deus. O que inicia o processo (kinesis) da potência ao ato é o desenvolvimento do enredo, da trama, isto é, o mito enquanto fábula. Aristóteles vai dizer que "o mito é o princípio e como que a alma da tragédia"[7]. Eudora de Souza interpreta o vocábulo "mito" na Poética como tendo dois sentidos básicos: "a ação a imitar" e "a ação imitativa". Na primeira acepção tem-se o "mito" propriamente e na outra a "fábula". Assim, completa dizendo que "o mito (tradicional) seria, portanto, a matéria prima que o poeta transformará em fábula (trágica), elaborando-a conforme às leis da verossimilhança e necessidade"[8]. Neste contexto a tragédia resulta da atividade do poeta exercida sobre o mito criado pela população, o qual passava de uma geração a outra. Segundo a definição de Grassi "mythos" é a "palavra como testemunho imediato do que é e será verdadeiro, como auto-revelação do ser"[9]. Ao trabalhar com este horizonte de possibilidades para os destinos humanos, refletidos no mito, a tragédia propicia a educação do imaginário, que acontece na representação do enredo. Atinge-se, assim, a 1ª atualidade (enérgeia) como forma (eidos) de um pensamento. Neste nível acontece a educação do racional com a visão final do espetáculo.
Aquilo que se convencionou denominar 1ª atualidade no fim da primeira parte do esquema toma-se uma 2ªpotencialidade, inaugurando um momento novo na interpretação pedagógica da tragédia. Esta segunda etapa diz respeito ao efeito da assistência do drama trágico, que se propaga no público de uma maneira imprevisível. Ao invés de um processo (com início, meio e fim), neste outro nível impera a idéia de um estado compreendido como atividade. Neste estágio existe uma contemplação do que foi o resultado (produto) da primeira etapa. Aqui a enérgeia se distancia da kinesis, pois, enquanto atividade, ela é algo completo e atemporal, que não usa o tempo para se dar. Por exemplo: na construção de uma obra como uma casa, a base representa apenas a estruturação de uma parte do processo e não ainda o todo. Quando findou a construção, não está mais em vigor o processo, porque este chegou ao seu fim. Neste ponto se tem a visão de totalidade como acabamento, completude. Assim como na mitologia os deuses visualizavam tudo ao mesmo tempo, suprime-se aqui a idéia de processo enquanto sucessão ou marcha dos acontecimentos, ao ser instaurada uma compreensão do todo da encenação da poesia trágica. Alasdair MacIntyre analisa esta questão em Aristóteles, dizendo que nesta súbita intuição da atividade teórica, se "contempla os aspectos imutáveis e eternos das coisas, uma atividade na qual a mente, em virtude daquilo que é divino nela, contempla de um modo a reproduzir a atividade de Deus"[10].
É por isto que, etimologicamente, a palavra teoria está ligada, na sua origem grega, também à idéia de teatro, ou seja, à visão distanciada do espetáculo, do mesmo modo como Deus vê o mundo distanciado. Neste sentido, a tragédia, como arte filosófica, propicia ao espectador assumir a perspectiva divina contemplando, tendo a visão instantânea da totalidade.
Sistematizando melhor pode-se dizer, em termos pedagógicos, que o primeiro momento do esquema é o estágio da consciência, memorização e recordação de algo como um conceito. O resultado final é um produto, que, permanecendo nesta dimensão, torna-se uma mera reprodução, ou seja, o efeito é um ato de duplicação, repetição mecânica. O conhecimento, no sentido mais geral, também é um processo com início, meio e fim. O que aí ocorre é o conhecimento dos fenômenos através do contar, medir, ou mesmo pelo trabalho de entendimento de um discurso. No outro plano, o da contemplação, parte-se daquilo que foi supostamente reproduzido e se chega à catarse, que não se dá por intermédio do simples exercício, mas como efeito de uma representação que atingiu o seu ápice. Chega-se neste momento a compreensão da katharsis como purgação ou purificação dos sentimentos de piedade e medo. Há uma educação do sentimento, portanto, e, em conseqüência, do próprio caráter. A catarse será compreendida, então, como a saída daquela situação em que o ser humano encontrava-se preso no processo. Precisou do processo, porque é nele que se adquire a forma. Ao dissipar-se as coisas antigas, às quais o indivíduo estava amarrado, percebe-se a inexistência do aparato conceituaI. O elemento conceituaI foi importante como um meio, mas pode ser descartado porque aquilo que agora está em questão é a pura contemplação. O conhecimento do processo passa a ser uma atualidade como atividade, como um estado de visão da teoria. A educação teria a tarefa de passar o educando de um estágio de process%lhar para um estado de atividade/ver. É por isto que Grassi percebe na arte trágica a capacidade de fornecer ao homem premissas para uma "visão das próprias possibilidades". E isto confere à tragédia uma "importância educativa"[11].
Entretanto, a contemplação é um elemento estático, plástico, porque é originada no ato de intuição intelectual da teoria. No estado de pura atividade abandona-se a idéia de téchne e se passa ao estado de práxis, onde o fim está implícito na própria ação. Se a finalidade da ação neste nível não é a reprodução ou repetição de uma sucessão de fatos, nota-se, então, uma espécie de ruptura epistêmica, pois trata-se de estabelecer novas relações e possibilidades, construir teorias, ou seja, criar novas ações. Esta atualidade não ocorre no âmbito da conscientização, nem no nível da memória, das lembranças ou das recordações. Mas ela desencadeia a contemplação -o elemento chave -que abre uma estrutura mais fina, elevando o conhecimento ao plano filosófico. A 2a atualidade diferencia-se da Ia atualidade, porque induz a uma ação mais perene e não a uma outra potencialidade. Há uma saída de um determinado curso de fenômenos, pois foi atingida a intuição dos primeiros princípios. Filósofo, neste aspecto, é aquele que analisa os princípios geradores da ação.
Não significa que na orquestração posta pela tragédia, o resultado surja como imitação de atitudes dos atores em cena. A mímese da tragédia incorpora elementos que são próprios de ações de cunho elevado, do ethos. Conforme explica David Ross "o que a arte imita são "os caracteres, as emoções e as ações", não o mundo sensível mas o mundo do espírito humano"[12]. Isto implica em dizer que a educação, para Aristóteles, é a mímesis da enérgeia humana. Em Platão, a natureza é mímesis das formas ideais, cópia das realidades verdadeiras que estão em um mundo totalmente à parte, a saber, o Cosmos Noétos. E as artes, por sua vez, são imitações da natureza. O artista é aquele que trabalha com uma imagem falsa, enganadora do real, pois a arte reproduz, copia a verdadeira realidade em terceira dimensão. Aristóteles tem uma concepção de mímesis bem mais positiva do que seu mestre. Mímesis deixa de ser simulacro e passa a ser o fundamento da obra artística, uma espécie de modo de ser da obra de arte. No dizer de Victor Knoll, "a obra de arte é mímesis da physis", isto é, ela "se dá segundo o mesmo princípio da physis"[13]. No caso da composição das tragédias, o tragediógrafo extrai do mito (matéria prima) determinadas possibilidades interpretativas que não estão em um outro mundo e muito menos na matéria bruta simplesmente. Através da arte, o artista produz a obra segundo o princípio da physis. Talvez aqui resida um sentido mais preciso para o termo mímesis ou imitação.
Entende-se melhor neste momento da reflexão a divisão entre história e tragédia promovida por Aristóteles, pois, de acordo com o ponto de vista de Eudoro de Souza,
"se a história (mito tradicional) se refere especialmente ao particular, e a poesia (fábula trágica), ao universal, daíse conclui que a atividade imitativa do artista se exerce num trânsito sui generis do particular (história) para ouniversal (poesia): porobra do poeta, a história vem a ser tragédia "[14].
Knoll vai referendar esta relação entre a tragédia e a história afmnando que "a mímesis tem como material (objeto) a história, que converte em fábula, por força da techné segundo a maneira da physis (natureza)"[15].
Uma vez mais se reafinna então a tragédia com uma arte filosófica, porque desenvolve o conhecimento do universal, mostrando a ação humana segundo sua natureza. A análise da arte da tragédia resulta do vislumbre da ação em si, dado que ela possui um estatuto ontológico. Entretanto, existem diferenças entre a primeira filosofia e a tragédia, pois a metafísica procura dizer o ser, enquanto a tragédia visa mostrar o agir. Aristóteles vê na arte trágica o logos mostrado, uma verdadeira ontologia estética. É a representação da enérgeia, isto é, a encenação sobre a natureza do agir.
A modernidade reduziu a doutrina aristotélica das quatro causas na prevalência de apenas uma, a saber, a causa eficiente, que significa atribuir ao homem o poder de comando ou de controle técnico sobre os fenómenos. Por um lado, esta reflexão propõe o resgate de um paradigma estético de explicitação do real, mas não de uma maneira a-crítica ou a-histórica. Na verdade, está sendo permitida a reconstituição do real num contexto moderno de pensar que leva em consideração o diálogo com as tradições.
A educação tem uma importante função neste contexto de revivescência e de ressignificação de saberes presos ao passado, os quais possam auxiliar na configuração de uma relação homem-mundo mais harmónica, naturalizada e menos agressiva. Tais sabedorias são revisitadas porque não reforçam procedimentos que são próprios do estatuto científico da modernidade. Neste sentido, a sistematização teórica das tragédias realizada por Aristóteles pode assumir, hodiemamente, uma dimensão pedagógica, ao por em questão a discussão sobre o conhecimento mimético. A mímesis não é imitação, duplicação ou reprodução do real. Pelo contrário, na Poética, a mímesis se propõe a retirar conteúdos dos mitos, do mesmo modo que a escultura é extraída da pedra pelo artista. Assim como a metafísica trabalha com as categorias de atopotência, matéria-fonna, a poesia trágica dá a fonna, através da criação da fábula, àquela potencialidade contida nos mitos populares e tradicionais. Como diz Marcia Tiburi: "É uma exposição da verdade contida no material que não acontece através da sua dominação, mas através das descobertas ocorridas durante o processo"[16]. O caráter de descoberta, de não dominação, faz a mímesis ser uma atividade diferenciada dos conhecimentos técnicos propalados pela modemidade[17]O artista que constrói as tragédias não restringe a sua criação ao puramente dado no mito, mas retira sentidos que podem ser independentes daquele relato. É neste sentido que se pode dizer que a finalidade educativa pulsa no coração das tragédias, pois o poeta retira dos mitos -através da aprendizagem propriamente mimética -o elemento do trágico que irá aparecer em suas criações. No mundo antigo, o resultado deste trabalho garantia a presença do sublime no espetáculo, expresso no final imprevisível das tragédias. Constituía o enigma que tanta fascinação provocava no público, fazendo-o passar de uma fase de compreensão a outra, de um tipo de saber a outro.
A cultura técnica da era modema visa diretamente acabar com a idéia de imprevisibilidade e diferenciação em todas as esferas da vida, acreditando em novos procedimentos e conceituações unicamente na medida em que eles retroalimentem a padronização imposta pela racionalidade tecnológica, a qual já encontra-se instituída no sistema. Neste contexto, é mister que a pedagogia modema produza novos sentidos ao aprender, os quais possam questionar a ausência e esquecimento modernos de instâncias fundamentais da vida humana, como a educação do caráter, sentimento, imaginário e até do pensamento. Será que o aprender por mímesis não é um tipo de saber que pode ser recuperado das tradições gregas nesta perspectiva? Afinal, não pretende captar do real o idêntico, o mesmo, mas aquilo que é singular, diferenciado e contraditório, provocando assim a manifestação do trágico e a reflexão teórica que se traduz numa concepção de educação estética do agir humano.
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Pesquisa financiada pela fundacáo de Amparo a Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul - FAPERGS.
Autores:
Amarildo Luiz Trevisan
amarildoluiz[arroba]terra.com.br
Doutorando do Curso de Educacáo da Universidade Federal de Santa Maria - CEIUFSM.
Nedison Faria
Adjunto do Programa de Pós-Graduacáo em EducacFioICElUFSM e orientador da pesquisa.
[1] MICHELINI, Dorando J. La pragmatica transcendental y el asedio posriloderno a la racionalidad. ln: APEL, Karl O. Semiotica filosofica. Buenos Aires: Almagesto, 1994. p.63.
[2] JAEGER, Wemer. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p.321.
[3] FREITAG, Barbara. O indivíduo em formação: diálogos interdisciplinares sobre educação. São Paulo: Cortez, 1994. p. 33.
[4] Não está em questão o esquecimento enquanto uma ausência ao nível do discurso, antes sim de um fundamento que não pretende ou não consegue superar esta aparente dicotomia entre o teórico e o prático.
[5] ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p.209.
[6] PETERS, EE. Termos filosóficos gregos. 2.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983. p. 15.
[7] ARISTÓTELES, ap.dt., p.207.
[8] SOUZA, Eudoro. Introdução. ln: ARISTÓTELES. Poética. Porto Alegre: Globo, 1966. p. 57.
[9] GRASSI, Ernesto. Arte como antiarte: a teoria do belo no mundo antigo. São Paulo: Duas cidades, 1975. p. 124.
[10] MACINTYRE, Alaisdair. Justiça de quem? Qual racionalidade? São Paulo: Loyola, 1991. p. 157.
[11] GRASSI, Ernesto, op.cit., p.143.
[12] ROSS, Sir David. Aristóteles. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987. p. 282.
[13] KNOLL, Victor. Sobre a questão da mímesis. Revista do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. São Paulo: Discurso Editorial, n. 27, p. 68, 1996.
[14] SOUZA, Eudoro. Introdução. ln: Aristóteles, ap. dt., .58.
[15] KNOLL, Victor. Op.dt. p. 69.
[16] TIBURI, Marcia. Crítica da razão e mímesis no pensamento de Theodor W. Adorno. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995.
[17] Adorno empreende um resgate da noção de mímesis que é importante referir: "Mímesis constitui, no seio da filosofia adorniana uma noção chave. Por isso sua teoria estética, o seu pensamento sobre a arte, se toma tão imprescindível, por ser a obra de arte um lugar de experiência mimética. Lugar onde a mímesis de institui como conhecimento." lbidem, p.147.
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