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No texto seguinte, deparamos com dois sentidos da palavra potência: capacidade actual, poder actual (exemplo: a razão é uma potência da alma); possibilidade de vir a ser ou capacidade futura (exemplo: estar em potência para; nesse sentido, a semente é uma árvore em potência).
«Ora bem, detecta-se que uma potência da alma está em potência para coisas diversas de dois modos: um enquanto ao fazer e não fazer; o outro, enquanto ao fazer isto ou aquilo. Por exemplo, a vista umas vezes vê em acto e outras vezes não vê; e umas vezes vê branco e outras vezes vê negro. Por conseguinte, necessita-se de algo que se mova para duas coisas: para o exercício e uso do acto e para a determinação do acto. A primeira procede do sujeito, que umas vezes se encontra a operar e outras a não operar; a outra procede do objecto, e por ela se especifica o acto.
«Pois bem, a moção do sujeito procede de algum agente. E como todo o agente opera por um fim, como se demonstrou (questão 1, artigo 2), o princípio de esta moção procede do fim. Por isso, a arte a que pertence o fim move com os seus ditames a arte a que pertence o que é para o fim: Como a arte de navegar dita a de construção, segundo se diz em II Física (Aristóteles). Ora bem, o objecto da vontade é o bem comum, que tem razão de fim. » (.)
«Por sua parte, o objecto move determinando o acto, como um princípio formal, que especifica a acção em coisas naturais, de igual modo como o calor ao aquecer. Ora bem, o primeiro princípio formal é o ente e o verdadeiro universal, que é o objecto do entendimento. Logo, com este tipo de moção, o entendimento move a vontade, apresentando-lhe o seu objecto. (.)»
«Do mesmo modo que a imaginação de uma forma não move a vontade sem a estimação de conveniente ou nocivo, tampouco a apreensão do verdadeiro move sem a razão de bom e apetecível. Por isso, o entendimento especulativo não move, mas sim o entendimento prático, como se diz em III De anima.»
(Santo Tomas de Aquino, Suma de Teologia II, Parte I-II, pags 124-126, Cuestion 9, Artículo 1, Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, 2006; o bold é nosso)
Assim, o motivo, isto é, a força que move a vontade é o entendimento prático, não o entendimento especulativo ou filosófico. Este entendimento prático tem, obviamente, participação das sensações, dos sentimentos. É uma função intelectual que se banha no mundo sensorial.
Mas também o objecto é motivo, isto é, move, como causa final, a vontade e o entendimento prático que a precede no acto.
Assim, segundo São Tomás, os motivos da acção residem em dois pólos: o motivo ou motor interno, isto é, o par entendimento prático-vontade; o motivo ou motor externo, o objecto, que actua como causa final e confere especificidade à acção (exemplo: a maçã que desejamos comer; a mulher que desejamos beijar).
Que quer dizer São Tomás com a frase «o primeiro princípio formal é o ente e o verdadeiro universal, que é o objecto do entendimento»? O objecto (como por exemplo: maçã, moeda de oiro) é o ente? Ou este é o sujeito cognoscente e actuante? Ou são ambos, o objecto do lado de fora, e o entendimento do lado de dentro, em simultâneo, o primeiro princípio formal da acção, sendo a vontade um meio para a concretizar?
A palavra ente, que designa «o que é», é polissémica no vocabulário de São Tomás e de diversos filósofos.
«Como en los ejemplos aducidos, también el ente se predica de diversas maneras. Sin embargo, todo ente se dice por orden a uno primero. Pero esto primero no es el fin ni la causa eficiente, como en los ejemplos citados, sino el sujeto. Pues unos se dicen entes o que son porque tienen el ser por sí, como las sustancias, que se dicen entes principal y primariamente.
Otros, porque son pasiones o propiedades de la sustancia, como los acidentes propios de cada sustancia. Algunos se dicen entes porque son vía para la sustancia, como las generaciones y los movimientos. Otros se dizen entes porque son corrupciones de la sustancia» (Santo Tomás de Aquino, Comentario a la «Metafísica» de Aristóteles, in Clemente Fernandez S.I., Los filósofos medievales, II, Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, pag 726; o bold é nosso).
Assim cadeira e homem são entes, mas côres branca e azul, quente e frio, alegria e tristeza, nascimento e morte, ascensão e descida são também entes. Há diversos graus de entidade: o ente em grau supremo é Deus, porque é eterno, incriado, imóvel, pensamento puro, incorruptível, autosuficiente, acto puro, sem magnitude física. Em todos os outros entes, na medida em que há mistura de não ser, há um défice de entidade real. A tristeza, por exemplo, é um ente de razão porque consiste na privação ou défice da alegria.
«Es de saber, con todo, que esos modos de ser se pueden reducir a cuatro. Uno de ellos, que es el más exiguo, existe sólo en la razón, y es la negación y la privación, de las cuales decimos que son, porque la razón las trata como si fuesen unos entes, al afirmar o negar algo de ellas. » (Santo Tomás, ibid, pag 727; o bold é nosso).
Aristóteles definiu Deus como um pensamento activo, perfeito, imutável, imóvel, fonte do bem e causa indirecta, passiva, de todo o movimento no universo. E esse pensamento vivo é substância, isto é, a substância primeira imaterial, princípio da perfeição. Todavia, o neoaristotélico medieval SãoTomás de Aquino recusou atribuir a Deus a condição de substância.
Escreveu Aristóteles:
«E posto que há algo que move sendo ele mesmo imóvel, estando em acto, esse não pode mudar em nenhum sentido. (.) Trata-se de algo que existe necessariamente. E enquanto existe necessariamente é perfeito, e deste modo é princípio. (.)
«De um tal princípio pendem o Universo e a Natureza. E a sua actividade é como a mais perfeita que somos capazes de realizar por um breve intervalo de tempo (ele está sempre em tal estado, o que para nós é impossível), pois a sua actividade é prazer (por isso o estar desperto, a sensação e o pensamento são sumamente prazenteiros e em virtude disto são-no também as esperanças e as recordações). »
«Do que foi dito, resulta evidente, por conseguinte, que há uma certa substância (ousía) eterna e imóvel, e separada das coisas sensíveis. Foi igualmente demonstrado que tal substância não tem em absoluto, tamanho, mas carece de partes e é indivisível.» (Aristóteles, Metafísica, Livro 12, capítulo VII, 1072b-1073a; o bold é nosso).»
São Tomás de Aquino nega que Deus pertença a qualquer género, inclusive ao género substância:
«Artigo 5º
Deus pertence ou não pertence a algum género?
Objecções pelas quais parece que Deus pertence a algum género:
1. Substância é o ser que subsiste por si mesmo. Isto corresponde sobretudo a Deus. Portanto, Deus pertence ao género da substância. (.)
Resposta às objecções: À primeira há que dizer: A palavra substância não significa somente o que subsiste por si mesmo, pois o que é ser enquanto tal não é género, como se demonstrou. Mas significa a essência a que lhe corresponde ser assim, isto é, ser por si mesma. Sem embargo, o ser não é a sua própria essência. Deste modo, é claro que Deus não pertence ao género da substância.» (Santo Tomás de Aquino, Suma de Teologia, I, Parte I, Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, pags 119-120; o bold sem itálico é nosso).
Não é claro, a meu ver, este texto do doutor angélico: a frase «o ser não é a sua própria essência» é equívoca, como equívoca é a consequência «Deste modo, é claro que Deus não pertence ao género da substância». São Tomás joga com um duplo sentido da palavra ser: existência em geral; ente supremo, princípio criador. É certo que a substância é um ser-aí, um ser-algo, além de ser (existir em geral). Mas para fazer Deus escapar da redoma do género substância, que identifica com essência, o doutor angélico afirma – em contradição com outras passagens da Suma – que o ser (Deus) «não é a sua própria essência».
São Tomás usa nos dois sentidos conferidos por Aristóteles, com alguma ambiguidade, a palavra substância (ousía): objecto ou ente singular, único; essência, ou seja, forma comum (eidos), colectiva, a diversas substâncias individuais.
Deus, ser singular, é uma substância espiritual, imóvel e eterna, no dizer de Aristóteles; mas não é substância e não pertence ao género substância para São Tomás . Parece que o erro reside neste último.
Aliás, São Tomás admitiu que o Filho - uma das pessoas constituintes de Deus - é engendrado substancialmente do Pai, isto é, a substância (essência individualizada) do Filho nasce do Pai:
«Segundo o Damasceno, ingénito significa o mesmo que incriado, em um sentido: o substancial. E nisto se diferencia a substância criada da incriada.(...) É assim que não se pode deduzir que o Pai ingénito se distinga do Filho engendrado substancialmente, mas que só há distinção de relação, isto é, enquanto a relação filial não se dá no Pai.» (Santo Tomás de Aquino, Suma de Teología, Tomo I, pag 353).
Não pode haver dúvidas de que o Filho, parte integrante de Deus, possui substância. Como seria possível, pois, que Deus não pertencesse ao género substância?
Afinal, o que é substância, em sentido pleno do termo, isto é, de substância primeira (proté ousía), na doutrina aristotélica? É uma forma individualizada: pela matéria ou não. Deus é a substância incriada (a proté ousía), a forma pura sem matéria, a única substância em que a essência é a sua própria existência.
Pertence pois à espécie substância, sendo embora absolutamente singular e distinto, em grau superior, de todas as outras substâncias.
4. A luz não é forma substancial, segundo São Tomás de Aquino, e o calor «é e não é»
Na Suma de Teologia, uma das grandes obras da filosofia perene, Tomás de Aquino sustenta que a qualidade (por exemplo: cor branca)- um dos acidentes, na classificação de Aristóteles - resulta da forma substancial (por exemplo: homem). Nessa óptica, classifica a luz não como forma substancial, substância, mas como acidente, qualidade.
No Tratado da Criação Corpórea, da Suma de Teologia, escreveu Tomás de Aquino:
«Artigo 3
A luz é ou não qualidade?
Objecções pelas quais parece que a luz não é qualidade:
1) Toda a qualidade permanece no sujeito inclusive depois de desaparecer o agente. Exemplo: o calor permanece na água depois de tirá-la do fogo. Mas a luz não permanece no ar uma vez retirado o corpo que despede luz. Por tanto, a luz não é qualidade. (...)
Solução:
...Portanto há que dizer: assim como o calor é uma qualidade activa consequência da forma substancial do fogo, assim também a luz é uma qualidade activa consequência da forma substancial do sol ou de qualquer outro corpo com luz própria, se é que há outro. (...)
Resposta às objecções: 1. À primeira há que dizer: Como a qualidade é consequência da forma substancial, o sujeito comporta-se de maneira distinta ante a recepção da qualidade e a recepção da forma. Pois quando a matéria recebe completamente a forma, também fica firmemente ancorada nela a qualidade que é consequência da forma. Como se a água se convertesse em fogo.
Pelo contrário, quando a forma substancial é recebida incompleta, por certa incoacção, então a qualidade permanece algum tempo, mas não sempre. Como a água aquecida que volta ao seu estado natural. Mas a iluminação não é produzida por alguma mudança que se dá na matéria ao receber a forma substancial, como se houvesse alguma incoacção da forma.
Por isso a luz não permanece mais do que estando o agente.
3. À terceira há que dizer: Assim como o calor pela sua forma substancial coopera instrumentalmente na produção da forma do fogo, assim também a luz, em virtude dos corpos celestes, coopera instrumentalmente na produção de formas substanciais; e também em fazer que as cores sejam visíveis, enquanto é a qualidade do primeiro corpo sensível.»
(São Tomás de Aquino, Suma de Teología I, parte I, pags 631-632, Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid)
Note-se uma contradição na análise do doutor angélico: acima designa o calor como qualidade da forma substancial fogo e por último atribui forma substancial ao calor. Ou seja, num lado é acidente e no outro substância.
Autor:
Francisco Limpo de Faria Queiroz
www.filosofar.blogs.sapo.pt
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
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