Página anterior | Voltar ao início do trabalho | Página seguinte |
O Estado Moderno, por sua vez, é apoderado pelos interesses egoístas de uma aristocracia do dinheiro, que não tem qualquer interesse ou compromisso civilizatório. Ocorreu a desvalorização da política tal qual os gregos a viam – como uma atividade nobre – pois, em virtude da identificação entre governantes e governados, o candidato deve ser cada vez mais popular. Portanto, o Estado perde seu atributo de instrumento civilizatório para ser um instrumento popular.
A era moderna, em decorrência da ascensão irredutível dos movimentos democráticos, despolitizou as relações de poder e a própria política. O problema é que, historicamente, foi a partir de relações políticas que se construiu a civilização, enfatizando a separação entre governantes e governados. O movimento democrático confunde estes dois elementos separados historicamente.
O governo sempre foi superior ao povo, dando-lhes as direções a seguir. Se o governo se parece e corresponde aos anseios do povo, ele perde a sua capacidade de liderança e de guia do processo civilizatório. Mais precisamente, o governo não deve e não pode refletir a vontade do povo, sob pena de se tornar uma instância inferior e submetida a este. Esta idéia de Nietzsche é conflitiva com todos os teóricos democráticos, principalmente Rousseau e Marx. O governo que é governado pelos governados deixa de criar condições para o surgimento dos grandes homens, prejudicando a cultura pois, como vimos, a cultura da massa é medíocre e sufoca o aparecimento dos grandes homens.
Deste modo, a inversão entre Estado e povo é anti-histórica porque a política sempre foi um instrumento da cultura. Mais ainda: o auto-governo do povo acarretará a destruição do Estado, pois este torna-se algo supérfluo. A democracia, então, seria a forma histórica de decadência do Estado, constituindo-se como uma praga que se alastra e destrói os muros da cultura. O que destrói o Estado, então, é a dissolução da hierarquia e da desigualdade, liquidando a possibilidade de construção de uma nova cultura.
Em Nietzsche and Political Thought observa-se que
Cultura e Estado ¾ não nos devemos enganar a respeito disso ¾ são coisas antagônicas. (...) Todas as grandes épocas da cultura foram épocas de declínio político: o que é culturalmente grande foi sempre não-político e mesmo anti-político. (...) (WARREN, 1988, p. 69)
A democracia, para Nietzsche, se opõe ao sentido histórico pois adota a "religião da novidade", negativizando o passado. Ela é partidária da barbárie e da revolução, esquecendo o peso dos valores construídos historicamente, de modo a torna-los meras abstrações facilmente revogáveis.
Como vimos, para Nietzsche, a democracia é um movimento irreversível dentro da Europa que se apresenta em diferentes versões. A noção de democracia abrange, deste modo, o aspecto sociológico, político, histórico e cultural.
Neste seio democrático, é impossível não lidar com as massas para efeitos de preenchimento de funções políticas. Os partidos políticos, assim, tentam cooptar e convencer as massas, no intuito de obter os seus votos. O preenchimento das funções políticas passa pela consulta às massas, e isso terá fortes conseqüências. Na medida em que precisam dos votos, os partidos devem aparentar capazes de trazer o bem-estar, cujo conteúdo é ditado pelo povo. Logo, os políticos, para serem eleitos, devem absorver o que a massa define sobre bem-estar, se identificando com os ideais do populacho. Em conseqüência disto, o ter de lidar com as massas vai confundindo cada vez mais governantes e os governados.
O povo passa, então, a ser a fonte de legitimação do poder político porque, para ser adorado, o líder deve se identificar com o povo, realizando o que Nietzsche chama de pequena política. Mais propriamente, a cultura encontra-se em perigo pois os valores são ditados pela massa, que é essencialmente medíocre. Nietzsche vai mais além em sua crítica ao dizer que, se é preciso preservar os valores mais elevados da cultura, deve-se sair da política, já que esta se tornou uma coisa de medíocres. O próprio sufrágio universal não é um direito, mas sim uma concessão, porque não foi conquistado tal qual o movimento democrático narra.
Mesmo assim, a própria democracia não acontece na prática. Ela perde o seu sentido próprio na medida em que a vontade do povo não é efetivamente expressa, seja porque a do líder influencia, seja porque o sufrágio não é unânime. Assim, a democracia, enquanto auto-governo do povo e para o povo, não existe.
Com relação ao cristianismo, podemos dizer que a democracia mantém uma relação íntima. A própria divisão das coisas entre bem e mal influenciou o movimento democrático, tornando-o um cristianismo laiscizado. Em Nietzsche and Political Thought, diz-se que
Com a queda da cultura moral cristã, contudo, o Estado foi deixado com as exigências de sentido, mas sem possuir, ainda que paroquialmente, o tipo de cultura que tinha uma vez organizado estas exigências e fornecido as experiências de sentido. A crise de legitimidade da visão-de-mundo moral cristã tem uma dimensão política, na medida em que o Estado perde os seus meios religiosos de legitimação. Na medida em que a perda da cultura moral cristã ocorre sem a formação de um eu soberano, cria-se a oportunidade para que o Estado forneça sua própria legitimação manipulando as auto-identidades. Dessa maneira, o Estado assume o papel deixado vago pela Igreja. Unicamente no período moderno, então, torna-se possível para o Estado explorar diretamente as necessidades reflexivas, provendo uma identidade substitutiva para o eu em relação à comunidade. (WARREN, 1988, p. 66)
Em virtude desta condição, é preciso que os homens que queiram se contrapor à democracia sejam muito fortes e desejosos pois, no mundo moderno, impulsionou-se a feminização e a fragilização dos indivíduos. Este mundo é uma doença que vai tomando o homem e fragilizando-o de modo a desprovê-lo de qualidades. Para evitar isso, os novos filósofos devem apoiar a sua moral na vida, e não na morte, de modo a transvalorar a dicotomia entre bem e mal.
Os novos filósofos, segundo Nietzsche, devem ter coragem e audácia pra ir contra o rebanho, representado pela mediocrização da cultura. O homem é um ser individual e pleno de capacidades e, quando ele se desenvolve no rebanho, este passa a aniquilar a potencialidade criadora da vida que o indivíduo tem. O futuro do homem deve sempre ser produto da sua vontade, e não da vontade do rebanho; assim, a coragem é um elemento essencial para enfrentar este rebanho, pois o que lhe é diferente é visto com maus olhos.
Na verdade, o homem moderno só reconhece a figura do espelho dele, que seja igual a ele e, em decorrência disto, o rebanho sempre joga pedras nos diferentes. O próprio grande homem, tendo em vista a força irreversível da democracia, pode ser engolido por este movimento democrático a qualquer momento. O rebanho é tirânico e, se a sua tirania for eficiente, a possibilidade da construção de grandes homens se reduz na mesma proporção da coragem de se contrapor ao mundo moderno. O homem especial, o excepcional, não só se vê perseguido como também é forçado a introjetar algum tipo de culpa, condenando a si mesmo por não ser medíocre, por não ter uma alma de rebanho.
Havendo uma linguagem do forte, há por sua vez uma do fraco, uma linguagem do rebanho. É dela que se deve precaver. Há nela um evidente discurso do ressentimento, que atribui todas as desgraças do mundo e da sua vida aos outros. Incapaz de assumir a sua responsabilidade pessoal (atributo apenas dos fortes), o medíocre transfere a causa dos seus inúmeros fracassos e decepções a tudo o que está além e acima dele. O sentimento do rebanho - expressão coletiva do medíocre e do baixo - volta-se então contra o que se destaca acusando-o de não ter fracassado e sucumbido na vida como os demais.
Neste sentido, Nietzsche inverte o primado marxista de que as idéias dominantes são as da classe dominante. Para Nietzsche, ao contrário, são os dominadores que têm que se precaver das perigosas e ameaçadoras idéias dos dominados, invejosas e pervertidas que foram exatamente por terem sido de alguma forma oprimidos.
NIETZSCHE, Friedrich. O Estado entre os gregos. Disponível em:
WARREN, Mark. Nietzsche and political thought. Massachusetts: The MIT Press, 1988 [trad.: Noéli Correia de Melo Sobrinho]
Autor:
Felipe Dutra Asensi
Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Graduando de Direito pela Universidade Federal Fluminense e Mestrando em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente trabalha com pesquisas no âmbito da teoria política e das instituições CIENTISTA SOCIAL formado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e ADVOGADO formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre e Doutorando em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). Aperfeiçoamento em Derechos Fundamentales y Globalización pela Universidad Complutense de Madrid (UCM). Pesquisador do Laboratório de Pesquisas sobre Práticas de Integralidade em Saúde (LAPPIS/UERJ), da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV/RJ) e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RJ). Professor de Argumentação Jurídica, Direito do Trabalho e Sociologia Urbana dos cursos de férias da Universidade Estácio de Sá (UNESA).
democráticas.
Fonte: Jus Navigandi nº 757, Julho de 2007
Texto elaborado em 05.2005
Página anterior | Voltar ao início do trabalho | Página seguinte |
|
|