O objetivo deste texto é, a partir de uma breve análise do processo de racionalização da música e de suas consequências sobre as formas de experiência musical, apresentar alguns aspectos do pensamento de Theodor W. Adorno sobre as formas de inserção da música no mundo administrado, e, em seguida, realizar um breve contraponto entre as idéias adornianas e a perspectiva de Walter Benjamin sobre as possibilidades abertas pelas novas técnicas de produção e de reprodução no domínio da arte.
"O próprio conceito de gosto está ultrapassado.
A arte responsável orienta-se por critérios que se aproximam muito dos do conhecimento:
o lógico e o ilógico, o verdadeiro e o falso. De resto, já não há campo para escolha."[1].
O desenvolvimento da música ocidental entendido como um processo histórico de longa duração, abre-se a distintas interpretações de seus possíveis sentidos enquanto parte do desenvolvimento da sociedade como um todo. Criando elos puramente racionais entre os mais variados elementos constitutivos dessa música, ou seja, postulando um desenvolvimento teleológico e tipicamente ideal de determinados fenômenos e processos históricos fundamentais para sua formação, Max Weber encontrou na história dessa música um exemplo paradigmático de ação de uma racionalidade tipicamente ocidental[2]Inscrito no seio do processo de "desencantamento do mundo", ou até mesmo antecipando-o, o movimento de progressiva racionalização da música ocidental libertou-a de suas amarras em outras esferas da vida social, especialmente na esfera da religião. Isso significa que, através da objetivação do material sonoro alcançada com da dominação da natureza pela técnica, a música passa (tendencialmente) a obedecer somente às exigências intrínsecas de seu material sonoro. Se, por um lado, foi justamente essa objetivação o que possibilitou o surgimento de todo o patrimônio musical ocidental, a chamada "grande música", por outro, esse processo também revela a tendência inerente à "racionalidade ocidental judaico-cristã" de submeter todos os âmbitos da vida humana à possibilidade de previsão e cálculo através de procedimentos técnico-racionais, tendência que mostra toda sua força a partir da modernidade.
Entendido em seu sentido amplo, o processo de "desencatamento do mundo", ou seja, de racionalização das condutas, conduz à cisão da vida em várias esferas. Isso significa que as diversas modalidades de ações (política, econômica, etc.) que se confundem em um mundo "encantado" começam, na modernidade, a se diferenciar em relação ao sentido que as engendra. Esse processo, que alimenta, ao mesmo tempo que é alimentado por transformações cada vez mais intensas nas estruturas sociais impulsionadas pelo desenvolvimento da técnica e do capitalismo, acompanha o fenômeno que Walter Benjamin identificou como o declínio da tradição. Ou seja, as formas de experiência coletivas, que tinham na tradição e memória comuns o meio através do qual se garantia a possibilidade de sua contínua retransmissão e renovação, tinham se constituído com base em uma organização social fundada na comunidade e no trabalho artesanal[3]Dentro dessa perspectiva que nos oferece Benjamin, podemos entender que o processo de objetivação do material musical também segue uma dinâmica semelhante. Tomando como paradigma o desenvolvimento da notação musical especificamente ocidental, observamos que, desde o século XI, este desenvolvimento caminha cada vez mais em direção à substituição de uma experiência musical prévia pela precisão e coerência dos signos musicais. Se, em um primeiro momento, essa tendência se expande pela necessidade da Igreja Católica de preservar e expandir a centralização dos usos e costumes em torno da música, a partir do Renascimento ela ganha o forte impulso da cientificização e tecnicização que se expandem em vários domínios da vida social. Com isso, a música vai paulatinamente se descolando de uma ligação concreta com as demais dimensões da vida social. E, nesse sentido, manifesta-se a perda de uma experiência coletiva e a elevação da figura solitária do compositor; sua obra, que nasce do isolamento, se dirige ao indivíduo isolado[4]
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