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Guerreiro Ramos - mulato baiano de família pobre – definia-se na esteira dessa tradição, a negação povo e sua desqualificação como sujeito era reiterada por um legítimo representante desse contingente social, a obnubilação da consciência atingia mesmo os mais salientes; seja pela força direta e abrupta da dominação cultural, seja pelas sutis armadilhas que a ideologia dominante impõe aos egressos das classes baixas: a intelectualização fútil, a ascensão social e a rara permeabilidade das instituições, que podem cooptar o intruso, oferecendo-lhe as benesses de status e consideração e/ou insuflando-lhe a sugestiva noção de que, mesmo sendo diferente dos de cima, já não pertence aos de baixo, não se reconhece neles, como um deles, torna-se uma espécie de «livre» pensador[1]
Entretanto, com o progressivo advento das classes dominadas, do povo, ao cenário político brasileiro, criou-se uma demanda no sentido de redefinir a estrutura social e política do Brasil, e erigir a «Nação» - na acepção que lhe foi dada[2]Se anteriormente grande parte dos intelectuais atestava a inexistência do povo, lamentava tal ausência e sonhava organizar a Nação a partir de cima (Alberto Torres, p.ex.), na passagem para a segunda metade do séc. XX, cabia ouvir a voz rouca das ruas; não era mais possível pensar o Brasil sem considerar seriamente tal fato. Guerreiro Ramos não foi insensível a tal mudança, a partir da década de 1950, empreendeu ferina crítica à sociologia e ao pensamento social no Brasil, condenando a alienação da «elite colonizada e estúpida» e buscando uma elaboração científica em sintonia com as novas formas de consciência que emergiam do povo e das ânsias de autonomia nacional, de criação da Nação.
Para Guerreiro Ramos a nossa formação econômica, política e social dependente foi erigida sob as hostes do colonialismo cultural, da subordinação mental da elite nativa em relação à cultura dos países dominantes. A visão etnocêntrica ancorada na cultura européia e norte-americana teria disseminado entre nós uma concepção alienada da «realidade nacional», homogeneizadora e propagadora de um universalismo abstrato que relegava a especificidade do «fenômeno nacional».
Essa visão alienadora, segundo ele, tentava solapar as contradições da sociedade brasileira, desconsiderando a originalidade da estrutura social, tomando-a como simples reflexo, imitação vil das determinações reinantes nos países de capitalismo central, avançado. Tal modalidade de pensamento intentava uniformizar o diferente, apagar os antagonismos, isolar o estranho, abafar o ruído, sincronizar os tempos históricos. A vivência nacional, situada numa outra fase cultural[3]reclamava fidelidade à sua própria temporalidade, sua condição de «contemporaneidade do não-coetâneo»[4] instaurava uma existência cultural própria e requisitava uma dialética específica.
Era mister - então - fazer uso da razão sociológica, da capacidade da sociologia de aplicar(se) seu instrumental, de rever-se, refletir a respeito de si e com relação à estrutura social à qual estava vinculada, refazendo(se) métodos e objetivos. Ao método crítico capaz de proceder a uma reflexão dessa natureza, assimilando criticamente as contribuições teóricas «importadas», Guerreiro Ramos chamou «redução sociológica».
A redução sociológica – segundo Guerreiro Ramos - é uma «atitude parentética», não-espontânea: põe entre parênteses os fenômenos, recusando a afirmação ou aceitação imediata das percepções, desnaturalizando a apreensão social e impondo filtros ao pensar. A redução tinha como suposto a «universalidade dos enunciados gerais da ciência», todavia, propalava o «caráter subsidiário da produção científica estrangeira», bem como o comprometimento do sociólogo com a realidade em questão e no que diz respeito à fase cultural na qual a sociedade se encontra (Ramos, 1996, p. 72).
Na fundamentação dessa atitude metódica repousava a noção de que a realidade social - em sua complexidade - é tecida por entes em sistemática conexão de sentido, não sendo fortuitos os fatos da vida social, mas «referidos uns aos outros por um vínculo de significação» (Ramos, 1996, p. 72). Induz daí a categoria «mundo», na qual os sujeitos, sua consciência e os objetos estão intrinsecamente relacionados, existindo em profunda imbricação uns com os outros; o homem como ser social, como ser-no-mundo (e ser-domundo) está fatalmente inserido num dado contexto, suas ações, formas de consciência, valores, sua visão de mundo, está ancorada na sua existência (espaço-temporal) historicamente particular. Infere, assim, que o pensar (e o pensamento científico em particular) só pode ser algo relativizado, relacionado, dirigido a partir de uma perspectiva determinada. O sociólogo, como sujeito investigador, instrumentaliza esse perspectivismo (que é social e não individual) na procura de um conhecimento autêntico, cuja funcionalidade esteja em conformidade com uma intencionalidade referida à estrutura social e suas significações. Não há, portanto, posição neutra, «todo teorizar é extensão do fazer ao nível da representação» (Ramos, 1996: 108).
Destarte, urgia à sociologia crítica atentar para a práxis, que norteia os «imperativos práticos» do saber; a redução sociológica não é uma atitude ingênua, desvinculada e desatenta de suas implicações, das particularidades de uma dada estrutura social e funções conseqüentes derivam responsabilidades e emanam projetos, conhecer é sobretudo - transformar.
Guerreiro Ramos, perseguindo a possibilidade da autoconsciência da sociedade brasileira, põe-se em combate por uma sociologia engajada com a realidade nacional, uma tarefa que ele próprio qualificou como «das mais desagradáveis» (Ramos, 1953: 5). Acertando contas com o pensamento social no Brasil[5]e terçando armas com vários intelectuais – como Florestan Fernandes, Luiz Aguiar Costa Pinto, Roger Bastide etc. – empreendeu verdadeira cruzada contra a transplantação irrefletida de idéias e o descompromisso com o desenvolvimento e autonomia da sociedade brasileira, não poupando o que chamou de «sociologia importada», «consular», «enlatada». Também não escapou de sua mira as tentativas de fazer da sociologia um saber esotérico, elitista ou proselitista, certo «bovarismo» de ostentar um saber inalcançável pelos indivíduos comuns, pretensamente fixado em concepções profissionais e rotineiras do fazer sociológico. Distingue severamente a «ciência em hábito», que defendia tais posições elitistas, da «ciência em ato», transformadora, imbuída da consciência da necessidade de promover a autodeterminação da sociedade. A sociologia- para ele - não deveria ser «ofício», «especialização», sua vocação deve ser de resgatar o homem ao homem», «tornar-se saber de salvação» (Ramos, 1996: 10-11).
No entender de Guerreiro Ramos, só na segunda metade do séc. XX nasce - de fato - uma intelligentzia no Brasil, ela é engendrada pelo amadurecimento da sociedade brasileira e o nascimento do povo.
O cardinal fato político da vida brasileira nos dias de hoje é a existência do povo. Esta nova realidade sociológica necessariamente impõe a reorganização social e política do País, apta a dar forma aos impulsos da nova sociedade que se constituiu.... A tomada de consciência de que o povo é a novidade radical do Brasil na presente época constitui requisito imprescindível, do ponto de vista teórico e prático. (Ramos, 1961: 42 e 46).
Cabia então aos intelectuais tomar posição, postar-se politicamente, não de modo privado, mas tornando públicas suas escolhas e suas funções:
Formou-se no Brasil uma concepção segundo a qual a vida da inteligência é incompatível com a política [...] Ao contrário, num país como o Brasil, o intelectual que viva profundamente a ética da inteligência, reconhecerá que o seu magistério terá de ser deliberadamente, intencionalmente político. (Ibidem, 1961: 190).
Não havia mais espaço para o dandismo, para a afetação, havia que se descer dos púlpitos e das cátedras, das posições olímpicas que recusavam a se conspurcar com a miséria cotidiana, pois que a contraface da missão é necessariamente a omissão.
Há na sociedade brasileira, atualmente, um oco a preencher, que decorre da perda de exemplaridades das idéias, por meio das quais justificava sua dominação uma classe há duas décadas em processo de aposentadoria histórica. Está diante de nós a tarefa de organizar um Estado Nacional, ou seja, de configurar politicamente o povo brasileiro. Para o intelectual, assumir essa tarefa não corresponde a ser adminículo de uma classe particular. Nas condições atuais da sociedade brasileira, está aberta ao intelectual, pela primeira vez entre nós, a oportunidade de valor por si, na proporção do teor concreto das idéias que exprime. Tais condições necessariamente politizam o trabalho intelectual orientado por um propósito substitutivo. E a intelligentzia não é esteticista. Pretende sempre a fundação de algo e o exercício de tarefa pedagógica. ((Ramos, 1961: 190)[6].
Como intelligentzia, insubmissos a uma dada classe, os intelectuais teriam como missão interpretar a realidade brasileira, elucidá-la, organizar e educar o povo e alicerçar o Estado Nacional.
Ao debruçar-se sobre as construções do pensamento social no Brasil, Guerreiro Ramos estabeleceu uma relação tanto próxima quanto crítica com referência à herança cultural e a prática intelectual; combateu duramente o que considerava alienação, amorfismo e inautenticidade (Ramos, 1960: 93) predominantes na sociedade e produção intelectual brasileira, assim como retomou o que avaliava como uma tradição crítica de uma corrente razoavelmente lúcida do pensamento social no Brasil, integrada por aqueles que, segundo ele, produziram reflexões voltadas à fidelidade e concretude da sociedade brasileira, e dotadas de uma perspicácia de análise que procurava romper o colonialismo cultural. Portanto, desafinando o coro dos contentes, procurou negar a legitimidade da transplantação de idéias e afirmar a validade de dada herança que, mesmo em seus antagonismos, fornecia elementos para a superação dos dilemas intelectuais da periferia do capitalismo.
Manteve, desse modo, uma relação viva e fértil com a herança cultural, dialogando criticamente com os intelectuais contemporâneos e os que precederam. Tal debate cultural era-lhe imprescindível, a convivência com a herança e a tradição intelectual passava pelo acerto de contas e pela redenção cultural, lidar com tal passado seria um constante combate, não um remexer o baú de ossos.
Atualmente, em geral, lidamos com nossa herança como um médico examina um cadáver: identificamo-nos com ela, mas não lhe reconhecemos vida. Os intelectuais no Brasil -como em todos os pontos vitais da nossa formação social - ainda vivem as contradições da submissão, ainda persiste o estranhamento para com a realidade brasileira e suas misérias, a indignação reinante é mais para com o que somos que contra o que nos oprime. Se a ruptura definitiva com tal situação é uma decisão cultural, não deixa – entretanto -também de ser uma atitude política. Embora destronados dos púlpitos donde pregavam aos ignaros, lançando reprimendas e conselhos, a maioria tragicamente dominante da «inteligência» brasileira entrincheirou-se nos gabinetes, abrigados sob a institucionalização e a profissionalização[7]as carreiras substituíram as missões e a altivez intangível dos «sinceramente compadecidos» deu lugar a certo cinismo. Por outro lado, a pretexto de afirmar – paradoxalmente - a convicção na impotência da convicção, pleiteia-se a liberdade de eximir-se.
A ciência não pode ser refém da vida. Há momentos – como já foi dito por Tobias Barreto (Meneses, 1962: 118) - em que o entusiasmo também tem o direito de resolver questões. Principalmente, se a «sensatez» se recusa.
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ISSN 1517-6916 CAOS - Revista Eletrônica de Ciências Sociais Número 11 – Outubro de 2006 Pág. 84-92
Autor:
Edison Bariani
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista – UNESP/Araraquara-SP - e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
[1] A idéia da negação ou invalidação do povo como grupo ou sujeito vem desde viajantes com Louis Couty e Saint-Hilaire, e passa por uma «corrente» razoavelmente crítica do pensamento social no Brasil, que inclui Silvio Romero, Euclides da Cunha, Alberto Torres e Oliveira Viana - corrente ao qual Guerreiro Ramos estava ligado (Ramos, 1953, 1957)..
[2] «Nação» não como um território e seu povo, mas como espaço da autonomia e soberania, tanto política e econômica quanto cultural; emanação do espírito de um povo.
[3] Guerreiro Ramos compartilhava uma concepção faseológica da história, segundo ele, alicerçada nos trabalhos de Carl Müller-Lyer: Fases da cultura (1908), O sentido da vida e a ciência (1910) e A família (1912), dentre outros. Hélio Jaguaribe também utilizou amplamente essa concepção.
[4] Conceito tomado a W. Pinder, denotando a coexistência de tempos histórico-culturais distintos.
[5] Guerreiro Ramos distingue, no pensamento social brasileiro, basicamente, duas correntes: uma «crítica», que «representa o esforço de criação» e descolonização (Silvio Romero, Euclides da Cunha, Alberto Torres, Oliveira Vianna) e outra «que consiste simplesmente numa glosa das orientações doutrinárias vigentes nos centros de cultura estrangeiros» (Tobias Barreto, Pontes de Miranda, Tristão de Ataíde, Pinto Ferreira, Mário Lins etc.). Tais correntes emolduram o quadro intelectual, entretanto, admitem, segundo ele, sub-ramos, matizes e situações específicas (Ramos, 1953: 10-12).
[6] Entretanto alerta para o fato de que: «Ordinariamente se considera o povo como conjunto de cidadãos em menoridade. Esta concepção é falsa hoje no Brasil. O povo, coletivamente, é o principal titular de capacidade econômica, social, política e cultural. Corresponde a um retrocesso a pretensão de tutelá-lo [...] O povo se educa a si próprio», todavia, «O povo não pode dirigir o processo histórico-social senão por intermédio de sua vanguarda. A vanguarda do povo é o dirigente direto do processo nacional. O povo como totalidade é dirigente indireto» (Ramos, 1960: 230). Mannheim (1974: 80-2) e sua formulação da inteligência como camada intersticial capaz de síntese, norteia aqui as posições de Guerreiro Ramos.
[7] Entre os intelectuais brasileiros, a partir dos anos 1990, o engajamento deu lugar á profissionalização (LAHUERTA, 1999).
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