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Dominick LaCapra: tecendo textos e contextos (página 2)

Edison Bariani

A leitura e interpretação dos textos é também forma de estruturar contextos, bem como a elaboração dos contextos é também modo de construir a (re)significação dos textos[2]. Todavia, se o significado do texto está delimitado pelo contexto, por sua vez, tal contexto não pode ser simplesmente recortado por procedimentos simplórios e de modo não-problematizado, assim como, de outro lado, há o risco de uma excessiva contextualização, que ocorre quando o texto é imerso em demasia no próprio tempo e lugar do qual emana, impedindo um entendimento receptivo e restringindo a interação (diálogo) entre o passado e o presente (LACAPRA, 1992: 132)[3].

Nessa rede, o estudioso (no caso, o historiador) deve esforçar-se para entender, de modo conjunto, tanto a imbricação entre o relatado e o acontecido, quanto o que algo significou no passado e o que pode significar no momento atual; esvai-se aqui mais um par dicotômico, esse muito caro à historiografia: sincronia e diacronia. A reconstrução do passado não pode ser apartada da conversação com esse mesmo passado e, ao historiador, impõe-se também historizar-se, situar historicamente não só o estudado mas também a si próprio (estudioso), estabelecendo conscientemente sua perspectiva de modo a abordar – indiretamente – os problemas por meio de conversações com os mortos e os vivos sob cuidadosas e controladas condições, sob pena de, ao ignorar tais cautelas, enroscar-se na própria rede construída.

A relação dialogal entre o historiador e o "objeto" de estudo traz à tona a função de seleção, julgamento, estilização, ironia, paródia, autoparódia e polêmica no uso que aquele faz da linguagem, ela própria uma prática significante que está conectada a outras práticas significantes na vida humana. Tal uso deve ser mediado por fatores críticos, já que – analogamente – os métodos e pontos de vista de outros historiadores e informantes influem na construção do estudado. Entretanto, o texto é uma rede de resistência e o diálogo com o passado uma rua de mão dupla: o historiador deve endereçar questões ao passado e também rever(-se) à luz do retorno que obtém – para LaCapra, um bom leitor deve ser um bom ouvinte.

Como ouvinte atencioso, compete ao historiador deixar falar os silêncios e paradoxos do texto, resistir à tentação de preencher esses silêncios com conteúdo alheio e/ou anacrônico e de por ordem no caos ou tornar familiar o que não o é, o respeito pelas "imperfeições" do texto pode ser essencial para garantir fidelidade aos seus termos. Desconsiderar isso é incorrer no fascínio da demiurgia, deixando de ser pesquisador para macular o material, movido por uma paixão narcisista de projeção do presente sobre o passado e prejudicando a conformação do texto e a reconstrução contexto – que passa a ser visto somente nos termos do presente (providencial).

Narcisismo é – segundo o autor – uma reação unilateral e atrativa que envolve a impossível e imaginária tentativa de integrar totalmente o eu, num esforço para elaborar uma unificada e completa perspectiva, buscando uma purificação que exorciza o outro e livrando-se da inconveniência da alteridade. É uma resposta à ansiedade de transferência, ao medo de possessão pelo passado e perda do "controle" sobre ele e sobre si mesmo, dando vazão à tentativa de exercer total domínio sobre o "objeto" de estudo por meio de procedimentos ideologicamente suspeitos. Notoriamente inspirada em Freud, a transferência não é simplesmente um desvio, algo residual, é forma de relação entre o historiador e o "objeto" que deve ser escoimada por procedimentos críticos, o preço de ignorá-la ou satanizá-la é fatalmente abdicar de uma aproximação necessária e controlada com o que está sendo estudado. Uma transferência não-crítica pode levar ao desconhecimento e à imputação ao outro do que alguém recusa reconhecer em si próprio. Nessa relação de aproximação, o historiador tem como mediadores as palavras e os silêncios, que podem ser importantes interlocutores para ele; uma cuidadosa lida com a ansiedade de transferência pode levar o pesquisador a perguntar sobre questões até então imperceptíveis (LACAPRA, 1992: 72-3).

Desse modo, a abordagem do texto e do autor – e sua vida, obra, grupo social, formas de discurso etc. - são pautadas por complexas interações que não comportam simplesmente estabelecer uma rígida hierarquia de determinações e postular funções. Primordialmente, adverte LaCapra (1985: 36-7), deve-se investigar o que um autor não-explicita ou intencionalmente pensa e o que constitui sua questão central, deve-se – retomando Heidegger – "pensar o impensado", pois, ao considerar o texto simplesmente como encarnação de algo ou realização de uma intencionalidade, perde-se a oportunidade de reconstruir de modo plausível a relação entre intenções e o que se pode interrogar ou revelar por meio do texto, uma vez que esta relação inclui múltiplas formas de tensão, inclusive de autocontestação. A concepção de que as intenções do autor constituem o principal critério para chegar a uma interpretação válida do texto é motivada unicamente por estreitas pressuposições – sejam morais ou científicas.

A relação entre a vida do autor e o texto é tampouco algo mecanicamente correlato, podem não somente não coincidir e até mesmo desafiar um ao outro, os textos não são apenas compensatórios ou sintomáticos mas suplementares, podem acrescentar algo à vida comum que, em termos de fatos, não existiria sem eles, são constitutivos e não residuais em relação à vivência do autor. Isto posto, não se pode pleitear uma relação na qual o entendimento da "vida real" leva a uma apreensão causal ou interpretativa do texto, até porque – sugere LaCapra (1985: 37-40) – um escritor pode mobilizar-se mais para defender ou realizar algo em seu texto que em sua vida, ou mesmo pode o "texto da vida" ser privilegiado em relação aos escritos. Assim, a biografia, como espaço de interação entre textos vividos e escritos, implica que os textos são eles mesmos importantes eventos na vida, especialmente – por exemplo - na vida de alguém como Sartre, que escrevia tanto e na forma de um investimento existencial (LACAPRA, 1985: 185).

Mostra-se, de igual modo, insuficiente o procedimento ordinário de identificar influências ou paradigmas comuns a autores e "escolas" por meio da enumeração e descrição de pressuposições compartilhadas; não há absoluta originalidade, isto é um "mito", corroborado por apressadas comparações. O que pode ser produtivo nesse caso é investigar como idéias comuns (a vários autores) podem funcionar de modos distintos em diferentes textos, corpus e contextos.

Quando considerada a questão do corpus – a obra, a relação entre unidade e diferenciação nos textos de um mesmo autor (ou até de diferentes obras de distintos autores de uma mesma época) –, esta é freqüentemente abordada de três diversas maneiras: continuidade entre textos (desenvolvimento linear), descontinuidade (mudança ou corte epistemológico entre estágios ou períodos) e síntese dialética (o último estágio supera o(s) anterior(es) em nível mais elevado). Todavia, tais modelos não dão conta – sempre segundo LaCapra – de entender a complexidade da questão, uma vez que os textos, não sendo algo estanque, aproximam-se e repelem-se, repetem-se e deslocam-se de inúmeras formas – inabarcáveis por estes modelos de inteligibilidade, que não resistem à tentação de promover uma unificação empobrecedora da diversidade.

No entanto, a recusa da uniformização não implica na simples rejeição das concepções de unidade, identidade e ordem em favor de uma antinômica e inconsciente celebração do caos e desmembramento, articula-se com a tentativa de reconstruir as normas e convenções que possibilitem lidar melhor com a crítica e a contestação (LACAPRA, 1985: 60-3). Por outro lado, a leitura mais "performática" do texto pode valorizar o virtuosismo e dar lugar ao abuso da licença para leitura, reduzindo o texto a um trampolim para vôos criativos ou demandas políticas. Há no momento duas tendências opostas de abordagem de texto: uma convencional (baseada na unidade, ordem, apego à documentação) que geralmente força a uniformização, e outra experimental, cujo risco iminente é de que caia no erro de afirmar meramente a fragmentação, o caos, a falta de centralidade etc.

Assim, o processo histórico é entendido por LaCapra em termos de uma agônica interação entre forças centrífugas e centrípetas que se repetem em mudanças significativas de maior ou menor intensidade, seja em si próprias ou em relação com seu tempo. Em tal formulação, lança mão da noção de repetição e variação (de J. Derrida), tomando a relação entre a longa tradição e tempo específico não nos termos de simples continuidade ou descontinuidade, mas como relação de forças na qual o texto não é mero momento, ilustração ou "objeto" autônomo, e sim "lugar" no qual se dá a intersecção (e variação) entre esses tempos, numa rede relacional.

Nessa rede, uma noção útil para o entendimento de algumas dessas variações – como, por exemplo, a relação entre "alta" cultura e cultural geral, erudita e popular, "grandes" textos e vulgarizadores – sem apelar às dicotomias usuais, é a carnavalização (noção tomada a M. Bakhtin) enquanto processo de interação por meio do qual aparentes oposições – corpo e mente, trabalho e brincadeira, positivo e negativo, alto e baixo, sério e jocoso – são relacionados um ao outro num ambivalente de contestatório intercâmbio no qual ambos são literal e figurativamente "recriados" (LACAPRA, 1985: 52).

Um tema recentemente em voga, a questão da retórica como modalidade discursiva, é vista pelo autor como algo que não deve ser inteiramente subordinado a um restrito modelo científico, nem concebida de modo puramente instrumental, não pode ser mero meio para pré-concebidos fins, sob o perigo de ser reduzida a uma moderna variante da tradicional idéia de uma coleção e táticas e estratégias para assegurar persuasão ou alcançar restritos interesses. Deve-se ter em vista que:

1) a retórica envolve um entendimento dialogal dos discursos e da "verdade";

2) inclui usos "performáticos" da linguagem;

3) releva a questão de como os textos são lidos;

4) excede as funções rotineiras e instrumentais da linguagem;

5) compreende a dialética do reconhecimento dos informantes;

6) levanta a questão da ambivalência e tensão no uso da linguagem;

7) sobrepõe-se a simples dicotomia entre ciência e retórica; e 8) pode tornar-se algo ideológico se não indicar seus limites e uma preocupação com a transformação (LACAPRA, 1995: 36-44).

As preocupações do autor com uma leitura tanto cuidadosa quanto arejada, estabelecendo verdadeiro diálogo – em via de mão-dupla – entre o passado e o presente, entre o estudioso e o que é estudado, não passa pela construção de imponentes sistemas e novas ortodoxias[4], preocupa-se com a transdisciplinaridade e a criatividade na investigação e investe duramente contra as idéias de história intelectual como terreno de descrição e análise de fatos verificáveis, como campo largo para exercício de subjetivismos, como prerrogativa de profissionais ou como passatempo de diletantes. Subsidia esse posicionamento a busca da possibilidade da história como vocação, forma de compromisso que não pode estar tutelada e confinada aos limites de uma disciplina, nem sua evolução submetida somente aos tribunais profissionais (LACAPRA, 1992: 11). A historiografia direciona-se a uma reflexão crítica e questões ideológicas não podem ser matéria de um ofício e muito menos de um entretenimento.

Assevera que, por vezes, as produções dizem mais sobre o historiador que propriamente sobre o estudado, já que revelam - na forma como tratam as questões - muito mais sobre as vicissitudes e preconceitos arraigados e não purgados na reflexão crítica. Investe então contra os nichos acadêmicos e o proselitismo dos estudiosos[5], dentre os quais, duas tentações atuais da crítica: 1) o reforço a um esnobe e suspeito elitismo que só considera a pureza dos cânones e leva à fácil equação entre a inovação formal e o radicalismo político; 2) o populismo, que promove o estudo de artefatos "não-canônicos", para o qual a manipulação de uma cultura de "massa" é positivamente aclamada ou causticamente condenada (LACAPRA, 1992: 112-3).

Alguns dos adversários do autor emergem nas entrelinhas de suas considerações: o positivismo, seu fetiche documental, empirismo e sacralização do factual e seus diques entre sujeito e objeto, passado e presente; o historicismo (e certo culturalismo) apegado aos particulares, avesso à generalização ou comparação histórica e amante da temporalidade inexpugnável que, não raras vezes, exila-se no irracionalismo e no subjetivismo; por fim, certo marxismo e sociologismo vulgares, irresistivelmente tentados pela teleologia, imanência e sínteses açodadas e diluidoras.

A todos LaCapra opõe uma teorização avessa às dicotomias e dualidades, concatenada por um constante trabalho de estabelecer relações, refazer percursos e reconsiderar posições sem preocupação atroz com sínteses abrangentes e definitivas. Seu trabalho esmera-se em tecer uma rede de relações e significados com base numa reciprocidade de perspectivas (herança da fenomenologia), cuja linha é o diálogo crítico entre os pontos. Trabalho árduo e interminável, verdadeiro work in progress, que pode levar tanto à compreensão de uma firme e ampla tessitura histórica (e mesmo à revisão do tecido esquecido e esgarçado), ao exercício enfadonho e improdutivo de costura dos remendos e, talvez, até à armadilha de emaranhar-nos em tantas conexões.

A história – e, no caso, a história intelectual – não pode ser simplesmente cerzida por inteiro, nem reconstruída em sua totalidade e reatada em todos os seus pontos. Não é possível juntar todas suas partes e ainda atar todas as pontas do passado e deste com o presente, já que o tempo não é unilinear. Algo sempre se perde, e certamente se perdeu ou sequer chegou a ser - e também é história, ou não haveria lugar para o estudo das utopias. Entretanto, a lição de LaCapra é que, na ânsia de cobrir-se com os véus da razão dualista, a história intelectual estava nua em seu reinado.

Referências bibliográficas

DOSSE, François. História e ciências sociais. Bauru: Edusc, 2004 (História).

LACAPRA, Dominick. Rethinking intellectual history; texts, contexts, language. 2nd ed., Ithaca: Cornell University Press, 1985.

______. History and criticism. 3nd ed., Ithaca; London: Cornell University Press, 1992.

SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Ensaio de ontologia fenomenológica. 5ª ed., Petrópolis: Vozes, 1997.

Notas

[1]O autor, como historiador, refere-se – mormente – a contextos temporais, em termos de passado; poderíamos, no entanto, também estender o raciocínio a contextos espaciais, à caracterização e situação de sociedades que compartilham o mesmo período histórico, embora geograficamente distinto - consideração esta a contragosto de certo relativismo para o qual toda sociedade tem seu 'tempo' historicamente particular, senão singular.

[2]Devemos advertir que, devido em parte à forma de exposição aqui adotada, não estamos nos atendo fielmente à terminologia do autor.

[3]De modo análogo, François Dosse (2004: 294) abordou tal impasse como o desafio de entender o texto e o contexto, em sua singularidade, "sem deixar de lado a mensagem que ele carrega tempo afora até nossa atualidade, o modo como nos fala de nossa contemporaneidade".

[4]Para LaCapra (1985, p. 66) não há atualmente estrita necessidade de maiores estabelecimentos teóricos, essa tarefa é circunstancial, conjuntural; há mesmo, no momento, uma excessiva preocupação com abordagens sociais ou sócio-culturais em detrimento da leitura e interpretação complexa dos textos. 

[5]Um exemplo atual - acrescentamos – é a ânsia de reconhecimento dos chamados "estudos culturais", como se fosse algo novo ou impossível de ser realizado sem a devida chancela institucional.

 

Autor:

Edison Bariani

edsnb[arroba]ig.com.br

Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia pela Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista – UNESP / Araraquara-SP – e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)

Fonte: Revista Espaço Acadêmico Nº61, Junho de 2006



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