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Portanto, ao passo que o conceito de raça implica a noção de algo definitivo e biológico, sendo baseado nos atributos biologicamente fundamentados, o conceito de etnicidade não pressupõe nada inato, trata-se de um fenômeno puramente social, produzido e reproduzido ao longo do tempo, onde através da socialização o indivíduo assimila os estilos de vida, normas e crenças de suas comunidades. Ressalta-se que a etnicidade pode ser central para a identidade do indivíduo e do grupo oferecendo uma linha de continuidade com o passado, mantida viva através das práticas das tradições culturais, não sendo estática nem imutável, mas variável e adaptável.
Mas o que vem a ser identidade cultural? Talvez se devesse falar de identidade "étnico-cultural", pois, ao se retratar de identidade de uma cultura, deve-se localizá-la num determinado tempo e espaço e no interior de um grupo étnico. Por sua vez, essa identidade estaria articulada a uma identidade nacional, determinada também historicamente.
Essa discussão sobre identidade étnica ou regional, no que diz respeito a propriedades ligadas à origem ou ao lugar de origem, Bourdieu classifica como um caso popular das lutas de classificações, de dar e se fazer conhecer, de fazer ou desfazer grupos, ou "a conservação ou a transformação das leis de formação dos preços materiais ou simbólicos ligados às manifestações simbólicas (objectivas e intencionais) da identidade social" (2003: 124). Essa questão simbólica envolve também certa dominação, ou melhor, a intimidação quando o que está em jogo não é a conquista nem a re-conquista de uma identidade, mas a "reapropriação colectiva deste poder sobre os princípios de construção e de avaliação de sua própria identidade de que o dominado abdica em proveito do dominante enquanto aceita ser negado ou nega-se" (2003: 125).
Nestas concepções de construção, avaliação, descaracterização ou retomada de identidades, insere-se o lugar, que focado sob objeto de análise pode ser trabalhado sob variados ângulos: como um conjunto de imagens, como unidade espacial, ou ainda na relação íntima com seus habitantes, uma relação de identidade. Nesta discussão sobre identidade, Mela (1999) aponta que para o indivíduo que opera num sistema social a identidade se apresenta como resultado de um confronto com os outros, o que o leva a construir uma representação de si próprio, de sua unidade pessoal, do papel desempenhado na sociedade.
Em um capítulo intitulado "Identidades culturais: Uma discussão em andamento", Escosteguy (2001) acredita que esse debate tornou-se um problema teórico a partir da modernidade, que foi quando a identidade passou a ser encarada como algo sujeito a mudanças e inovações, tema esse relacionado a sua inserção no mundo, sobre os indivíduos e suas identidades pessoais.
A mesma autora acredita que antes de adentrar no debate da constituição, retomada ou descaracterização das identidades culturais é preciso fazer referência ao contexto desta temática: modernidade ou pós-modernidade? Para Escosteguy (2001: 141) "a primeira condição é reconhecer a desestabilização gerada pela modernidade nessa discussão, assim como as implicações da problemática da pós-modernidade e seu interesse na (re)construção das identidades", no entanto, acredita que não há a necessidade de discutir, mesmo que de forma genérica, as definições propriamente ditas de modernidade e pós-modernidade.
Para Giddens a modernidade "rompe o referencial protetor da pequena comunidade e da tradição, substituindo-as por organizações muito maiores e impessoais. O indivíduo se sente privado e só num mundo em que lhe falta o apoio psicológico e o sentido de segurança oferecidos em ambientes mais tradicionais" (2002, p.38), ao passo que a "pós-modernidade se refere a algo diferente, uma trajetória de desenvolvimento social rumo a um novo e diferente tipo de ordem social" (GIDDENS, 1991: 52); no entanto, acha que pós-modernidade é mais apropriado para se referir a estilos ou movimentos na literatura, artes plásticas e arquitetura, dizendo respeito à aspectos da reflexão estética sobre a natureza da modernidade. E acrescenta:
"Não vivemos ainda num universo pós-moderno, mas podemos ver mais do que uns poucos relances da emergência de modos de vida e formas de organização social que divergem daquelas criadas pelas instituições modernas" (2002: 58).
Clarifica a discussão entre modernidade e pós-modernidade ao afirmar que "em vez de estarmos entrando num período de pós-modernidade, estamos alcançando um período em que as conseqüências da modernidade estão se tornando mais radicalizadas e universalizadas do que antes. Além da modernidade, devo argumentar, podermos perceber os contornos de uma ordem nova e diferente, que é "pós-moderna"; mas isto é bem diferente do que é atualmente chamado por muitos de "pós-modernidade". (GIDDENS, 1991: 12)
Convém ressaltar as preocupações de Stuart Hall (2005) ao analisar a questão da identidade cultural na pós-modernidade. Este acredita que o final do século XX introduz uma discussão acerca de uma possível crise de identidade do sujeito em face de uma mudança estrutural que fragmenta e desloca as identidades culturais de classe, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade.
Ao abordar este tema, Hall (2005: 07) acredita que "as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado", partindo do pressuposto que as identidades estão sendo descentradas, deslocadas e fragmentadas gerando identidades híbridas, impuras.
Tratar-se-á nesta pesquisa do reconhecimento da diversidade cultural na "contemporaneidade", termo enunciado por Stuart Hall e adotado por Escosteguy (2001: 148) e escolhido justamente pelo impasse encontrado ao se definir critérios para estabelecimento do fim da modernidade ou do início da pós-modernidade e até as contradições existentes nesta última. Assim, o termo contemporaneidade sugere a atualidade dispensando o estabelecer de períodos modernos e/ou pós-modernos.
Hall (2005: 08) ressalta a dificuldade de conceituar identidade, uma vez que se trata de um termo "demasiadamente complexo, muito pouco desenvolvido e muito pouco compreendido na ciência social contemporânea para ser definitivamente posto à prova". Acredita que o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos. Portanto, a identidade é definida historicamente e não biologicamente, é assim,
"[...] realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo 'imaginário' ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre em 'processo', sempre 'sendo formada'" (HALL, 2005: 38).
O autor sugere, desta forma, em vez de falar em identidade acabada, falar em identificação, e vê-la como um processo em andamento.
Definir-se como sendo português, inglês ou indiano é falar metaforicamente, uma vez que essas "identidades" não estão literalmente impressas em nossos genes. No entanto, as culturas nacionais representam uma das principais fontes de identidade cultural. Nesta óptica, a nação não é apenas a entidade política, mas sim algo que produz sentidos, como um sistema de representação cultural.
Anderson e Parker (1971: 599) apresentam a nacionalidade como "um conjunto de pessoas geralmente vivendo em um território comum e unidas por traços culturais comuns: língua, religião, tradições e costumes. Além disso, vigoram padrões institucionais comuns e um forte sentimento de unidade conseqüente do tipo comum de vida", onde os indivíduos se esforçam para manter sua herança cultural, sua identidade. Ressaltando também que:
As nacionalidades estranhas tendem a segregar-se em áreas residenciais comuns para preservar, com maior facilidade, sua forma de vida. Assim, podem se defender melhor das intrusões externas. Foi assim que "Pequenas Itálias", "Pequenas Polônias", "Pequenas Alemanhas", e outros, surgiram com o mosaico em todo o mundo (ANDERSON E PARKER, 1971: 600).
Ao retratar o poder da identidade, Castells (2000) destaca que esta é a fonte de significado e experiência de um povo, baseados em atributos culturais relacionados que prevalecem sobre outras fontes, no entanto não deve ser confundida como papéis, pois estes determinam funções e a identidade organiza significados. Assim, a construção da identidade depende da matéria prima proveniente da cultura, processada e organizada de acordo com a sociedade.
O norte americano Jeffrey Lesser (2001) ao discutir a negociação da identidade nacional - focalizando os imigrantes, as minorias e a luta pela etnicidade no Brasil - levanta uma questão sobre o que vem a significar ser hoje um brasileiro. Embasado em uma pesquisa realizada no Brasil, Lesser amplia as possibilidades de interpretação das questões da etnicidade e da identidade abrindo discussões acerca do surgimento de uma nova identidade nacional brasileira que concilia todas aquelas que a formaram.
No atual contexto social e político, marcado tão fortemente por relações de poder, Escosteguy (2001: 149) acredita que duas questões passam a ser cruciais: a disposição de viver com a diferença e por outro lado, a etnicidade. O primeiro termo evoca a multiplicidade de diferenças que operam na representação da identidade em um lugar, ao passo que etnicidade admite o entendimento de que um espaço é um lugar, é o reconhecimento a partir de uma história, de uma experiência, de uma cultura particular. Sendo assim, a etnicidade pode ser situada e estas são fundamentais para o senso subjetivo do que se é realmente.
Quanto à etnicidade, Castells (2000) acredita que a etnia e a raça são questões fulcrais e sua forma de manifestação é alterada pela tendência social, sendo também uma forma de identidade. Nesta perspectiva, acrescenta-se que:
"identidade é um espaço onde um conjunto de novos discursos teóricos se interseccionam e onde um novo grupo de práticas culturais emerge. Trata-se de uma categoria política e culturalmente construída em que a diferença e a etnicidade são seus elementos constituintes [...] e a fluidez da identidade torna-se ainda mais complexa pelo entrelaçamento de outras categorias socialmente construídas, além das de classe, raça, nação e gênero" (ESCOSTEGUY, 2001: 150).
Retomando os conceitos fundamentais que instigaram tal discussão, sabe-se que, natural, biológica e culturalmente, cada comunidade busca manter suas características, seus hábitos e costumes, enfim o que se poderia chamar de sua "identidade", com a intenção de evitar a exposição e a descaracterização do que se poderia chamar de sua "cultura". O que é fundamental acrescentar finalmente, é que as identidades, em relação a como foram construídas, devem ser vistas dependentes do contexto social. Este exercendo fundamental papel na consolidação destas identidades que constituem fontes de significado para os próprios atores, por eles originadas, e constituídas por meio de um processo de individualização, uma organização que se mantém ao longo do tempo, em um determinado espaço e contexto social e político fortemente marcado por relações de poder.
Frente a estas considerações, percebe-se que a identidade cultural, por fim, pode ser entendida como um processo de incorporação de conhecimentos e da cultura do local onde se vive. A raça, por sua vez, é algo definitivo e biológico. A etnicidade, com um significado puramente social, refere-se às práticas e às visões culturais de determinada comunidade de pessoas e que as distingue das outras como a língua, história ou linhagem, religião, estilos de roupas, adornos e hábitos.
Bibliografia
ANDERSON, W. A.; PARKER, F. B. Uma introdução à Sociologia. Tradução de Álvaro Cabral e revisão técnica de Vera Borda. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1971. 752p.
BOURDIEU, P. O poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz (português de Portugal) – 6 ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. 322p.
CASTELLS, M. O poder da identidade. Tradução Klauss Brandini Gerhardt. 2.ed. Coleção: A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura. Vol 2. São Paulo, Editora: Paz e Terra, 2000. 530p.
ESCOSTEGUY, A. C. D. Cartografias dos estudos culturais – Uma versão latino americana. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
GIDDENS, A. As conseqüências da modernidade. Tradução de Raul Fiker. – São Paulo: Editora da UNESP – Biblioteca Básica, 1991.
_______. (2002) Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
_______. (2005) A Sociologia. Tradução Sandra Regina Netz. 4. ed. Porto Alegre: Artmed. 600 p.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Touro. 10.ed. Rio de Janeiro:DP&A, 2005.
LESSER, J. A negociação da identidade nacional: imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no Brasil. Tradução de Patrícia de Queiroz C. Zimbres. São Paulo: Editora da UNESP, 2001. 344p.
MELA, A. A sociologia das cidades. Tradução Eduardo Saló. Lisboa: Editorial Estampa, 1999.
Autor:
Alcimara Aparecida Foetsch
Graduada em Geografia pela Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de União da Vitória – FAFI. Mestre em Geografia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). O presente artigo é parte integrante (adaptado) do segundo capítulo da dissertação de Mestrado da autora.
Fonte: Revista Espaço Acadêmico Nº 69, Fevereiro de 2007.
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