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Foi o casamento perfeito entre o desgosto de Pestana e a hostilidade de Lobato às estéticas modernas. Segundo Mário da Silva Brito, o conhecimento de Lobato acerca de arte limitava-se às lições acadêmicas e tradicionais. Sérgio Milliet, notável modernista, anota que a crítica de Lobato se baseia na concepção primária de uma pintura fotográfica, numa escultura naturalística, o que se origina por certo da ingênua convicção dum progresso contínuo, na superioridade de nossa civilização ocidental sobre as demais.[5]
Silva Brito ainda relembra-nos de que o tom mordaz de Lobato está mais para a caçoada do que para sátira. Lobato confessara em vários contos e artigos que suas "observações zombeteiras" não passavam de vinganças pessoais. Mas o que haveria de vingança pessoal no caso Malfatti? Eis a descoberta que pode completar a resposta às nossas indagações iniciais: Monteiro Lobato, além de escritor e jornalista, era também pintor, ou como diz Silva Brito, "queria ser pintor", tanto que a primeira edição de sua obra Urupês teve ilustração por seu próprio punho. Na verdade, era um pintor com traços acadêmicos, tradicionais mas que, apesar disso, não atingiu o êxito no campo das artes plásticas, o que resultaria no seguinte comentário de Menotti del Picchia[6]: Lobato é um grande contista com fama de mau pintor.[7] Assim sendo, parece ser consenso entre alguns de seus contemporâneos que Lobato, além de defender um estilo abraçado convictamente, alimentava um certo "despeito"[8] pelo sucesso de novos talentos, e em particular, os modernos.
Todavia, há quem defenda essa postura de Lobato, entendendo que sua crítica era proveniente de sua formação positivista, determinista e liberal (Cf. PENTEADO, 1997), oriunda de leituras fundamentais para sua formação ainda na Faculdade de Direito de São Paulo, dentre elas Spinoza, Fichte, Hegel, Voltaire, Taine, Spencer, Darwin e Nietzsche. Isso justifica seu repúdio à "influência estrangeira exacerbada", por meio da crítica aos "ismos" importados (CAMARGOS, 1999). A autora ainda pondera sobre Lobato:
"Na verdade, para ele, o artista brasileiro não se encontrava suficientemente amadurecido para apreender criticamente os modelos artísticos das vanguardas européias. E, sem esse amadurecimento, corria o sério risco de cair no imitativismo puro e simples." (Idem, p. 135)
O criador do símbolo nacionalista desprovido de idealizações românticas, a personagem Jeca Tatu, tinha uma convicção nacionalista voltada para uma realidade à qual as elites davam as costas. Nesse afã de buscar a verdadeira identidade nacional, sem influências estrangeiras, longe das cidades litorâneas como o Rio de Janeiro ou próximas ao litoral, como São Paulo, Lobato voltou-se para o interior. A partir disso, Lobato passou a defender a idéia de que a modernidade era o progresso, o saneamento, o acesso à educação e à cultura, não a reprodução de movimentos artísticos europeus, que ele considerava apenas modismos passageiros. Por outro lado, o grupo de modernistas tinha uma preocupação similar, contudo sem repudiar a influência estrangeira européia, nem a influência negra, nem a indígena, como é possível notarmos na antropofagia oswaldiana, tão bem articulada em Macunaíma, de Mário de Andrade, e tão bem sintetizada na obra de Tarsila do Amaral.
A diferença entre Lobato e os modernistas é de questão formal, como assevera Antônio Cândido (1985:120):
"No campo da pesquisa formal os modernistas vão inspirar-se em parte, de maneira algo desordenada, nas correntes de vanguarda na França e na Itália" (...) aprenderam a psicanálise e plasmaram um tipo ao mesmo tempo local e universal de expressão, reencontrando a influência européia por um mergulho no detalhe brasileiro."
Eis o ponto de divergência entre a modernidade de Lobato e a dos modernistas: a forma de expressão. Se a preocupação desses dois pólos era eminentemente o Brasil, sua identidade, sua nacionalidade, seu povo e sua língua, eles seguiam por caminhos distintos. Lobato era a favor de uma forma, no que tange à pintura, tradicionalista. As novas formas de expressão vindas dos emergentes artistas europeus agradavam àqueles que queriam, por meio de uma nova linguagem nas artes visuais e na literatura, fazer repensar o Brasil de um novo século, inserindo-o num mundo que valorizava cada vez mais a velocidade e a mecanização crescente. Ao contrário disso, a opção e a opinião de Lobato ficaram claras em seu artigo. E assim estava instaurada a polêmica que teve como ponto nevrálgico a obra da jovem e sensível Anita.
Embora o nome de Anita Malfatti tenha entrado para a história do Modernismo por causa desse episódio, tudo isso representou para ela, enquanto artista e também enquanto mulher – não podemos nos esquecer de que somente nessa época é que os nomes femininos começavam a adentrar um campo anteriormente quase que exclusivo dos homens – além do enorme choque psicológico, um grande prejuízo material: quadros já vendidos foram devolvidos e aulas de pintura foram canceladas. Apesar de tudo, Malfatti não parou de pintar, apenas recuou às suas lições acadêmicas anteriores: paisagens e naturezas mortas, ainda que impregnadas de ímpetos impressionistas.
Em conferência proferida por Anita na Pinacoteca do Estado de São Paulo, em 25 de outubro de 1951, a artista desabafa:
"Em São Paulo, as exposições individuais, grandes e pequenas, já surgiam então sem interrupção. Muitos artistas como Pedro Alexandre, Almeida Júnior e Benedito Calixto não representavam surpresa alguma."[9]
A pintora ainda relembra a exposição de Lasar Segall, pintor com fortes traços expressionistas, realizada em 1913, sob a tutela do senador Freitas Valle, que em nenhum momento causou qualquer tipo de estremecimento no meio artístico e cultural da época (Cf. AMARAL, 1979:73). Quanto a esse fato, Mário de Andrade, contudo, afirmou que "a presença do moço expressionista era por demais prematura para que a arte brasileira, então em plena unanimidade acadêmica, se fecundasse com ela."[10]
Mas nem tudo foi desolação para Anita. Ela recebeu apoio incondicional dos modernistas, em especial de Mário de Andrade e de Oswald de Andrade. Este, por sinal, foi o único que realizou uma defesa por escrito à crítica de Lobato. Assim, Oswald, como colunista do Jornal do Comércio, contrapôs-se à noção de paranóia propagada por Lobato:
"Possuidora de uma alta consciência do que faz, levada por um notável instinto para a apaixonada eleição dos seus assuntos e de sua maneira, a vibrante artista não temeu levantar com seus cinqüenta trabalhos as mais irritadas opiniões e as mais contrariantes hostilidades. (...) A sua arte é a negação da cópia, a ojeriza da oleografia. (...) e a nós deu uma das mais profundas impressões da boa arte."[11]
O posicionamento de Oswald, num caminho inverso de Lobato, torna-se explicável à medida que sua postura era de luta pela renovação artística, atuando como divulgador de uma estética nova, completamente dissociada dos padrões pré-estabelecidos. Além disso, sua atuação não tem como ponto de partida uma transformação social, embora não se despoje disso, como é possível verificarmos nas palavras de Lúcia Helena (1985:32):
"Sua luta pela renovação artística, principalmente no ângulo em que ele se apresenta como representante maior de nossa arte alegórica, compreendendo que a arte não é uma forma imediata, mas dialetizada, de transformação social, e de que sua finalidade não é a "salvação das massas", isso também o coloca na postura dos que saudavelmente ampliam, para além das sofisticadas (ou, na maioria dos casos, infelizmente, grosseiras) teorias do reflexo, a compreensão das relações entre a arte e o social-político."
Já Mário de Andrade, embora não tenha escrito nada de imediato, deu seu ombro amigo, seu apoio pessoal e, por meio das cartas que trocaram, é possível notar o imenso carinho que havia entre eles. Esse carinho todo despertou uma secreta paixão em Anita por Mário, mas que nunca teria uma definição por parte dele. Ainda assim, mais tarde, em 30 de maio de 1942, em conferência proferida no Salão de Conferências da Biblioteca do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, no Rio de Janeiro, Mário fez sobre ela uma defesa pública, indagando:
o que nos levou a aderir incondicionalmente à exposição de Anita Malfatti, que em plena guerra, vinha nos mostrar quadros expressionistas e cubistas? Parece absurdo, mas aqueles quadros foram a revelação. E ilhados na enchente de escândalo que tomara a cidade, nós, três ou quatro, delirávamos de êxtase diante de quadros que se chamavam o "Homem Amarelo", "A Estudanta Russa", "A Mulher de Cabelos Verdes". [12]
E em particular, a respeito de "Homem amarelo"[13] e "A estudanta russa", comentou Mário de Andrade: são quadros cheios dessa disponibilidade para o sofrimento que os sensitivos corajosos descobrem nas sombras projetadas à luz pelos seres e elementos.[14]
O fato é que Anita foi realmente audaciosa e que, no conjunto da vida e da obra, o seu fraquejar diante da dura crítica não apagou o legado deixado pelo ímpeto criativo revelado em obras como as que causaram a grande querela da exposição de 1917. Quanto a Lobato, embora jamais tenha conseguido adentrar o mundo das artes como pintor, deixou também inegável conjunto de obras para a literatura brasileira.
O aspecto irônico desse episódio é que, talvez sem a crítica de Lobato, o Modernismo brasileiro não tivesse acontecido, pelo menos naquele momento e da maneira como aconteceu. Nenhum movimento que envolva a arte moderna se deu de maneira tranqüila, sem impacto, sem sustos e sem choques. A aceitação da estética moderna no Brasil aconteceu paulatinamente ao longo do século XX, e teve seu ápice quando o mundo adentrava a fase pós-moderna. E ambos, tanto Monteiro Lobato, quanto Anita Malfatti deram sua contribuição para a construção da modernidade, cada um a seu modo.
Referências bibliográficas:
AMARAL, Aracy. Artes plásticas na semana de 22. São Paulo: Perspectiva, 1979.
ANDRADE, Mário de. O movimento modernista. In: Aspectos da literatura brasileira, São Paulo: Martins Fontes, 1974.
CAMARGOS, Márcia Mascarenhas. "Duas leituras de Lobato nos anos 20", Revista da Biblioteca Mário de Andrade. São Paulo, Secretaria Municipal de Cultura, Nº 52, pp. 135-138, 1999.
CANDIDO, Antônio. Literatura e sociedade. 7ª ed., São Paulo: Nacional, 1985.
HELENA, Lúcia. Oswald de Andrade e o Modernismo. In: Escrita e poder. Rio de Janeiro: Cátedra, Brasília: INL, 1985.
LOBATO, Monteiro. Urupês. 23ª ed., São Paulo, Brasiliense, 1978.
PENTEADO, José Robert Whitaker. Os filhos de Lobato. Rio de Janeiro: Qualitymark, 1997.
SILVA BRITO, Mário da. História do Modernismo Brasileiro, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
Fontes iconográficas:
Fig. 1 – Rua Líbero Badaró – www.prolam.sp.gov.br/dph/spimagem/spimag16.htm
Fig. 2 – "Lalive" - www.cyberartes.com.br/edicoes/126/artista.asp
Fig. 3 – "O homem amarelo" - www.baixadafacil.com.br/artesine/index-3.shtml
Fig. 4 – "A estudanta russa" - www.pitoresco.com.br/anita/anita27.htm
[1] O curso de jornalismo foi implantado oficialmente, no Brasil, somente em 1943 pelo Decreto-lei nº 5480, de 13 de maio de 1943, assinado pelo então presidente Getúlio Vargas e pelo ministro da educação Gustavo Capanema.
[2] Mário da Silva Brito, História do Modernismo Brasileiro, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978
[3] Mário da Silva Brito, op. cit., p. 56.
[4] Depoimento a Sérgio Milliet, para o Diário Crítico, volume 4, São Paulo, Martins Fontes, 1947, p. 53.
[5] Sérgio Milliet, op. cit., p.54
[6] Nem por isso essa crítica de Menotti de Picchia gerou algum tipo de ressentimento; pelo menos é o que se pode observar em carta enviada ao então presidente da Academia Brasileira de Letras, Múcio Leão, em 14/10/1944, recusando um convite à cadeira que pertencera a Alcides Maya: "(...) Do fundo do coração agradeço a generosa iniciativa; em especial agradeço a Cassiano Ricardo e Menotti o sincero empenho demonstrado em me darem tamanha prova de estima." In: Urupês, 1978, s/p.
[7] Menotti Del Picchia, "Uma palestra de arte", Correio Paulistano, de 29/11/1920. Apud. Mário da Silva Brito, op. cit., p. 58.
[8] Cf. Mário da Silva Brito, op. cit., p.57.
[9] In: "A chegada da arte moderna no Brasil", conferência de Anita Malfatti na Pinacoteca do Estado de São Paulo, em 25/10/1951. In: Conferências de 51, p. 31, Apud. Aracy Amaral, 1979, p.72.
[10] In: Mário da Silva Brito, op. cit., p.42.
[11] Oswald de Andrade. "A Exposição Anita Malfatti", in: "Jornal do Comércio", edição de São Paulo, 11/01/1918. Apud Mário da Silva Brito, op. cit. p. 61.
[12] Mário de Andrade. "O movimento modernista". Aspectos da literatura brasileira, São Paulo, Martins Fontes, 1974, p.232.
[13] O referido quadro foi adquirido por Mário de Andrade na inauguração da Semana de Arte Moderna. Cf. Confer. cit., p. 31. Apud. Aracy Amaral, op. cit., p.93.
[14] Mário de Andrade, "A manhã", Suplemento de S. Paulo, de 31/7/1926. Apud Mário da Silva Brito, op. cit., p. 65
Autor:
Lúcia de Fátima do Vale
Lingüista e professora de Literatura no Colégio Santa Clara, em São Paulo; Mestre em Língua Portuguesa pela PUC/SP, doutoranda na área "Projeto, Espaço e Cultura", e História da Arte pela FAU-USP. Doutorada em Arquitetura (USP). Artista plástica.
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