Embora Dante tenha feito na Divina comédia a grande homenagem a sua "dama" Beatriz, colocando-a em destaque no Paraíso, próxima a Deus, é na Vida nova que o poeta narra o caminhar desse amor que tanto marcou sua trajetória pessoal e literária. Vida nova é um pequeno livro, formado por poemas produzidos ao longo de vários anos, articulados pela narrativa dos episódios relacionados ao amor do poeta por Beatriz. Dante, que não desfrutou do convívio mais íntimo com Beatriz, descreve nesse texto uma mulher que, embora com uma existência concreta, encarna o símbolo de mulher e de amor ideais da época. Essa é a razão pela qual hoje não temos condições de conhecer quem realmente foi Beatriz; os registros que temos de sua vida são os escritos de Dante, onde aparece a imagem de uma Beatriz idealizada pelo poeta.
Dante AlighieriFoto de Wikipedia
Essa Beatriz imaginada é parte de um contexto bastante específico, no qual o lirismo refletia fielmente, quando não exacerbava, aquela concepção medieval e cavalheiresca do culto à mulher, a qual era exaltada, num plano de idealidade e sublimação, como se se tratasse não de uma criatura física, mas de uma abstração, um símbolo dos sentimentos e aspirações a que as regras de cortesia impunham uma expressão peculiar, de extrema delicadeza e reverência (MARTINS, 2003, p. 40).
Dante associou a imagem de Beatriz a uma idéia específica de amor; em sua obra, beleza e amor caminham juntos, pois são originários de Deus. Beatriz não apenas está próxima dessa divindade também imaginada, como também se confunde, bela e bondoso, com esse amor. "Amor me move: Só por ele eu falo" (DANTE ALIGHIERI, 1984, p. 114), diz Beatriz, na Divina Comédia, quando pede ao poeta latino Virgílio que vá socorrer Dante, perdido no Inferno. Pode-se perceber em Dante uma idéia, comum na época, de "elevação" pelo amor:
Os sábios da Idade Média acreditavam que, à medida que se afastavam da Terra, elevando-se em direção a Deus, as esferas celestes se tornavam sucessivamente mais puras e "etéreas" em virtude de sua crescente proximidade do Ser Supremo (WERTHEIM, 2001, p. 41).
O amor, associado à divindade, tornava-se um caminho de salvação para o homem, perdido e sem rumo, aproximando essa alma da divindade: "quanto mais próximo de Deus estava um lugar, mais nobre era considerado, ao passo que quanto mais afastado Dele estivesse, menos participaria supostamente da graça divina" (WERTHEIM, 2001, p. 41). Tal fato fica demonstrado pela construção que faz Dante dos espaços visitados na Divina comédia: o Inferno é uma fenda dentro da Terra, o Purgatório é uma montanha na superfície dela e o Paraíso coincide com as estrelas. Nessa obra, o poeta está perdido no Inferno, extraviado do "bom" caminho.
A meio do caminho desta vida
achei-me a errar por uma selva escura,
longe da boa via, então perdida.
(DANTE ALIGHIERI, 1984, p. 101).
Beatriz, protegida pela misericórdia divina, intervém para ajudar seu amigo, ou seja, fazê-lo novamente caminhar pela estrada que leva a Deus. Pede a dama a Virgílio que ajude Dante a encontrar um caminho de elevação e de luz:
Meu amigo, porém não da ventura,
o seu caminho teve interrompido,
e recua, na encosta erma e insegura.
Receio que ele esteja tão perdido
que esta ajuda a destempo vá prestada,
por tudo o que no céu eu tenho ouvido.
(DANTE ALIGHIERI, 1984, p. 114).
Virgílio é homem de grande sabedoria e valor. Estava no inferno apenas porque, tendo nascido antes de Cristo, não pôde seguir o rito da Igreja Católica e, portanto, conhecer o Deus dessa religião. Virgílio, chamado "mestre", leva o poeta pelo Inferno e pelo Purgatório, deixando-o às portas do Paraíso, onde não poderia entrar.[1] Desse ponto em diante, até Deus, é a Beatriz que caberá guiar o poeta.
Beatriz não precisou que a Divina Comédia fosse escrita para que tivesse um assento junto a Deus; em Vida nova é enunciado que Beatriz está no "grande século", o Paraíso. Por volta de 1092, sob o impacto da morte da musa, Dante concluiu Vida Nova. Os poemas que compõem a obra vinham sendo tornados públicos desde 1083. Criou-se inclusive uma certa curiosidade sobre a identidade dessa musa que vinha inspirando tão belos versos, musa essa sempre associada ao amor e, a partir de certo momento, divinizada pelo poeta, que, antes da morte da morte de Beatriz, dizia:
Um anjo clama na razão divina,
E diz: "Senhor, entende-se, no mundo,
Que seja maravilha o que provém
De uma alma tal que até no céu resplandece".
E o Céu, que não possui outro defeito
Que o de não tê-la, ao seu senhor pede,
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