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A contribuição do capital social na consolidação da democracia Latino-americana (página 2)

Dejalma Cremonese

Aprendemos de Almond e Verba os diferentes tipos de cultura política: a paroquial, a subjetiva e a participativa. A cultura política paroquial é um tipo de cultura de rejeição à autoridade tradicional própria das tribos africanas.[3] Na cultura política do tipo paroquial, percebe-se a ausência de sistema político, apatia política, caos, anarquia. na cultura subjetiva (moderada), as pessoas têm conhecimento, mas não participam. A cultura política participativa (participante), é onde as pessoas têm conhecimento, participam e avaliam as políticas públicas. Os estudos de Almond e Verba abrangeram cinco países: Estados Unidos, Grã-Bretanha, Alemanha, Itália e México. No entendimento de Almond e Verba, o modelo de democracia é realidade apenas na Inglaterra e nos Estados Unidos. Já na Itália, Alemanha e México, a democracia se configura com precariedade. É importante ressaltar que Almond e Verba vêem a "democracia" em termos liberais como modelo político. Para os autores, o sistema político democrático é aquele em que os cidadãos ordinários participam das decisões políticas.

Eis algumas características da cultura política e da comunidade cívica, segundo Almond e Verba: orgulho no aspecto da nacionalidade; crença em tratamento justo das autoridades governamentais; falar livre e freqüentemente sobre política; tolerância com os partidos de oposição; valorização da participação em atividades locais e governamentais, partidos e associações cívicas; cooperação cívica e confiança mútua; ordem, através da organização burocrática racional, no estilo weberiano; estabilidade causada pela modernização, relacionada com os níveis de alfabetismo e escolaridade; sociedade em associação voluntária e pluralismo, como sendo um dos mais importantes fundamentos da política democrática.

A cultura política, na definição tradicional, é a esfera subjetiva que dota de sentido a ação política. As teorias da cultura política, segundo Almond, são utilizadas desde os primórdios da ciência política. Seus conceitos e categorias, como subculturas políticas, cultura política das elites, socialização política e mudança na cultura, estão presentes, de forma subentendida, nos escritos clássicos modernos. Maquiavel, Montesquieu, Rousseau e Tocqueville, além de Platão e Aristóteles, são alguns exemplos (Almond, 1990: p. 139-140). A cultura política é também definida por Almond como o conjunto de orientações subjetivas de uma determinada população. Inclui conhecimentos, crenças, sentimentos e compromissos com valores políticos e com a realidade política (p. 242). Na medida em que prevalecem os valores de igualdade, liberdade, confiança mútua e comprometimento com princípios universais, mais democrática e desenvolvida é uma sociedade. Por outro lado, os sentimentos de confiança mútua, tolerância e gosto pelo comprometimento estão associados à possibilidade da realização de barganhas e acordos, evitando situações de jogo de soma zero, e são estímulos a correntes de associativismo (p. 247). A pesquisa em cultura política de Almond e Verba pressupõe uma pesquisa quantitativa, isto é, o uso do método quantitativo. Por exemplo: o comportamento humano pode ser medido, pois é sistemático e previsível. É possível comparar características das sociedades. Neste sentido, a questão da freqüência, que é a repetição do mesmo fenômeno ou a incidência de um fato, pode caracterizar a cultura política de um país (conceitos estruturantes e estruturais), principalmente no que se refere à confiança e à desconfiança da sua população.

Para Almond e Verba, uma cultura cívica é extremamente necessária para manter um sistema democrático estável. Para Baquero, o conceito de cultura política fornece instrumentos metodológicos necessários para uma compreensão sistemática de orientações e comportamento político, ou seja, em termos gerais, pode-se dizer que cultura política se refere ao processo através do qual as atitudes dos cidadãos são estruturadas em relação ao sistema político.[4] Para Inglehart, a cultura cívica pode ser concebida como "uma síndrome coerente de satisfação pessoal, de satisfação política, de confiança interpessoal e de apoio à ordem social existente. Essas sociedades que alcançam uma posição alta em relação com essa síndrome, têm uma maior possibilidade de aparecer como democracias estáveis, que aquelas outras que têm posições baixas".[5]

2. DEMOCRACIA EM BAIXA NA AMÉRICA LATINA

Foi publicado recentemente o Relatório, sob o patrocínio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), intitulado O desenvolvimento da democracia na América Latina, com o objetivo de avaliar a democracia, suas características principais e a aceitação da mesma pelos latino-americanos. A pesquisa foi feita em 18 países da América Latina, onde foram entrevistados 19 mil pessoas juntamente com mais 231 líderes regionais.

O resultado final do estudo aponta para a descrença e a decepção da maioria dos entrevistados em relação à democracia latino-americana. 54,7% dos cidadãos estariam dispostos a aceitar um regime autoritário se este resolvesse a situação econômica de seus países e respondesse às suas demandas sociais. 56,3% avaliam que o desenvolvimento é mais importante que democracia e 58,1% concordam, também, que o presidente possa ignorar as leis para governar.

Em seus duzentos anos de vida independente, a América Latina viu a democracia nascer e morrer dezenas de vezes. Em muitas ocasiões a democracia se consagrava teoricamente nas constituições, mas eram destruídas na prática. Em nome da democracia muitos morreram na luta contra as tiranias. Sofrimentos e conflitos se mesclaram com os raros momentos de estabilidade democrática. Por outro lado, em nome da "democracia", foram violados os direitos fundamentais do homem.

Segundo o Relatório do PNUD, nos últimos anos, os países latino-americanos vêm consolidando a democracia eleitoral (eleições livre, competitivas e institucionalizadas). No momento, estamos livres das ditaduras militares. No entanto, parece surgir outro perigo: o da perda da sua vitalidade. Por ora, se prefere a democracia ainda que se desconfie da sua capacidade para melhorar as condições de vida. Os partidos políticos alcançam índices baixíssimos na confiança do eleitorado (somente 14% dos latino-americanos confiam nos partidos políticos - Latinobarômetro, 2002). O Estado é visto como opressor e, às vezes, com receio.

O Relatório afirma que a América Latina tem alcançado a democracia eleitoral e suas liberdades básicas; trata-se, agora, de avançar para a consolidação da democracia cidadã (é preciso passar da condição de meros eleitores para cidadãos participantes). A democracia é muito mais que um regime governamental, é mais do que um método para eleger e ser eleito. O sujeito, mais do que eleitor, é cidadão.

Se, por um lado, a democracia eleitoral dos países pesquisados está consolidada, por outro, no âmbito social, a América Latina é considerada a região que apresenta os mais elevados índices de pobreza e desigualdade do mundo, onde os direitos sociais ainda não estão assegurados. Dados do Relatório apontam que mais de 225 milhões de pessoas (43,9%) vivem abaixo da linha de pobreza na América Latina.

É do conhecimento de todos que, nos anos 90, a América Latina passou por profundas reformas estruturais (do Estado, ajustes econômicos, privatizações, desregulamentação, políticas impositivas...), mesmo assim, os resultados desejados não se concretizaram. O crescimento do PIB foi pífio. Em 1980, o PIB per capita era de 3.739 dólares; em 2002, passou para apenas 3.952. Os níveis de pobreza tiveram uma leve diminuição em termos relativos; mas um acréscimo em termos absolutos: em 1990, 190 milhões de latino-americanos eram considerados pobres; em 2001, o número de pobres aumentou para 209 milhões. A desigualdade social, o desemprego e a informalidade aumentaram substancialmente. Da mesma forma, a situação do trabalhador piorou, além da diminuição de sua proteção social.

No Brasil, se vive uma típica democracia delegativa (frágeis instituições políticas) onde se sucedem crises de ordem social-econômica (sucessivos planos econômicos), a deterioração da autoridade do presidente, corrupção do aparelho do Estado e violência generalizada (O'Donnell). Mesmo assim, almeja-se a real democracia representativa, pois, compartilhamos da idéia de que a democracia é um processo de construção continuada e permanente, um ideal a ser alcançado. Por isso, deve ser promovida a participação pública dos cidadãos (associativismo, confiança e cooperativismo), em busca de justiça social e da emancipação humana.[6]

3. SOBRE A DEMOCRACIA POLIÁRQUICA

É atribuída a Robert Dahl a discussão sobre a democracia poliárquica. A democracia poliárquica de Dahl pressupõe certos procedimentos para a sua existência, isto é, pressupõe atividades convencionais como a existência de eleições periódicas e partidos políticos estruturados funcionando.

Na obra Análise política moderna (1976), Dahl entende que o conceito de política provém de polis (associação), segundo a obra clássica de Aristóteles intitulada A política (335-332 a.C). Aristóteles vê política como autoridade (governo), primeiramente entre senhor e escravo; marido e mulher; pais e filhos. Robert Dahl utiliza argumentos de Harold Lasswell para definir ciência política como sendo "o estudo da formação do poder e da participação do poder". Segundo Dahl, a definição de política é bastante ampla: significa muitas associações (clubes, empresas, sindicatos, organizações religiosas, grupos cívicos, tribos primitivas, clãs, possivelmente até famílias).[7] Dessa forma, o cientista político tem a preocupação de tratar do poder, do governo e da autoridade.

Dahl cita a obra Democracia na América de Aléxis de Tocqueville e seus números de "causas importantes" que sustentaram a república democrática nos Estados Unidos: "Essa lista inclui não só a estrutura constitucional, mas também a inexistência de um grande estabelecimento militar, igualdade de condições sociais e econômicas, uma economia agrícola próspera e os costumes e crenças religiosas dos norte-americanos".[8]

A poliarquia de Dahl deve assegurar ao povo o direito de participar na escolha da liderança política. Uma poliarquia estende esse direito à quase toda a população adulta. Um regime que põe na prisão os líderes oposicionistas ou reprime jornais que criticam o governo, por exemplo, por definição, não é uma poliarquia.[9] Dahl não deixa de discutir a diferença entre o crescimento do Produto Nacional Bruto (PNUD) dos Estados Unidos e a diminuição da participação nas eleições, este fato acontece periodicamente nos países onde a democracia está consolidada: "... nos últimos 50 anos os Estados Unidos da América tiveram o PNB per capita mais elevado de todo o mundo, mas, em comparação com outras poliarquias, apresentaram também os índices mais elevados de abstenção dos eleitores em eleições nacionais, e uma das situações mais dramáticas em matéria de exclusão e coerção de uma minoria importante".[10]

Tocqueville, segundo a compreensão de Dahl, tratou da igualdade e da liberdade como fatores que contribuem para o desenvolvimento dos Estados Unidos: "A principal circunstância a favorecer os Estados Unidos é a natureza do território habitado por norte-americanos. Seus antepassados lhe deram o amor à igualdade e à liberdade. Mas foi o próprio Deus quem lhes proporcionou os meios para que permanecerem iguais e livre, pondo-os num continente sem limites".[11] Neste sentido, a poliarquia, conforme Dahl, são mais comuns em países homogêneos em relação a outros: "Não é de surpreender, portanto, que as poliarquias sejam muito mais comuns nos países homogêneos do que naqueles onde há muitas fissuras culturais".[12] Porém, Dahl entende que até mesmo os países poliárquicos apresentam déficit de participação e desinteresse pelos assuntos públicos por seus cidadãos: "Aparentemente em todas as poliarquias há um número considerável de cidadãos desinteressados pela política e relativamente inativos; em suma, apolíticos".[13] A participação é, igualmente, baixa em regimes poliárquicos: "Mesmo hoje o problema é agudo. Em muitas poliarquias, entre um quinto e um terço dos eleitores qualificados geralmente deixam de votar nas eleições nacionais, e uma proporção ainda maior se abstém de outros tipos de atividade política. Somente metade dos adultos, nos Estados Unidos da América e na Alemanha, e uma proporção menor ainda na Inglaterra, França, Itália e México, acompanham o debate sobre os assuntos de interesse público pelos jornais, rádio ou a televisão".[14]

Por fim, Robert Dahl apresenta um quadro da participação e da não-participação política nos Estados Unidos: os inativos 22% correspondem ao estrato apolítico; 21% dos eleitores votam praticamente nas eleições presidenciais; 4% são os eleitores paroquiais, que não só votam, mas fazem contatos com autoridades governamentais, em busca de vantagens especiais; contudo, não tem a qualquer outro tipo de participação; 20% são os comunalistas, que votam e participam da ação comunitária visando alcançar benefícios coletivos. Não colaboram, porém, nas atividades de campanha eleitoral; 15% são os ativistas que praticamente não se interessam pelas atividades comunitárias, mas são extremamente ativos nas campanhas políticas; 11% são ativistas plenos que se empenham em todos os tipos de atividade, com grande freqüência.[15]

4. A CONTRIBUIÇAO DO CAPITAL SOCIAL NA CONSOLIDAÇAO DA DEMOCRACIA

A partir deste momento, discute-se o conceito capital social como instrumento para a construção e a consolidação da democracia latino-americana. O capítulo está dividido em duas seções específicas. A primeira seção trata das concepções de capital social dentro de uma perspectiva geral, a fim de compreender o que cada teórico entende sobre o tema. Pretende-se, igualmente, fazer um breve relato histórico da evolução conceitual do capital social. Dentro da primeira seção, pretende-se, ainda, explanar as diferentes dimensões do capital social, como as redes bonding, bridging e linking, e efetuar a comparação do capital social com outros capitais da comunidade. Na segunda seção, se discutirá o capital social segundo a perspectiva culturalista de Robert Putnam, fundamentado nas obras Making democracy work: Civic traditions in Modern Italy, (1993)[16] e Bowling Alone: The Collapse and Revival of American Community (2000).

Passada mais de uma década da aplicabilidade das políticas neoliberais, formulada pelo Consenso de Washington[17]percebe-se a deterioração dos valores ético-morais em todos os níveis da sociedade latino-americana. Como nos diz Baquero (2001) valores como solidariedade, amizade, confiança recíproca nas pessoas e nas instituições políticas nunca estiveram tão fragilizados. Além do mais, o modelo neoliberal tem-se mostrado perverso ao acentuar a exclusão social mediante o recrudescimento dos problemas estruturais, que se refletem no desemprego crônico, na desconfiança e no desencanto com a política e na situação de incerteza dos cidadãos com o seu futuro. Assim, percebe-se que a insatisfação com a democracia tem aumentado, da mesma forma que têm aumentado os níveis de pobreza e exclusão.[18]

No âmbito individual e social, perderam-se alguns valores essenciais, o que levou à precarização das relações interpessoais, à perda do lazer coletivo, ao individualismo, à falta de cooperação entre vizinhos, à desconfiança e à prática desenfreada do hedonismo. No âmbito político, o resultado não poderia ser diferente: efetiva-se o surgimento de uma cultura política caracterizada pela apatia e pela desconfiança dos cidadãos em todas as esferas da vida cotidiana. Se, por um lado, a globalização neoliberal trouxe relações verticais autoritárias, ditadas pelas leis do mercado, que logrou um minguado crescimento econômico e um agravamento dos problemas sociais em boa parte dos países latino-americanos; por outro lado, suscitou a criação e o fortalecimento de antigos e novos movimentos sociais contestatórios que começam a utilizar os benefícios do capital social, proliferando relações horizontais de confiança mútua, redes de cooperação, associativismo e voluntarismo.[19] Desta maneira, o capital social tem sido um instrumento eficiente para se contrapor à hegemonia da política econômica e, aos poucos, indicar novas relações sociais que direcionam para um novo modo de agir, mais solidário e participativo, fortalecendo a sociedade civil e o processo democrático.[20]

O declínio da participação em todos os níveis da sociedade, a falta de confiança mútua e a desconfiança nas instituições políticas configuram um déficit de capital social. É necessário, por isso, que se restabeleça a confiança, a participação e se fortaleça o capital social, pois só o capital social pode proporcionar novos caminhos na direção de pensar mecanismos que potencializem a capacidade participativa da sociedade.

4.1. A origem do conceito

O conceito de "capital social" começou a ser utilizado recentemente na literatura acadêmica. O tema obteve uma rápida repercussão e aceitação entre os cientistas sociais. Apesar da relativa popularidade da temática, porém, não podemos definir "capital social" como se fosse um conceito homogêneo, pois o mesmo envolve um conjunto de valores sociais que promovem tanto a ação individual quanto a ação coletiva. Neste sentido, sua definição é problemática; por isso, o entendimento conceitual e teórico do capital social continua a se desenvolver.[21]

4.2. Diferentes entendimentos do capital social

Há muitos entendimentos do que seja "capital social", o que causa certa "confusão" justificável sobre o que constitui propriamente a expressão. Teóricos utilizam palavras diferentes para conceituar capital social, as mais usuais são: energia social, espírito comunitário, laços sociais, virtude cívica, confiança, redes associativas, relações horizontais, vida comunitária, normas sociais, redes informais e formais (bonding, bridging, linking), reciprocidade, bem-comum, pró-atividade, entre outras. Baum (2000) apresenta a evolução das publicações sobre o capital social com uma listagem de artigos. Antes de 1981, o número de artigos sobre capital social publicados em jornais totalizava apenas 20, entre 1991 e 1995 subiu para 109 e, de 1996 a março de 1999, passou para 1003.

Um dos primeiros teóricos a utilizar o termo "capital social" nos círculos acadêmicos foi Hanifan em 1916. Mais recentemente, vários estudiosos têm contribuído para a popularização do termo, entre eles Jane Jacobs (1961), Bourdieu (1983, 1985, 1986), Coleman (1988, 1990), Putnam (1993, 1995), Fukuyama (1995, 1999), Narayan e Pritchett (1997), Portes (1998), Woolcock (1998), Cohen e Prusak (2001), Kennet Newton (2001), Amartya Sem (2001), Bernardo Kliksberg (2001), Giuseppe Ricotta (2003), Pedro Silveira Bandeira (1999), Leonardo M. Monastério (1999, 2000,2002), Marcello Baquero (2001), para citar alguns teóricos.

Hanifan definiu capital social como "esses ativos tangíveis que contam para a maioria das pessoas na vivência diária: isto é, confiança, companheirismo, simpatia, e relacionamento social entre os indivíduos e famílias que compõem uma unidade social. A integração entre vizinhos favorece para que aja acumulação de capital social, que pode satisfazer imediatamente suas necessidades sociais e que pode ter uma potencialidade suficiente para a melhora substancial das condições de vida em toda a comunidade".[22] Após a definição inicial de Hanifan, o conceito de "capital social" desapareceu da literatura durante várias décadas, vindo a retornar ao debate no final da década de setenta em diversos campos científicos.

Foi o sociólogo Pierre Bourdieu que, no ano de 1985, conceituou o capital social como "as redes permanentes que pertencem a um grupo que asseguram a seus membros um conjunto de recursos atuais e potenciais". Mais tarde, em 1888, James Coleman, na sociologia da educação e Robert Putnam (1993, 1996), nas ciências políticas, o conceito capital social passou a ter maior expressão e importância. Coleman definiu o capital social como "os aspectos da estrutura social que facilitam certas ações comuns dos agentes dentro da estrutura". Bourdieu (1985) e Coleman (1990) fazem referências ao capital social a partir de referências de grupos sociais, coletivos e comunitários. Segundo esses autores, o estudo do capital social está imerso na comunidade, não fazendo parte de nenhuma aplicação de recursos de forma privada nem podendo ser alienado a partir de um valor de mercado. Trata-se de um valor da comunidade gerador de bens públicos, onde todos se beneficiam.

Putnam, por sua vez, delimitou o capital social como "os aspectos das organizações sociais, tais como as redes, as normas e a confiança que permitem a ação e a cooperação para o benefício mútuo (desenvolvimento e democracia)".

O conceito capital social também está suscitando interesse nas instituições econômicas internacionais. Após o fracasso da aplicabilidade das políticas do Consenso de Washington no âmbito econômico e social nos países de economias emergentes, há uma tendência das instituições (FMI, Banco Mundial) reverem seus programas, considerando mais a dimensão social com a parceria da sociedade civil no desenvolvimento econômico de cada país. A revisão das metas do Consenso de Washington e sua nova abordagem são conhecidas, agora, como "Post-Washington Consensus".[23]

As propostas do Banco Mundial e da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) se encontram nesta mesma direção. Para o Banco Mundial (1998), o capital social faz referência às "instituições, relações e normas que conformam a qualidade e a quantidade das interações sociais de uma sociedade". A OCDE o define, em seu informe The Well-Being of Nations: the role of human and social capital (2001), como "as redes junto com normas, valores e opiniões compartilhadas que facilitam a cooperação dentro e entre os grupos".

O grupo temático que discute o capital social no Banco Mundial o entende, em outras palavras, como a capacidade de relacionamentos dos indivíduos, suas redes de contatos sociais baseadas em expectativas de reciprocidade e comportamento confiáveis que, no conjunto, melhoram a eficiência individual. No plano coletivo, o capital social ajudaria a manter a coesão social, pela obediência às normas e leis, bem como a negociação em situações de conflito e a prevalência da cooperação sobre a competição, tanto nas escolas quanto na vida pública, o que resultaria em um estilo de vida baseado na associação espontânea, no comportamento cívico, enfim, numa sociedade mais aberta e democrática (Banco Mundial).

Para Woolcock (1998), o capital social é um conjunto de relações sociais que tem por base a confiança do grupo, e que permite alcançar seus fins. Spagnolo (1999) define o capital social como a extensão para aplicar o poder presente em uma relação social, a quantidade de poder de castigo social acreditável e disponível com uma ameaça em excesso do requerido para manter cooperação na interação social.[24]

Para Giuseppe Ricotta (2003), o capital social pode ser entendido como a união de duas ou mais pessoas que se organizam em associações com o objetivo de resolver os problemas locais, ou seja, o capital social é tudo o que se refere ao associativismo, cooperativismo, pequenas empresas locais, onde os principais favorecidos são a própria comunidade, entidade ou associações, com a finalidade de atingir um desenvolvimento local sustentável e necessariamente alternativo ao capital econômico internacional. O capital social é o interesse da coletividade, é a cooperação em oposição ao individualismo. Capital social, no dizer de Ricotta, é a qualidade nas relações entre os indivíduos desde a família, comunidade, empresa e instituições públicas. Capital social é construir redes e não hierarquias.[25]

4.3. Capital social e desenvolvimento

Kliksberg argumenta que o campo do capital social é bastante amplo e está imerso em controvérsias, mas, diz o autor, é possível definir capital social seguindo quatro elementos essenciais, que são: a) o clima de confiança existente em uma sociedade, tanto nas relações interpessoais, como para poderes e atores sociais chaves. Quanto menor for a confiança entre os membros de uma comunidade, maior será a dependência de terceiros para proteger os acordos e obrigar à sua execução, mais gestores legais, tribunais, polícia. Em outro plano, a confiança nas instituições e nas elites diretivas decai se se reduz a governabilidade, com múltiplos efeitos negativos; b) a capacidade de uma sociedade gerar formas de cooperação e associações com sinergia; c) A consciência cívica, a atitude predominante para o coletivo desde o mais elementar e o cuidado dos parques públicos até a responsabilidade fiscal; e d) Valores éticos entre os membros da comunidade.

Segundo estudos da American Economic Association Papers, está comprovada a correlação estatística entre os níveis de confiança e fatores como a eficiência judicial, a ausência de corrupção, a qualidade da burocracia e o pagamento de impostos. O incremento da participação em organizações melhora o rendimento econômico dos campesinos pobres. Dados da OCDE demonstram que quanto maior for o nível de confiança e de associativismo, maior será o desenvolvimento econômico da região: "O capital social está associado a um nível mais elevado de confiança, cooperação, compromisso recíproco e coesão social" e pode ajudar a melhorar os resultados das instituições e das empresas.

Estudos da Escola de Saúde Pública de Harvard (1997) têm demonstrado, igualmente, que o clima de confiança nas relações interpessoais aumenta a expectativa de vida; se há desconfiança, a expectativa de vida diminui. O estudo comprova que a desigualdade sócio-econômica do país também tem relação com a expectativa de vida das pessoas. Se há um alto nível de desigualdade, a expectativa de vida se reduz. A igualdade, e maior capital social, são fatores chaves de saúde pública.[26] Estudos empíricos demonstram ainda que o acúmulo de capital social pode promover um maior crescimento com maior igualdade, melhorar a produtividade, promover o consenso em tempos de discussão e auxiliar na segurança dos mais pobres e vulneráveis, protegendo as comunidades mediante a promoção de normas aceitáveis e redução da pobreza.[27]

Kliksberg (2001) vê, assim, a possibilidade do capital social e da cultura contribuírem para o desenvolvimento econômico e social, pois ambos constituem potentes instrumentos de construção histórica: "As pessoas, as famílias, os grupos, são capital social e cultural por essência. São portadores de atitudes de cooperação, valores, tradições, visões da realidade, que são sua própria identidade".[28]

É importante, porém, notar a diferença entre capital humano e capital social. O capital humano requer grande investimento em saúde e educação, enquanto o capital social requer valores, solidariedade, confiança e participação. O capital social requer: a) o importante papel que jogam no âmbito societal e institucional os níveis de confiança entre os atores em uma sociedade; b) a existência e a prática, por parte dessa população, de normas cívicas; c) o nível de associativismo, que incide diretamente no fortalecimento do tecido social e, por último, a importante presença na cultura de valores, tais como o respeito à dignidade do outro, justiça social, solidariedade e tolerância para facilitar a convivência.

Segundo a perspectiva da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL), o capital social é conhecido como o conjunto de relações sociais baseadas na confiança e nos comportamentos de cooperação e reciprocidade. Quando a riqueza e a receita não estão distribuídas eqüitativamente em uma sociedade, surge uma pergunta importante: Qual é a contribuição que se pode esperar dos instrumentos de desenvolvimento e mobilização do capital social para sustentar e aplicar políticas sociais efetivas destinadas à redução da pobreza?

Kliksberg assinala os baixos índices de corrupção, delinqüência e criminalidade em países desenvolvidos, como a Finlândia, Noruega, Suécia, Holanda e Canadá, citando os referidos países como exemplos de um nível elevado de qualidade de vida (saúde, educação, eqüidade econômica). A razão de tal êxito, para o autor, estaria no forte capital social que faz parte de suas respectivas populações.

Kliksberg trabalha com o conceito de capital social seguindo a teoria de Putnam, segundo a qual o entendimento de capital social abarca quatro dimensões: a) os valores éticos dominantes de uma sociedade; b) sua capacidade de associatividade; c) o grau de confiança entre seus membros e d) a consciência cívica. Os resultados, diz Kliksberg, são positivos: "Quanto mais capital social, mais crescimento econômico a longo prazo, menor criminalidade, mais saúde pública, mais governabilidade democrática". Instituições e entidades internacionais, como o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e as Nações Unidas, estão empenhas em criar áreas específicas dedicadas a impulsionar o capital social. Como diz Amartya Sem, Prêmio Nobel de Economia: "Os valores éticos dos empresários e os profissionais de um país (e outros autores sociais chaves) são parte de seus recursos produtivos". E conclui Kliksberg: "Se são a favor da inversão, a honestidade, o progresso tecnológico, a inclusão social, são verdadeiros ativos; se, em troca, predominam a ganância rápida e fácil, a corrupção, a falta de escrúpulos, bloqueará o avanço". Kliksberg cita a participação de outras instituições civis e privadas que atuam de forma concreta para o fortalecimento do capital social no mundo como, por exemplo, o voluntariado da Cáritas, Amia e Rede Solidária.[29]

4.4. Dimensões do capital social

Trabalhos recentes de Putnam (1998, 2000), Narayan (1999), Woolcock (2001) e do Banco mundial (2000, 2002, 2003) apontam para três dimensões essenciais do capital social: as redes bonding, bridging e linking. A primeira dimensão bonding (aglutinadoras) é quando as pessoas estão unidas e interligadas entre si por laços fortes de amizade ou parentesco... Neste nível prepondera o sentimento de solidariedade e amizade entre membros de famílias ou grupos da mesma etnia... São as conexões entre as pessoas (que se associam para poder sobreviver...), agrupamentos formados por pessoas que têm características semelhantes e, juntas, resolvem os problemas do grupo. Na segunda dimensão, estão as redes denominadas bridging (pontes), que consistem na interação entre grupos sociais... São associações com maior mobilidade em que as relações sociais são horizontais objetivando o bem comum... E, na terceira, estão as redes denominadas de linking (conectoras), que consistem na união entre as pessoas com o objetivo de alavancar recursos ou poder junto às instituições estabelecidas, acesso a bancos e governo: "é quando os pobres batem à porta do Estado para pedir recursos...".[30]

4.5. O capital social segundo Robert Putnam

As concepções sobre o capital social apresentam uma polarização entre duas correntes teóricas. Putnam defende a perspectiva "culturalista" do capital social e Peter Evans defende a concepção "neo-institucionalista". Putman entende o capital social como conseqüência de um processo cultural de longo prazo, ou seja, acredita na evolução histórica do sistema político e na existência de pré-requisitos desenvolvimentistas que facilitam a implementação eficaz de políticas públicas. O autor cita, em seus estudos, como exemplo, o Norte da Itália sendo a região mais desenvolvida daquela nação por razões de suas origens culturais herdadas da Idade Média. Putnam acredita que o capital social vem de longe, da história... Já a perspectiva "neo-institucionalista", defendida por Peter Evans, acredita que o capital social pode ser desenvolvido sem, necessariamente, ter uma raiz histórica... O capital social pode ser criado... Evans defende o surgimento da autonomia institucional inserida no cotidiano da sociedade como sendo a fonte de utilização ótima de recursos disponíveis à coletividade.[31]

Robert Putnam apresentou o conceito de capital social na importante obra chamada Making democracy work: civic traditions in modern Italy, em 1993.[32] Mais tarde, em 1995, Putnam escreveu o artigo Bowling alone: the collapse and revival of American community que, em 2000, tornou-se um livro.[33] Nesta publicação, Putnam fez um estudo do capital social no seu país de origem, os EUA. O autor comprovou o declínio da participação (cerca de 25%) dos americanos nas organizações políticas, religiosas, sociais, profissionais, culturais e desportivas nos últimos trinta anos. O declínio deu-se nos grupos, associações (equipes de futebol, grupos e comunidades) e aumentou nas atividades de lazer individualizado (assistir à televisão). A participação eleitoral caiu substancialmente, sobretudo a partir dos escândalos iniciados no governo de Nixon. Mas também caiu o envolvimento em atividades locais, nas associações de pais e mestres, nos clubes, nos sindicatos, na Cruz Vermelha, nas igrejas. Curiosamente, só aumentou a prática do boliche, mesmo assim fora dos clubes. O boliche é o esporte mais popular entre os norte-americanos (80 milhões jogaram pelo menos uma vez em 1993), mas jogam cada vez mais sozinhos. Eis a razão do polêmico título do artigo de Putnam, Bowling alone ou Jogando boliche sozinho.[34]

Putnam, em sua pesquisa na Itália, entrevistou os conselheiros regionais. Seu objetivo foi examinar as origens do governo eficaz, quais instituições tiveram bom desempenho e quais não tiveram, na tentativa de explicar as diferenças de desempenho institucional e a relação entre desempenho e natureza da vida cívica (comunidade da vida cívica). Putnam, apoiando-se na teoria de Tocqueville, argumenta que a comunidade cívica se caracteriza por cidadãos atuantes e imbuídos de espírito público, por relações políticas igualitárias e por uma estrutura social firmada na confiança e na colaboração.[35]

Putnam descobriu que, em certas regiões da Itália, houve maior engajamento cívico, ao passo que, em outras, houve uma política verticalmente estruturada, uma vida social caracterizada pela fragmentação e pelo isolamento e uma cultura dominada pela desconfiança. Diz Putnam que é preciso conhecer as diferenças básicas da vida cívica de uma comunidade para, posteriormente, perceber o êxito e/ou o fracasso das instituições. O teórico acredita que a relação entre o desempenho institucional e comunidade cívica leva, inexoravelmente, ao desenvolvimento da região. Mas, para chegar a um nível satisfatório de engajamento cívico e de solidariedade social, é necessário que se perceba a herança histórico-cultural da região. O capital social só foi possível ser construído graças à herança histórica que a Itália teve. Putnam considera um governo eficaz é aquele que não apenas considera as demandas de seus cidadãos, mas age com eficácia em relação às mesmas.[36]

Putnam concorda com a teoria de Michael Walzer e seu entendimento de comunidade cívica: "o interesse pelas questões públicas e a devoção às causas públicas são os principais sinais de virtude cívica.[37] Já para caracterizar a falta de virtude cívica, Putnam apóia-se na teoria de Banfield, para quem uma das características da falta de virtude cívica é o familismo amoral, ou seja, "maximizar a vantagem material e imediata da família nuclear; supor que todos os outros agirão da mesma forma".[38] A característica fundamental da comunidade cívica é o seu espírito público, em que os interesses individuais estão submetidos aos interesses coletivos. Por isso, diz Putnam, "na comunidade cívica, a cidadania implica direitos e deveres iguais para todos.[39]

Tocqueville em Democracia na América atribuiu grande importância à propensão dos americanos em formar organizações civis e políticas: "Americanos de todas as idades, de todas as condições e de todos os temperamentos estão sempre formando associações".[40] E essas associações, diz Tocqueville, não são apenas de caráter comercial e industrial, mas, associações religiosas, morais, sérias, também fúteis, bastante genéricas e limitadas, imensamente grandes.

Putnam, depois de desenvolver pesquisas em vários países, chegou à conclusão de que as pessoas que se unem em associações têm maior consciência política, confiança social, participação política e "competência cívica subjetiva", pois, para ele, quanto maior a participação em associações locais, maior será a cultura cívica; quanto maior a cultura cívica da região, mais eficaz será o seu governo. O desempenho de um governo regional está, de algum modo, estritamente relacionado com o caráter cívico da vida social e política da região. O civismo, conclui Putnam, tem a ver com igualdade e, também, com engajamento.[41]

Putnam, a partir da experiência comprovada na Itália, chegou à conclusão de que existem regiões mais e menos cívicas, dependendo da maior ou menor cultura cívica. Configuram-se como regiões menos cívicas, geralmente, quando os cidadãos que a habitam pedem ajuda a políticos para obter licenças, empregos e assim por diante. Putnam cita o Sul da Itália como exemplo de regiões menos cívicas, principalmente a Púglia e a Basilicata. Nessas regiões com menor grau de civismo, a política se caracteriza por relações verticais de autoridade e dependência, tal como corporificados no sistema clientelista.[42] Da mesma forma, as relações políticas são mais autoritárias e a participação política se restringe à elite. O autor constatou, nas suas pesquisas, que, quanto maior for o índice de instrução, menor será a participação cívica das pessoas, Há uma relação aproximada entre o grau de instrução e o nível de civismo da região. Regiões menos cívicas, diz Putnam, estão mais sujeitas à corrupção (máfias). Nas regiões não-cívicas, impera a desconfiança entre as pessoas e a vida pública das pessoas se organiza hierarquicamente. Parece ser uma conclusão lógica aquela a que Putnam chegou: quanto menor o capital social e a cultura cívica das pessoas, menor será o desenvolvimento econômico da região. A recíproca é, igualmente verdadeira: quanto maior o acúmulo de capital social e maior cultura cívica, conseqüentemente maior será o desenvolvimento.

4.5.1. A confiança

A confiança é um componente essencial para que exista capital social. Por outro lado, o que inibe a construção do capital social e do desenvolvimento de uma região é o seu lado oposto: a "desconfiança". Putnam enumera algumas frases e dizeres que comumente as pessoas mencionam quando desconfiam das coisas e das pessoas: "Quem confia nos outros está perdido"; "Não empreste dinheiro, não dê presente, não faça o bem, para não te arrependeres depois"; "Todos só pensam no próprio bem e enganam o companheiro"; "Se a casa do teu vizinho estiver em chamas, leva água para a tua".[43] Certamente não haverá progresso e desenvolvimento se a desconfiança imperar entre as pessoas. Tudo está perdido quando o "eu se sobrepõe ao nós".[44] Putnam afirma que "a combinação de pobreza e desconfiança mútua minou a solidariedade horizontal, o que Banfield chamou de familismo amoral".[45] No Sul da Itália, diz Putnam, imperam relações clientelistas: "o clientelismo é fruto de uma sociedade desorganizada e tende a manter a fragmentação e a desorganização sociais".[46] Até mesmo Gramsci já havia notado tal situação: "o Sul continuou sendo uma grande degradação social".[47] Como vimos, Putnam relaciona níveis elevados de civismo com níveis elevados de desenvolvimento: a comunidade cívica está estritamente ligada aos níveis de desenvolvimento social e econômico. Na mesma idéia, Putnam complementa: "regiões cívicas são prósperas, industrializadas e têm boas condições sanitárias"[48] ou, "quanto maior a participação cívica, maior o crescimento econômico"[49].

Como exemplo de sociedades mais cívicas e mais prósperas da Itália, Putnam cita as regiões da Emília Romagna e da Lombardia. Nessas regiões, a população tem uma grande participação nos assuntos regionais na tentativa de resolver seus problemas locais. Nas regiões mais cívicas, percebe-se, igualmente, uma maior número de filiação sindical e maior concentração de redes de solidariedade social[50]Prevalece, nessas regiões, uma elevada virtude cívica, pois nelas a honestidade, a confiança e a observância da lei imperam. Essas populações, diz Putnam, são dotadas de espírito público extraordinariamente desenvolvido, formando um verdadeiro complexo de comunidades cívicas. O engajamento cívico, a valorização da solidariedade, a cooperação e a honestidade são marcas fundamentais das comunidades. Numa comunidade cívica, têm-se coesão social, harmonia política e bom governo. Putnam acredita que a comunidade cívica forma-se graças à herança histórico-cultural e diz que a mesma pode apresentar círculos virtuosos ou viciosos. Numa comunidade cívica "os estoques de capital social, como confiança, normas e sistemas de participação tendem a ser cumulativos e a reforçar-se mutuamente. Os círculos virtuosos redundam em equilíbrios sociais com elevados níveis de cooperação, confiança, reciprocidade, civismo e bem-estar coletivo". Por outro lado, a "inexistência dessas características na comunidade não-cívica também é algo que tende a auto-reforçar-se. A deserção, a desconfiança, a omissão, a exploração, o isolamento, a desordem e a estagnação intensificam-se reciprocamente num miasma sufocante de círculos viciosos"[51]. É diante de uma sociedade civil vigorosa, diz Putnam citando Tocqueville, que o governo democrático se fortalece em vez de enfraquecer. Na comunidade cívica, as associações proliferam, as afiliações se sobrepõem e a participação se alastra[52](p.191).

Talvez o conceito mais usado que integra o capital social seja a confiança (trust). É nela que reside todas as relações que solidificam a comunidade, não existe empreendimento, cultura cívica nem capital social sem a confiança. Segundo Baquero, três vertentes de pensamento tem indicado as fontes geradoras da confiança e que podem ser assim definidas: a) a atividade voluntária se constitui no mecanismo essencial para sustentar a confiança generalizada; b) a confiança surge como resposta a experiências pessoais e com instituições fora do universo daquelas pequenas associações às quais um indivíduo é filiado; e c) há um leque de instituições que promovem o capital social além das associações voluntárias, tais como a família, as escolas, os meios de comunicação.[53]

Assim, percebe-se a debilidade do capital social de uma comunidade à medida que nela impera a desconfiança. O capital social, ao contrário do capital financeiro, não se desgasta com o uso: quanto mais se utiliza, mais capital social se tem, aumenta-se o estoque ao invés de diminuir. O capital social é o capital dos menos favorecidos, dos que estão fora do eixo econômico dominante. O capital social se apresenta como uma alternativa para a sobrevivência econômica dos pobres, pois é na associação comunitária, na confiança mútua entre os membros, que os problemas locais como falta de moradia, energia, saneamento, será resolvida.

A atuação conjunta da comunidade servirá como instrumento de pressão para que os governantes disponibilizem recursos e atendam as demandas locais através de políticas públicas eficientes e eficazes. O capital social é, desta maneira, um mecanismo de inclusão daqueles que estão fora do eixo econômico dominante. Incluir não significa reproduzir as mesmas formas e relações do pensamento dominante, mas pensar e viver um novo modo dentro da ação comunicativa proposta pela teoria de Habermas. Pensar o capital social possibilita uma nova cultura política em que os indivíduos estejam conscientes de seus direitos e deveres frente ao Estado. Os indivíduos não podem esperar pelas "migalhas" das instituições públicas. O clientelismo político deve ser banido das novas relações políticas. A nova cultura política requer a participação efetiva de todos os cidadãos no poder deliberativo do Estado. Somente a organização da sociedade civil será capaz de fazer pressão ao Estado, consolidando, assim, o processo democrático.

5. LATINOBARÓMETRO: POSSIBILIDADE DE MENSURAR OS NÍVEIS DE PARTICIPAÇAO SOCIAL NA AMÉRICA LATINA

Neste último ponto, apresentam-se variáveis do Latinobarômetro que possibilitam avaliar os níveis de participação dos latino-americanos em atividades e entidades sociais. Esses dados são importantes na indicação da existência ou não de capital social na América Latina. Para alcançar esse objetivo, escolheu-se algumas variáveis como participação nos partidos políticos, confiança nos partidos políticos, participação em instituições sociais e níveis de satisfação democrática.

5.1. América Latina: insatisfação crescente com a democracia

A insatisfação com a democracia está alcançando altos índices entre os Latino-americanos. Segundo o Latinobarômetro, 63,3% dos entrevistados afirmam estar não muito satisfeito e nada satisfeito com a democracia. Já os índices dos que estão muito satisfeitos e, mais ou menos satisfeitos, somam apenas 27,6%. Estes dados talvez sejam conseqüência da incapacidade dos governos democráticos de atenderem às demandas sociais e resolver os problemas essenciais de seus eleitores. O grande desafio da realidade latino-americana é transformar a democracia eleitoral existente em uma democracia participativa e cidadã.

SATISFACCION CON DEMOCRACIA

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5.2. América Latina: confiança nos partidos políticos segundo a ideologia

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Neste ponto fez-se o cruzamento entre as variáveis: confiança nos partidos políticos com a ideologia dos entrevistados. Iniciamos com a relação entre os entrevistados que se consideram de esquerda, centro e direita:

Segundo os dados do Latinobarômetro, percebe-se que os entrevistados com ideologia de direita, a confiança nos partidos políticos é maior em relação aos que se dizem de centro ou esquerda. 25,7% dos que se dizem de direita confiam muito ou alguma coisa nos partidos políticos contra 18,6% dos entrevistados de ideologia de centro e 16,6% dos que se consideram de esquerda.

 Os índices de nenhuma ou pouca confiança nos partidos políticos modifica-se um pouco. Entre os entrevistados que se dizem de direita, a percentagem de nenhuma ou pouca confiança atingem 70,4% contra 77,3% dos entrevistados de centro e 75,0% dos entrevistados de esquerda.

Ao apresentar cada variável de forma independente teremos números diferentes. Por exemplo, entre os que se consideram de direita o índice de nenhuma e pouca confiança é bem maior dos que tem muito ou alguma confiança: 70,4% contra 25,7, respectivamente. Entre os de ideologia de centro, percebe-se que a percentagem de nenhuma e pouca confiança nos partidos políticos é de 77,3% contra 18,6% dos entrevistados, a qual confiam muito ou alguma coisa. Entre os que professam de esquerda o índice de muita confiança e alguma confiança é menor, 16,6% em relação a 75,0% que não tem nenhuma ou pouca confiança nos partidos. Conclusão: Os dados demonstram que, a percentagem de pouca e nenhuma confiança nos partidos políticos é maior nas três ideologias (esquerda, centro e direita); Os que se consideram de centro a percentagem de pouca ou nenhuma confiança é maior em relação aos de direita e de esquerda; Nos que professam a ideologia de esquerda há uma baixa confiança nos partidos políticos. Conseqüentemente, os que se consideram de direita as variáveis muita e alguma confiança é maior.

5.3. Participação em organizações voluntárias e união entre visinhos

Segundo o Latinobarômetro a união entre os vizinhos é baixa, cerca de 13,9% apenas se unem regularmente. Da mesma forma a não participação em organizações voluntária é bastante alta. 86,1% responderam que não participam de nenhuma organização voluntária.

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5.4. América Latina: Confiança nos partidos políticos

A confiança nos partidos políticos apresenta números bastante baixos entre os Latino-americanos: apenas 21,1% dos entrevistados confiam muito ou tem alguma confiança nos partidos políticos. Enquanto que os números de pouca ou nenhuma confiança alcançam altos índices, 73,3%.

CONFIANZA PARTIDOS POLITICOS

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5.5. Brasil: atividades religiosas e participação voluntária

Dos entrevistados que participam de atividades religiosas apenas 3,5% participam em organizações voluntárias.

Crosstab(a)

% within HAGO ACTIVIDADES RELIGIOSAS

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a COUNTRY = Brazil

5.6. Brasil: atividades religiosas e falar de política com os amigos

A percentagem dos que participam de atividades religiosas que falam de política com seus amigos também é pequena, apenas 23, 0% afirmam conversar muito freqüentemente e freqüentemente, enquanto que 77,0% nunca ou quase nunca falam de política com seus amigos.

Crosstab(a)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este ensaio procurou sistematizar, de forma breve, os principais temas discutidos no decorrer das aulas de Cultura Política. Inicialmente, discorreu-se sobre o conceito de cultura política com a discussão inicial dos autores Almond e Verba. Compreendemos que a cultura política foi um enfoque novo tratado pela ciência política a partir dos anos 60 e que os temas "participação" e "democracia" foram centrais para essa discussão. Foram discutidos os diferentes tipos de cultura política: paroquial, a subjetiva, e a participativa.

No capítulo 2, resenhou-se sobre a crise de legitimidade por que a democracia tem passado nos últimos anos na maioria dos países do continente latino-americano (segundo o Relatório do PNUD). No capítulo 3, discutiu-se a democracia poliárquica de Dahl, a qual pressupõe certos procedimentos para a sua existência, isto é, atividades convencionais como a existência de eleições periódicas e partidos políticos estruturados funcionando. No capítulo 4, foram sistematizadas as principais idéias sobre o conceito capital social. E, por último, escolheram-se algumas variáveis do Latinobarômetro que servirão como instrumento para a pesquisa pessoal que pretendo realizar num futuro próximo.

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  • 87. TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Belo Horizonte: Itatiaia/EDUSP, 1977.

  • 88. WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1999.

  • 89. WOOLCOCK, Michael. Social capital and economic development: Toward a theoretical synthesis and policy framework. In. Theory and Society, Vol. 27, nº 2. 1998.

  • 90. WOOLCOCK, Michael. The Place of Social capital in Understanding Social and Economic Outcomes. In. Isuma.Canadian Journal of Policy Research/Revue canadienne de recherche sur les politiques. Ottawa: Government of Canada's Policy Research Secretariat. Vol. 2, nº 1. 2001.

  • 91. WOOLCOCK, Michael; NARAYAN, Deepa. "Social Capital: Implications for Development Theory, Research, and Policy". The World Bank Research Observer, vol.15, n.2, August 2000.

  • 92. WOOLCOCK, Michael and NARAYAN, DEEPA (2000) "Social Capital: Implications for Development Theory, Research, and Policy" The World Bank Research Observer, vol.15, nº.2, pp.225–249. August 2000.

  • 93. WRIGHT, Benjamin Fletcher. "Introdução do editor" a Alexander Hamilton, James Madison e John Jay. O Federalista. Brasília: UnB, 1984.

  • 94. YUNUS, Muhammad. O banqueiro dos pobres. São Paulo: Ática, 2000.

 

Autor:

Dejalma Cremonese

dcremo[arroba]hotmail.com

dcremo[arroba]uol.com.br

Professor do Departamento de Ciências Sociais da UNIJUÍ (RS). Doutorando em Ciência Política da UFRGS (Brasil)

Website: www.capitalsocialsul.com.br


[1] Os Surveys Latino-americanos são recentes em nosso continente. Anteriormente só existia pesquisa de opinião pública na Europa e nos Estados Unidos.

[2] Para Weber há três razões internas que justificam a dominação existindo, assim, três fundamentos da legitimidade: o poder tradicional, o poder carismático (exercido pelo profeta) e o poder da legalidade. WEBER (1999), p. 57.

[3] A cultura paroquial pode ser inserida no trabalho de Banfield sobre o familismo amoral no sul da Itália (burocracia autoritária).

[4] BAQUERO (1996).

[5] INGLEHART (1990).

[6] Conferir na Primeira Seção do Relatório "El desarrollo de la democracia en América Latina" a parte inicial intitulada El desafío: de una democracia de electores a una democracia de ciudadanos. Disponível em http://www.undp.org/spanish/proddal/idal_1a.pdf. Acesso em junho de 2004.

[7] DAHL (1976), p. 13.

[8] TOCQUEVILLE apud DAHL (1976), p. 19.

[9] DAHL (1976), p. 82.

[10] DAHL (1976), p. 90.

[11] TOCQUEVILLE, apud DAHL (1976), p. 91.

[12] DAHL (1976), p. 93.

[13] DAHL (1976), p. 98.

[14] DAHL (1976), p. 99.

[15] DAHL (1976), p. 104-105.

[16] Utiliza-se a obra de Putnam traduzida para o português sob o título Comunidade e democracia: a experiência da Itália Moderna. Rio de Janeiro: FGV, 2000.

[17] Para uma compreensão das metas do Consenso de Washington e sua aplicabilidade na América Latina, conferir a obra de KUCZYNSKI e WILLIAMSON (2003). Para uma crítica ao Consenso de Washington, ver BATISTA (1994) e FIORI (1996).

[18] Conferir a discussão sobre as reformas neoliberais na América Latina nos anos 90: ANDERSON (1995); SADER e GENTILI (1995); OLIVEIRA (1995); SODRé (1995); BRESSER PEREIRA (1999); BAQUERO (2001 e 2003).

[19] Com a crise das políticas neoliberais dos anos 90, diversos movimentos sociais contestatórios têm surgido no cenário político latino-americano com uma nova forma de participação política. Eis alguns exemplos: Chiapas no México, Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra, no Brasil, assim como outros Novos Movimentos Sociais (NMSs) no Equador, Peru, Bolívia... Além do Orçamento Participativo em Porto Alegre. Como nos diz SANTOS (1999), p. 265, "...os NMSs são sinais de transformações globais no contexto político, social e cultural da nossa contemporaneidade e, por isso, os seus objetivos serão parte permanente da agenda política dos próximos anos, independentemente do sucesso, necessariamente diverso, dos diferentes movimentos concretos".

[20] Os conceitos de capital social e de sociedade civil têm-se constituído em ferramentas importantes no estabelecimento de um estatuto teórico para o tema do associativismo e de sua relação com a democracia. Melhor dizendo, de sua relação com um determinado modelo de democracia. LÜCHMANN (2001).

[21] LEDERMAN (2001) e BANCO MUNDIAL (2003).

[22] HANIFAN (1916), p. 130 in WOOLCOCK (2000) MASEDA e GÓMEZ.

[23] Conferir STIGLITZ e WOLFENSOHN.

[24] HERNÁNDEZ (2003).

[25] RICOTTA, Giuseppe. Cooperativismo, associativismo e capital social. Palestra proferida no Auditório da Unijui, no dia 21 de julho de 2003.

[26] KLIKSBERG (2003).

[27] Conferir os trabalhos de Knack e Keefer (1997), Collier (1998), Temple (1998), Easterly (2000), Narayan e Pritchett (1998), Grootaert (2000), Bowles (1999), Seligman (1997), Abraham (1985) e Moser (1996).Conferir também BANCO MUNDIAL (2002).

[28] KLIKSBERG (2001), p.115.

[29] KLIKSBERG (2003).

[30] Para esta discussão, ver Putnam (1998, 2000); Narayan (1999); Woolcock (2000); Banco Mundial (2000; 2002; 2003); Caulkins (2003).

[31] Para este debate conferir ABU-EL-HAJ (1999).

[32] PUTNAM (2000).

[33] PUTNAM (1995).

[34] CARVALHO (2003).

[35] PUTNAM (2000), p. 30-31.

[36] PUTNAM (2000), p. 77.

[37] WALZER apud PUTNAM (2000), p. 101.

[38] BANFIELD apud PUTNAM (2000), p. 102.

[39] PUTNAM (2000), p. 102.

[40] TOCQUEVILLE apud PUTNAM (2000), p.103.

[41] PUTNAM (2000), p.112-113.

[42] PUTNAM (2000), p. 115.

[43] PUTNAM (2000), p. 154.

[44] PUTNAM (2000), p. 154.

[45] PUTNAM (2000), p. 154.

[46] PUTNAM (2000), pp.155-156.

[47] GRAMSCI apud PUTNAM (2000), p. 156.

[48] PUTNAM (2000), p. 162.

[49] PUTNAM (2000), p. 188.

[50] PUTNAM (2000), p. 127.

[51] PUTNAM (2000), p. 186-187.

[52] PUTNAM (2000), p. 191.

[53] BAQUERO (2003), p. 31.



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