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A espontaneidade coletiva, segundo este sociólogo, deve ser uma categoria de análise sociológica e retoma as experiências históricas para demonstrar sua emergência e reemergência constante na história da humanidade e, mais especificamente, na história da sociedade moderna: séculos XI e XII: cruzadas populares; século XVII: levantes populares na França; 1789: o Grande Medo, a revolução camponesa, os sans-culottes etc.; 1848: a revolução espontânea de fevereiro, em Paris; 1871: a Comuna de Paris e a primeira experiência de autogoverno proletário; 1900: as greves gerais espontâneas em Andaluzia (Espanha); Rússia, 1905: o nascimento espontâneo dos sovietes de operários e soldados que em fevereiro de 1917 reaparecem espontaneamente: "em fevereiro de 1917, a espontaneidade da Revolução de Petrogrado é apontada por todos os observadores, a começar pelo próprio Trotsky; em cinco dias, a capital imperial é tomada por uma revolução anônima, progredindo pela multiplicação das massas que a ela aderem: operários e operárias, soldados e até burgueses misturados ao povo e quase inconscientes de estar contribuindo para uma revolução." (Decouflé, 1970, p. 77).
O golpe de estado de outubro
Abordar a Revolução de Outubro significa, para utilizar expressão de Decouflé, passar da "sociologia da revolução" para a "sociologia da contra- revolução". Já em 1917, Makhaïsky denunciava a contra-revolução intelectual de outubro, realizada pelo Partido Bolchevique, que depois passou a se chamar Partido Comunista da União Soviética. Segundo Makhaïsky, os intelectuais formam uma classe privilegiada, que tem seus rendimentos retirados da mais-valia extraída pela burguesia através da exploração dos trabalhadores. A burguesia explorava os trabalhadores que produziam toda a renda nacional e distribuía parte dessa renda para sustentar a intelectualidade como classe social privilegiada que se aquartelava nos partidos social-democratas da época, tal como Kautsky, no Partido Social-Democrata Alemão; o mesmo ocorria com o Partido Bolchevique Russo (Makhaïsky, 1981). Neste sentido, o que ocorreu em outubro não foi uma revolução proletária ou socialista e sim um golpe de Estado, no qual o Partido Bolchevique tomou o poder estatal, substituiu a burguesia e implantou a dominação da intelligentsia, realizando uma contra-revolução.
Essa análise foi reforçada por outras posteriores. A tomada do poder pelo Partido Bolchevique significou que a dualidade política se resolveu em favor do Estado controlado pelos bolcheviques em detrimento dos sovietes, dos conselhos operários. O Partido Bolchevique não chegou ao poder contra os sovietes, mas apelando para eles. As palavras de ordem de Lênin eram: "todo o poder aos sovietes" e "Pão, Paz e Terra", ou seja, os bolcheviques queriam o apoio popular e para consegui-lo propunham resolver o problema da fome, da guerra e das terras, além dos sovietes.
Porém, uma vez no poder, os bolcheviques passaram a realizar ações contrárias aos sovietes. Vários acontecimentos foram descritos por Brinton (1975), demonstrando as atitudes e decretos do governo bolchevique de Lênin e Trotsky limitando e controlando os sovietes. Lênin, uma vez no poder, passa a defender salários superiores para os técnicos e especialistas, a gestão individual das empresas ao invés da autogestão coletiva pelos conselhos de fábrica, a implantação do taylorismo (forma tipicamente capitalista de organização do trabalho nas fábricas), o capitalismo monopolista de Estado como transição necessária para o socialismo etc. (Rodrigues e De Fiore, 1978; Lênin, 1988). Assim, o processo de burocratização, que muitos atribuem ao período de ascensão de Stalin ao poder, inicia-se, na verdade, com Lênin e a tomada de poder em outubro. A explicação para isso já havia sido apresentada por Makhaïsky: a fusão da intelligentsia que boicotou o regime bolchevique no início com a própria intelligentsia bolchevique criou as bases da dominação burocrática sobre a classe operária (Makhaïsky, 1981).
Decouflé cita inúmeros outros exemplos, tais como o da Guerra C ivil Espanhola de 1936 a 1939, as lutas operárias em 1956 na Polônia e Hungria, as greves operárias em 1936 na França, Argélia em 1962 e inúmeros outros exemplos nos quais os conselhos operários reaparecem; poderíamos acrescentar, ainda, a sua reemergência na Revolução Portuguesa de 1974, na Polônia em 1980 e no Curdistão em 1992, bem como as formas embrionárias no México e Argentina no início do século XXI.
Ele ressalta que a espontaneidade coletiva tende a gerar formas novas de organização, tal como comitês, assembléias, conselhos, comunas, sessões etc. Isto cria uma "exuberância da vida cotidiana" que cria uma soberania popular, revolucionária, que é simultaneamente absoluta e difusa. É absoluta devido ao fato de que nenhum grupo ou indivíduo reconhece limites na soberania popular em todos os momentos do cotidiano revolucionário; é difusa devido ao fato de que nenhum deles reserva para si uma parcela da soberania popular. A revolução espontânea promove uma mudança na totalidade das relações sociais, criando uma cotidianidade revolucionária, um novo modo de vida que se espalha por todos os poros da sociedade transformada.
A partir de 23 de fevereiro de 1917, produziu-se uma nova situação social na Rússia: por um lado, as ações populares e a re-emergência dos conselhos operários (sovietes); por outro, a derrubada do governo czarista e a instauração de um governo provisório. Porém, a sociedade russa passou a viver um fenômeno constante nas experiências revolucionárias do século XX: a dualidade política, marcada pela organização popular na base, fundada na autogestão, e a organização burocrática do Estado. Este fenômeno foi chamado por historiadores e militantes (tais como Lênin e Trotsky) como " dualidade de poderes", onde existia a força estatal do Comitê Provisório da Duma e a força autogerida do proletariado do Comitê Executivo Provisório, porta-voz do Conselho dos Operários e Soldados (Coquin, 1976). Desde fevereiro até outubro DE 1917?, foram constituídos diversos "governos provisórios", que não se sustentavam e eram substituídos por outros. Os sovietes, por sua vez, continuaram existindo durante todo esse período. A revolução proletária espontânea de fevereiro não resolveu o problema do Estado. A dualidade política abriu caminho para um novo desdobramento, que foi a chamada Revolução de Outubro.
A partir de 1921, foram proibidas as frações dissidentes dentro do Partido Bolchevique, o que fez surgirem os grupos dissidentes externos
A partir de outubro, surgem, no próprio Partido Bolchevique, diversos grupos dissidentes ("Comunistas de Esquerda", os "Centralistas Democráticos", a "Oposição Operária") que vão sendo derrotados pela direção de Lênin e Trotsky, tal como integrantes de outras tendências políticas e até grupos externos que romperam com o partido, tal como o "Grupo Operário" e "Verdade Operária" (Viana, 2007). Apesar das diferenças entre estes grupos e do período em que surgiram, eles questionavam a política bolchevique e criticavam a burocratização, defendendo a autonomia proletária. Porém, a partir de 1921, foram proibidas as frações dissidentes dentro do Partido Bolchevique, o que fez surgirem os grupos dissidentes externos.
O caráter espontâneo da Revolução de Fevereiro surpreendeu até mesmo Lênin, que defendia a necessidade de um partido de vanguarda para organizar a revolução
Porém, a oposição ao novo regime burocrático não foi realizada apenas por grupos dissidentes. Segundo o sociólogo Maurício Tragtenberg, "em 1917 os bolcheviques tomaram o poder, mas no Sul da Rússia só triunfaram a 26 de novembro de 1920. É que na Ucrânia ocorrera uma revolução social conhecida como makhnovstchina, liderada por um camponês, Nestor Makhno" (Tragtenberg, 1988, p. 78). Esta revolução camponesa marca a formação de comunas agrárias autogeridas pelos trabalhadores e a vitória dos destacamentos camponeses de Makhno sobre o exército branco, contra-revolucionário. A forte influência anarquista e a autonomia adquirida pela Ucrânia foram suficientes para que fossem metralhados pelo exército vermelho dos bolcheviques no istmo de Perekop, entre a montanha e o mar (Tragtenberg, 1988; Makhno, 1988; Archinov, 1976).
A derrota da revolução ucraniana pelo exército vermelho significou a vitória definitiva do bolchevismo juntamente com a proibição das frações dentro do Partido Bolchevique e da repressão aos marinheiros de Kronstadt. A "Comuna de Kronstadt" de 1921 foi desencadeada por marinheiros que reivindicavam mais sovietes e menos partido, ou seja, mais autogestão operária e menos burocracia. A greve decretada em fevereiro de 1921 foi combatida pelo governo bolchevique. A Comuna de Kronstadt se coloca a favor dos sovietes autônomos, "cuja organização resulta da espontaneidade criativa do povo e os marinheiros demarcaram-se nitidamente da tradição bolchevique; sua revolta ultrapassou os limites de uma simples oposição operária e desembocou na rejeição total do sistema bolchevique" (Arvon, 1981, p. 126-127). A repressão bolchevique, que os marinheiros chamaram de "a bala assassina", marcou a derrota da última grande tentativa coletiva de retomar o caminho dos conselhos operários contra a burocracia dominante do Partido Bolchevique.
Assim, a Revolução de Fevereiro não conseguiu concretizar os anseios do proletariado e campesinato de formar uma nova sociedade, fundada na autogestão social. A derrota foi expressa na tomada de poder pelo Partido Bolchevique, que realizou uma contra-revolução burocrática (Korsch, 1978). Três linhas interpretativas do regime russo passaram a existir: a primeira, a hegemônica, tratava-se do socialismo, um período de transição para o comunismo (esse era o caso de Stalin e Trotsky e seus seguidores, sendo que o último reprovava o que ele chamava "deformações burocráticas"); a segunda linha interpretativa qualificava o regime como uma "economia estatal totalitária", um "modo de produção corporativista", um "coletivismo burocrático", entre outras denominações. O que significaria que tal regime não seria nem capitalista nem socialista. A terceira linha interpretativa, que julgamos mais adequada, considera que o regime bolchevique significou, na verdade, a implantação de um novo tipo de capitalismo, o capitalismo de Estado.
Quais são as origens deste novo tipo de capitalismo? Já havíamos colocado que Makhaïsky havia anunciado um novo regime no qual a intelligentsia tomaria o poder e implantaria uma dominação própria. O regime bolchevique nasce em outubro de 1917, mas sua gênese é do próprio aparecimento do bolchevismo. A idéia básica do bolchevismo expressa por Lênin, o seu principal ideólogo, é a do Partido de Vanguarda. Esta tese afirma que os trabalhadores são demasiado incultos para se libertar por conta própria. São os intelectuais pequeno-burgueses que possuem acesso à ciência e assim poderão produzir a consciência socialista e, posteriormente, inculcá-la nas massas. O partido é o dirigente do proletariado e deve conquistar o poder estatal e continuar sendo o dirigente, o executor da "ditadura do proletariado", tendo em vista a abolição da burguesia privada. Esta ideologia dirigista, burocrática, legitima e justifica a tomada do poder pelo partido e a substituição do capitalismo privado pelo capitalismo de Estado.
O regime bolchevique não aboliu o elemento definidor do capitalismo, tal como Marx colocou magistralmente em O Capital: a produção de mais-valia, fonte da exploração do proletariado e que constitui as duas classes sociais fundamentais do capitalismo, a burguesia – classe que se apropria da mais-valia produzida – e o proletariado – classe que produz a mais-valia e recebe apenas um salário em troca. Na Rússia, a burocracia estatal se transformou em burguesia de Estado, pois por meio deste drenava a mais-valia global produzida pelo proletariado, extraindo daí seus privilégios e controle da acumulação de capital.
Assim, o golpe de Estado de outubro significou uma contra-revolução burocrática que instaurou um capitalismo de Estado. O significado da Revolução de Outubro, portanto, é relativo. Do ponto de vista da revolução proletária iniciada em fevereiro e derrotada em outubro, foi uma contra-revolução burocrática. Do ponto de vista do novo regime implantado, foi uma "revolução burguesa sem burguesia", que gerou um novo tipo de capitalismo, o capitalismo estatal, que começou a desmoronar em 1989.
Referências
ARCHINO V, P. História do Movimento Macknovista. Lisboa: Assírio & Alvim, 1976.
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BRINTON , M. Os Bolcheviques e o Controle Operário. Porto: Afrontamento, 1975.
CARR , E. H. La Revolución Bolchevique. 1917- 1923. Madrid: Alianza, 1977. Vol. 1. 3ª Edição.
COQUIN , F.- X. A Revolução Russa. Lisboa: Edições 70, 1976.
DECOUFLÉ, A. Sociologia das Revoluções. São Paulo: Difel, 1970.
KORSCH, K. e outros. A Contra-Revolução Burocrática. Coimbra: Centelha, 1978.
LÊNIN , W. Estado, Ditadura do Proletariado e Poder Soviético. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1988.
MAKH AÏSKY, J. W. A Ciência Socialista, A Nova Religião dos Intelectuais. In: TR AGTENBERG, M. (org.). Marxismo Heterodoxo. São Paulo: Brasiliense, 1981.
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MAKHNO , N. A "Revolução" contra a Revolução. São Paulo: Cortez, 1988.
MEDVEDEV, R. Era Inevitável a Revolução Russa?. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
RODRIGUES, L. M.; De FIOR E, O. Lênin: Capitalismo de Estado e Burocracia. São Paulo: Perspectiva, 1978.
TRAGTENBERG, M. A Revolução Russa. São Paulo: Atual, 1988.
VIANA, N. A Esquerda Dissidente e a Revolução Russa. In: MACIEL, D.; MAIA, C.; LEMO S, A. (orgs.). A Revolução Russa: Processos, Personagens, Influências. Goiânia: CEPEC, 2007.
Autor:
Nildo Viana
nildoviana[arroba]terra.com.br
Professor da UEG – Universidade Estadual de Goiás; Doutor em Sociologia/UnB.
Nildo Viana é bacharel em Ciências Sociais e mestre em Filosofia pela UFG, mestre e doutor em Sociologia pela UnB, professor da UEG e autor de artigos em revistas científicas e diversos livros, entre eles Escritos Metodológicos de Marx (Goiânia, Alternativa, 2007) e O Fim do Marxismo e Outros Ensaios (São Paulo, Giz Editorial, 2007).
Fonte: Sociologia. Ciência e Vida, v. 14, p. 10, 2007 www.portalcienciaevida.com.br
Janeiro 2008
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