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Nas informações obtidas por intermédio das entrevistas e de documentos do ITESP (1991:06), percebe-se que os assentados da Fazenda Jupira passaram por um processo migratório em suas trajetórias de vida/trabalho até chegarem ao assentamento definitivo, podendo, em linhas gerais, ser descrito em fases distintas.
Uma primeira fase se dá quando esses camponeses resolvem sair do seu lugar de origem e tentar a sorte na "cidade grande", lugar de estranhos. Estão buscando o mundo urbano, não foram procurar os meios de sobrevivência nos espaços rurais, cujas áreas lhes permitiriam uma adequação melhor pelo fato de terem experiências já acumuladas e uma maior facilidade de reproduzirem sua vida social pregressa, mas, ao contrário, foram em busca de melhores condições de vida nas cidades, na expectativa de reporem a perda dos meios de produção com trabalhos típicos dos meios urbanos.
A segunda fase é o desemprego, a perda do trabalho nas cidades e a difícil reposição no mercado de trabalho devido à baixa qualificação profissional. Nesse período, começa-se a pensar na volta para a terra, ou seja, em voltar para casa (terra natal com trabalho na terra). Contudo, devido às redes de relações feitas entre vizinhos, parentes, igrejas e partidos políticos, passa-se a ser gestada também a idéia de luta pela terra, em que o assentamento surge como uma oportunidade de retomar o rumo perdido nas trajetórias de vida/trabalho, o momento de recuperar, refazer, reconstruir o sonho de trabalhar na terra.
A terceira fase é a de sair de si mesmos e perceberem que existem outros caminhos, alternativas, e vão encontrar no MST e nos segmentos afins (Igreja e Partidos Políticos) uma oportunidade de realização desse sonho. A partir daí, os trabalhadores rurais vão às reuniões, participam de assembléias, passeatas, ações promovidas pelos representantes. E, por fim, decidem ir para o acampamento, sofrerem as agruras de viver de idas e vindas num momento de incertezas, com um único objetivo: a conquista da terra.
A quarta fase é a mais dramática, pois representa um dilema para os assentados.
Estes têm, enfim, seu pedaço de chão, mas precisam encarar a dura realidade de saber que os sonhos de trabalho e de consumo da cidade grande estão mais distantes. Geraldo (2002), ao estudar outros camponeses, em seu trabalho sobre o processo de ocupação da fazenda Boa Sorte, no município de Restinga-SP, destaca: "Deixam para trás o sonho de consumo, de prosperidade que inundaram seu imaginário no passado. O sonho agora reside na possibilidade de atuar como sujeito, efetivamente ativo, na redefinição das formas de relação de trabalho, controle sobre as atividades que compõem o processo produtivo, de incluir diferentes atividades no trato da terra e de administrar a produção" (Geraldo, 2002:28).
Essa fase, para autores como D"Incao e Roy (1995), passa como se a única saída fosse se enredarem nas relações autoritárias, de clientelismo e de outras formas de favores. Paulo Freire (1987) chama a atenção para: "Este fatalismo, às vezes, dá a impressão, em análises superficiais, de docilidade, como caráter nacional, o que é um engano. Este fatalismo, alongado em docilidade, é fruto de uma situação histórica e sociológica e não um traço essencial da forma de ser de um povo" (Paulo Freire, 1987:49).
D"Incao (1998), em seu estudo sobre os impasses da assessoria técnica estatal, no mesmo assentamento universo da nossa pesquisa, a Fazenda Jupira, em Porto Feliz (SP), destaca a ambigüidade das políticas públicas de assentamento, do técnico militante e do conflito entre coletivismo e autoritarismo que, segundo a autora, proporcionou a paralisação das organizações no assentamento. A composição técnica militante, segundo a pesquisadora, produziu uma composição desastrosa.
No caso do assentamento de Porto Feliz, um dos assentamentos investigados em maior profundidade, pode-se observar que as tentativas de indução dos agricultores à formas coletivas de organização da produção acabou por recriar entre eles as relações de dominação que sempre existiram, no bojo da qual qualquer organização política ou econômica torna-se inviável. Quando menos, porque essa organização pressupõe a existência de relações sociais de igualdade ou democráticas. Isto é, de relações sociais mediadas por uma lei comum, sem a qual inexiste a possibilidade da livre decisão de pertencer a esse ou àquele coletivo. Ou, num outro ângulo, a possibilidade do compromisso com esse mesmo coletivo (D"Incao, 1998:05).
O depoimento de Miltão e Cleter, moradores do assentamento, demonstra um conflito político recoberto por ideologia, contribuindo para produzir conflitos nos espaços decisórios, o que nos permite pensar que existe um relativo exagero na forma de analisar os assentados e seus relacionamentos com os técnicos do Estado.
Os problemas com os técnicos, tivemos ainda agora. No começo, no começo foi muito bom pra nós, ajudou-nos bastante. Todos técnicos que apareceu aqui não veio nem um para destruir. Os que vieram e ajudaram bastante.
Problemas sempre têm porque, às vezes, eles é empregado público e nós é sem-terra, não vamos concordar com a política deles sempre. Tivemos problemas, mas tivemos muito técnico bom aqui que contribuiu bastante com o assentamento ,eles fazia os projeto pra nós. Nós ia lá, negociava com o governo, topografamos os lotes, estradas, preparação do solo, curva de nível
para poder segurar a erosão. Nessa parte eles contribuíram bastante, o que eles vieram fazer no começo, fizeram completo. (Entrevista com Miltão, em 05/11/2006, realizada por Amauri T. B. Nogueira).
A entrada dos agrônomos aqui dentro. Esse foi um pé em todo mundo, esse é um erro maior, o assentamento não precisa de agrônomo. Por que o agrônomo não trabalha na terra, quem trabalha na terra é quem tá assentado, trabalha na terra e sabe o que esta precisando. O agrônomo só tá ganhando dinheiro do governo é muito agrônomo pra pouco serviço e tá errado. Nois já tem um técnico agrícola que não faz nada anda com o carro pra lá e pra cá a toa. E agrônomos não precisa aqui dentro os outro vem de fora e quer comandar eu nunca aceitei e não aceito. (Entrevista com Cleter, em 05/11/2006, realizada por Amauri T. B. Nogueira).
Os depoimentos acima sugerem que as relações de favores passam por uma lente crítica dos assentados, que reconhecem nos representantes seus limites. Esses sujeitos sociais vivem sob tais dramas, agonias e incertezas com uma trajetória de vida/trabalho fragmentada, contínua e descontínua, vivenciando as contradições do campo e da cidade, que unifica o processo soldado por dentro das relações de produção capitalistas as quais engendram a cooperação do trabalho como processo social avançado.
O assentamento passa a ser o interregno de um processo entre o velho, ou seja, hábitos, rituais, lembranças, saberes acumulados (esses saberes acumulados não são justapostos, mas em processo de contradição durante suas apropriações), e o novo que está sendo gestado nas práticas sociais e estratégias de luta. Tal processo inicia-se, no caso em análise, nas reuniões da Comunidade Nossa Senhora de Fátima, no município de Sumaré, e se estreita no interior do assentamento por intermédio de um modelo que propõe convivência associativa, exigindo dos assentados atitudes, participação política e uma co-participação na gestão de todo o assentamento, tornando-os co-responsáveis pelos acertos e erros internos e externos. A nova sociabilidade vai, durante o processo que se desenvolve, gerar conflitos de múltiplos contornos, pois, no assentamento, as relações concretas impõem uma vivência por inteiro. Segundo afirma Geraldo (2002) em seu estudo sobre comunicação em assentamento: "A conquista se dá por inteiro, na organização da produção e do trabalho, nas relações com a vizinhança e outras comunidades, nas manifestações culturais, na comunicação, nas festas, na condição do ser humano e nos sonhos" (Geraldo, 2002:139).
O assentamento é um universo simbólico em que, no conflito das representações do território em construção pelos sujeitos envolvidos no processo de sua organização e construção do espaço por meio dos vários projetos propostos pelos representantes em confronto com os projetos dos assentados, surgem perturbações e inquietações. É na produção do espaço que o conflito emerge como resultado das práticas e estratégias coletivas cotidianas, nas assembléias, nas reuniões, na formação da associação, na divisão de lotes; práticas que trazem, no seu interior, questionamentos da vida pregressa desses sujeitos e que lhes permitem um novo olhar sobre seu próprio universo cultural. Os conflitos estão relacionados com as relações políticas de poder, de controle social, e com a emergência de relações democráticas, sob a ótica dos agentes representantes, das lideranças e dos assentados, que, por sua vez, (re) produzem valores e informam identidades individuais e coletivas, construindo-se, nesse processo, sujeitos sociais.
Segundo Schere-Warren (1998) afirma que utopia culturalista emancipatória refere-se a transformações graduais, cumulativas por meio da resistência democrática de múltiplos atores. "A construção de identidades coletivas, de políticas contestatórias e de novas manifestações político-culturais tem suas raízes nos microfundamentos das relações sociais cotidianas, ou seja, em torno de identificações socioculturais específicas" (Schere-Warren, 1998:224).
É possível identificar, nas entrevistas realizadas, que as práticas sociais e estratégias de luta, entendidas como construção da identidade coletiva, são descritas pelos sujeitos da pesquisa como fruto das tensões, dos conflitos e das negociações daí advindos. É a forma pela qual expressam seus descontentamentos, suas capacidades, seus conhecimentos e seus saberes e como constroem suas redes de sociabilidade. Por isso, consideramos a práxis como um dos pontos essenciais da análise, que será orientada no sentido de entender a construção da identidade coletiva no espaço comunicativo do assentamento; é o momento da apresentação, do conhecer-se e da definição de objetivos.
É o início de uma experiência de transformação de suas realidades e como são negociados, no cotidiano do assentamento, os novos elementos de sociabilidade propostos pelo MST (coletivo), pela Igreja (comunitária), pelo Estado (a racionalização dos técnicos) e pelo saber pessoal acumulado pelos trabalhadores rurais, levando em consideração suas trajetórias de vida/trabalho.
É a identidade enquanto forma de estruturar ações coletivas ou individuais sob a influência do resultado dos efeitos das práticas e estratégias propostas no cotidiano dos assentados. Trata-se de valorizar as experiências de vida/trabalho, no interior das relações socioespaciais, como fruto da práxis laborativa e existencial, tendo o conflito como jogo de poder, ou seja, como resultado do embate político que procuram dar conta das várias representações de mundo que permeiam o universo simbólico dos sujeitos envolvidos no processo de assentamento, emergindo daí contradições entre o universo concebido e o universo vivido pelos mesmos.
Léfèbvre (1974) afirma que a produção do espaço, como prática social, se constitui por uma tríade conceitual, qual seja:
A prática espacial que engloba a produção e a reprodução de lugares específicos e conjuntos espaciais próprios, formações sociais que asseguram a continuidade de uma criativa coesão, referem-se ao vivido; As representações do espaço ligado às relações de produção e à ordem que os impõem e por aí as relações de conhecimento, de signos, dos códigos e das relações, referem-se ao concebido; Os espaços de representação (com ou sem códigos), os símbolos complexos ligados aos lados clandestinos e subterrâneos da vida social, mas também à parte que poderia eventualmente se definir não como código do espaço, mas como códigos dos espaços de representação, referem-se ao percebido.
Sendo assim, o espaço social encontra-se permeado por relações conflituosas, mediadas pelas relações de representação e práticas espaciais entre o vivido, o concebido e o percebido, advindas das disputas pelo mesmo espaço e das várias formas dos sujeitos se relacionarem no processo de produção do espaço, expressão do movimento da realidade concreta. Nota-se, no Assentamento da Fazenda Jupira, o quanto esse espaço representa um universo complexo, na medida em que estão presentes as várias representações de mundo, ou seja, é um universo extremamente diversificado, com várias representações de mundo interagindo no mesmo espaço social: dos técnicos, dos engenheiros agrônomos do Estado, dos assentados e dos líderes.
No assentamento pesquisado, percebe-se nessas contradições, sob a forma de luta na construção do espaço em disputa entre as representações de mundo na divisão de lotes, um momento de muita tensão e conflito.
Durante um ano, aproximadamente, os sem-terra do grupo III viveram em barracos de lona, em uma situação de assentamento pré-emergencial na Fazenda Jupira, em Porto Feliz, como se estivessem em acampamentos, recebendo ajuda da comunidade local, mediada pela Igreja e partidos políticos, simpatizantes da luta. Segundo relatório do ITESP (1987:02), nessa época, as casas eram construídas com embalagem de leite longa vida (impermeabilizadas), sustentadas por estacas de madeira, sendo que, dessas, apenas quatro ou cinco possuíam, na época, teto de telhas de barro. Cada família recebeu das comunidades eclesiásticas, telhas de barro (a maioria aguardou as residências definitivas para usá-las), e não havia encanamento nem luz elétrica. No período, os assentados enfrentaram grandes dificuldades econômicas e de organização, tendo como principal desafio estruturar suas estratégias de desenvolvimento sem que se desarticulassem enquanto grupo.
Como resposta a esses problemas, surgiu uma série de comissões (saúde, segurança, transporte, educação etc.), com a proposta de viabilização do uso das terras ocupadas. Um dos embates que causaram grandes conflitos durante este período, e foi um teste para o grupo dos sem-terra III no sentido de pensarem nas negociações e na possibilidade de terem que conviver com a divisão do assentamento entre individuais e coletivos, foi a distribuição dos lotes definitivos para cada família iniciar sua vida e a incorporação de um grupo de sem-terra "local", que havia ocupado a área antes dos sem-terra do grupo III.
Nós chegamos aqui tinha umas família já na terra só que eles tava num clima de, às veis, até de ser despejado daqui porque eles não ia resisti à luta. Quando nós chegô nós se agrupo com eles. A Igreja tentava sustenta eles aqui, mas a sustentabilidade deles aqui foi nóis chegamos e se agrupamos e hoje nós tamos aqui eles também tá. (Entrevista com Miltão, em 05/11/2006, realizada por Amauri T. B. Nogueira).
Esses sem-terra "locais" tiveram que ser incorporados durante o processo de divisão de lotes, o que demandou muita negociação, pois eles diferiam do grupo III não só culturalmente, mas no projeto político. Não conheciam e nunca tinham tido contato com o MST ou outro grupo similar, não apresentando interesse de participar de uma luta pela reforma agrária em nível nacional; estavam interessados em resolver um problema local. O fato de não partilharem do ideal coletivo do grupo III não significa que não tinham um projeto político, uma vez que fizeram a sua luta para a conquista da terra, e disso eles não queriam abrir mão. Por serem moradores de Sorocaba e Porto Feliz, tinham o apoio de líderes políticos e do sindicato rural do município.
Os conflitos, naquele momento, surgiram no estágio da tensão pré-estabelecida, ou seja, nos conteúdos não ditos, nos valores morais explicitados, nas gestualidades das ações, a partir das posições dos sujeitos envolvidos, revelando a capacidade dos sujeitos de discordarem (ou não) da maioria do grupo e de fazerem possíveis enfrentamentos, mesmo com a acusação de não contribuírem para a construção do coletivo.
Os embates se polarizaram entre os que desejavam morar na agrovila e os que queriam morar como individuais. Os debates foram levados para as assembléias e discutidos de forma aberta entre as lideranças e os assentados em geral, com a presença dos representantes. Com o debate aberto, foi possível negociar para que os individuais conseguissem fixarem-se em seus lotes agricultáveis, e superarem, nesse momento, os conflitos de invalidação pessoal. Segundo a engenheira agrônoma, permitir que os individuais morassem nos seus lotes agricultáveis foi uma decisão de vanguarda.
Não foi um sorteio, os lotes foram sendo marcados, aí houve uma discussão no sentido de que..., até isso foi vanguarda na época do Instituto de Terras (ITESP), porque existia a orientação de que o pessoal deveria ficar constituído, morando na agrovila e tendo seu lote agrícola pra cultivo. Até por que a situação geográfica não permitia que isso acontecesse. Geográfica porque o assentamento é dividido por duas estradas a área. Nós abrimos a discussão no sentido de quem tinha interesse de morar na agrovila e ter o seu lote separado ou quem queria morar no próprio lote. Isso foi uma situação única. Até então não existia nenhum assentamento nessas condições. Em função desse número de pessoas que queriam morar no seu próprio lote e a defesa era a facilidade de você morar na terra, estar próximo. E aí a questão; as vantagens de você tá morando na agrovila é você estar mais próximo de um aparato básico para uma socialização, ou seja, escola, um barracão que serviria de múltiplo uso, pra depósito, pra festinha e eletrificação. Esses eram os pontos onde o Estado não tinha recurso pra estender isto para o assentamento todo, então ele garantiria isso em uma vila, vamos chamar assim. (Entrevista com Engenheira Izabel, em 07/02/2006, realizada por Amauri T. B. Nogueira).
No debate entre os individuais e coletivos, percebe-se que as famílias que resolveram morar como individuais foram aquelas que deixaram a vida de camponês com uma idade mais avançada, como, por exemplo, o Wilson e o Francisco, que deixaram a roça com trinta anos de idade. Esse tempo maior permitiu uma profunda experiência com a vida camponesa e, no momento da divisão dos lotes, o saber camponês teve uma grande importância para que os chamados individuais discordassem de morarem na agrovila e conseguissem efetivar moradia no espaço dos individuais. Percebemos, na fala do Sr. Francisco, o quanto a sua participação em uma das discussões como líder do grupo dos individuais foi importante.
Porque como era esse número alto de família pra morá, na agrovila não tinha como. A agrovila, como o módulo aqui é 9,7, ou 9,6 hectare cada um, talvez passa um pouquinho, dependendo da topografia. Então, num tinha como ficar perto da roça. Então, aquelas pessoas..., aí já tinha começado outros tipo de liderança, eu tinha a minha, mais eu era a minoria. Ai eles falou: a gente vai conquistar um trator e passa pegando o pessoal cedo na hora do almoço, passa pegando o almoço e, à tarde, trazendo o pessoal. Quer dizer, bóia-fria outra vez. Tudo nesse vai-e-vem; não se trabalha, então? Porque talvez o bóia-fria ia com esse interesse do dia-a-dia ou patrão. Como a gente era patrão nosso mesmo, então tinha aqueles que, às vezes, levantava seis horas, outro oito horas, então, ia esperá? Se não esperasse, o outro ia pra roça?
Então, ficava aquela dúvida. Eu falei: e se de repente vier uma chuva? Se tá fazendo uma colheita e tem que guardar aquele produto, como fazer se tá morando longe da roça? Aquele produto vai molhar, vai perder? Então, a gente chegou a essa conclusão; achou que não era viável todo mundo morar na agrovila. Se bem que tinha a vantagem da luz, da água, da escola, só que esse não é direito só de quem mora na agrovila, é de quem mora inclusive na região, nem só do assentamento. Então, eu e meu grupo achamos que não era viável, nóis ia só ficá perdendo tempo, andando de condução e que história muito mal contada, uma coisa que não funcionava e não funcionou. Então, dessas nove famílias que foram morar em cima, lote agricultável..., seis meses depois mais de quarenta queriam, só que aí já tinham tomado a decisão, já tinha cortado o lote de residência na agrovila. Quer dizer, acordaram muito tarde. (Entrevista com Francisco, em 14/01/2006, realizada por Amauri T. B. Nogueira).
Nesse debate, os individuais ganham força com a incorporação do grupo dos "assentados locais" de Porto Feliz. A fala acima revela-nos um conflito de saberes do camponês, sob a perspectiva da representação dos lugares oriundos desses sujeitos.
Mesmo tendo passado um longo tempo sem contato direto com o trabalho na terra, no momento da divisão de lotes, eles reafirmam sua posição de morarem individualmente, ainda que sob a pena de não terem acesso direto aos bens que ficariam disponíveis na agrovila. Leila Chalub Martins (2001:23) em seu estudo sobre extensão rural em assentamentos rurais destaca que a volta do camponês que ficou fora da terra por um período tem, no seu retorno à vida rural, a busca de um saber familiar e comunitário bem anterior, muitas vezes já desprezado, para enfrentar os problemas imediatos decorrentes do plantio e da criação de animais. Em contrapartida, as famílias que ficaram na agrovila usavam o discurso em favor dos benefícios de infra-estrutura:
A gente sentô e começou a conversar. Aí entendeu que na agrovila nós tinha muito mais benefício do que quem mora particular no lote, nós recebemos posto de saúde, escola, dois barracão de armazenamento, rede de luz e um poço artesiano com água para as famílias, e os outros não têm. Então, esse foi o benefício que a gente trocou de morar individual para a agrovila. (Entrevista com Idarlei, em 26/11/2005, realizada por Amauri T. B. Nogueira).
O que marca, nas características dessas famílias, é o fato de terem menos tempo de trabalho na terra e passarem por um longo período nos centros urbanos, como, por exemplo, o senhor Idarlei, que saiu da Bahia com dezoito anos de idade, morou na cidade de São Paulo durante quinze anos e, quando foi para o município de Sumaré, já estava casado. Caso semelhante ao de Miltão que, como já assinalado, passou a maior parte de sua vida em São Paulo.
Percebemos que uma das características da luta entre os individuais e os coletivos é que os primeiros desejavam que a disputa pela terra se restringisse ao espaço social do assentamento. Uma luta pela sobrevivência é pelo aqui- e- agora (imediata), enquanto que, para os coletivos, a luta é do aqui e agora, mas com o compromisso da reforma agrária, o que, nesse sentido, permite a espacialização e a territorialização da luta pela terra. É a luta na terra em contato com outros segmentos para que o assentamento se torne modelo de referência para a reforma agrária, incorporando o discurso do MST e do Estado, influenciados pelos engenheiros agrônomos. Ou seja, é um embate político, iniciado nos acampamentos e estreitado no assentamento. Se, no acampamento, era hora de reivindicação; no assentamento, era a oportunidade da ordem produtiva; e fazer a junção dessas duas necessidades era coadunar os discursos, o que passou a ser o desafio dos envolvidos no processo.
Nesse contexto, observa-se que o assentamento é um espaço social premido por necessidades imediatas; tudo é relativamente novo e precisa de respostas urgentes, envolvendo os sujeitos sociais em conflitos motivados por vários fatores de ordem política.
No interior do assentamento, as redes e relações sociais são, em grande parte, rupturas com a vida pregressa dos assentados; são momentos de nova sociabilidade. Os conflitos são reflexos de projetos distintos, de necessidades imediatas, mas também de projetos que pressupõem a construção do espaço social do assentamento sob as práticas sociais e estratégias de luta que encerram (re)arranjos de práticas democráticas que surgem como resultados dos conflitos negociados dentro das regras estabelecidas pelos próprios assentados. Nos documentos pesquisados, podemos observar as tensões, os conflitos e a tentativa de superação das diferenças entre os sujeitos sociais envolvidos no processo de organização do assentamento. De acordo com a Ata de Reunião, realizada em 05 de novembro de 1993, observa-se que uma das pautas refere-se à seleção de assentados para ocupar lotes vagos ou a vagar. Verifica-se a tensão no interior das comissões nos seguintes itens desta ata:
Item 3 – O Setor II teve seu representante juntamente com o Setor III, ambos eleitos pelos moradores do setor. O representante do setor I pediu para não participar da Comissão devido a pressões sofridas.
Item 7 – Qualquer negociação fora da lista não será reconhecida, sendo que o DAF acionará a Justiça para a retomada do Lote, ficando o comprador sem qualquer ressarcimento. (ITESP, 1993:02).
Temos aí um jogo de poder que envolve todo o assentamento, dentro de uma perspectiva democrática que, contudo, não consegue satisfazer a todos, fazendo com que os representantes lancem mão de alguns artifícios para fazer prosseguir a distribuição dos lotes. Observa-se, no final da ata, um "Alerta Geral: O desenvolvimento do assentamento e o bom convívio das famílias dependem de todos nós". Nota-se, nessa passagem, uma tentativa de conciliação que faz parte das iniciativas para a resolução dos conflitos encontrados.
O assentamento torna-se o lugar em que os sujeitos envolvidos no processo, com suas práticas e estratégias, constroem valores, produzem reconhecimento, mas também produzem regras, para o funcionamento, que limitam e condicionam o tipo de escolhas a serem feitas pelos assentados. Nessa perspectiva de tentar conciliar os conflitos envolvendo os assentados, as práticas e estratégias passam a ser democráticas do ponto de vista do interior do assentamento, o que traz contradições para os representantes que portam outros projetos de assentamento e, sobretudo, as relações ficam sob o agenciamento do Estado, o que, em muitos casos, como alguns citados anteriormente, não define o processo de assentamento em geral, mas condiciona, em alguns momentos, e sugere, em outros. Exemplo desses conflitos são as diferenças das representações entre assentados e representantes, sejam eles padres ou técnicos representantes do Estado. O assentamento apresenta, na sua formação e organização, os conflitos das instituições com as quais foram socializados: Igreja, MST e o Estado. Na disputa pelos espaços decisórios, os assentados líderes e representantes produzem experiências; autoritárias, de favores, mas sobretudo democráticas. Os assentados, por meio das negociações que engendram concessões e ganhos, imprimidas pela dinâmica das práticas sociais e estratégias de luta, permitem questionar as relações de autoritarismo e de favores que são construídas entre opositores. É a constituição do assentamento como terra conquistada, fruto da práxis dos próprios sujeitos envolvidos no processo de uma nova sociabilidade que dá a identidadepara os sujeitos.
O homem supera (transcende) originariamente a situação não com a consciência, as intenções e os projetos ideais, mas com a práxis. A realidade não é um sistema dos meus significados, nem se transforma em função dos significados que atribuo aos meus planos. Mas, com o seu agir, o homem inscreve significados no mundo e cria a estrutura significativa do próprio mundo. (Kosik, 1976:220).
Portanto, são o sujeito e o espaço em construção, resultados das práticas sociais e estratégias de lutas e os conflitos daí advindos; a partir do movimento do conflito se conformam as relações, as redes sociais que se estabelecem no cotidiano dos trabalhadores, dos representantes e das lideranças, e as rupturas com as relações de dominação, em que expressam a configuração do espaço em disputa. Os conflitos nas relações socioespaciais são nesse sentido herdados da memória, individual e coletiva social em construção, fruto das trajetórias de vida e trabalho, que vão gestando nesse processo o ser camponês assentado na interface do urbano e do rural vivendo sob o signo do conflito, o qual é acidental e se dá pela territorialização do capital, que força uma trajetória de vida/trabalho precária e põe na mesma estrada homens e mulheres espoliados, expropriados por ele. O conflito é carregado de negatividade; fere, sangra, separa amigos de longos anos, faz inimigos, se torna quase um poema, tece sua trama e faz seu drama. É efêmero, pois se dá no "miudinho" da vida, nas rupturas, nos imprevistos, no inesperado. Nesse sentido, é processual, e se desvenda/transforma no cotidiano da vida, tornando-se eterno.
Referências
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Dissertação Mestrado em Geografia Humana DG - Universidade de São Paulo
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STÉDILE, João Pedro Questão Agrária no Brasil. São Paulo: Atual, 1997.
WANDERLEY, Maria de Nazareth Baudel. e LOURENÇO, Fernando, Antonio. O agricultor e a vida local. In: LAMARCHE, Hugues. (cood) A Agricultura Familiar. 2v. Campinas: Unicamp, 1998.
Autor:
Mauri Tadeu Barbosa Nogueira
Mestre em Geografia Humana pelo Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) USP.
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