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O que é, sem dúvida, uma artimanha ideológica muito eficiente contra o questionamento da propriedade privada, uma vez que qualquer questionamento é logo sofisticamente convertido em ameaça às próprias condições de existência material das pessoas e mesmo contra sua liberdade.
À época de Marx, esta forma de propriedade ainda não gozava da legitimidade ideológica que tem nos dias atuais. A existência da mesma era, muitas vezes e facilmente, associada a todo tipo de mazelas humanas e sociais. Uma questão citada, por exemplo, por Thomas Morus, em seu livro Utopia, é o processo violento de desapropriação de terras ao qual foram submetidos imensos contingentes da população inglesa, que exerciam sobre estas terras diversas formas de propriedade, que não a privada. A causa da miséria decorrente desses processos de cercamento, processos exercidos a fim de viabilizar a criação de ovelhas, com o objetivo de abastecer as nascentes indústrias têxteis com matéria-prima, era identificada claramente com a apropriação privada das terras.
Não foram poucos os teóricos que identificaram todo o tipo de misérias da época com a existência da propriedade privada. Propostas dos socialistas utópicos, como as cooperativistas de Proudhon ou mesmo os falanstérios de Charles Fourier, eram tentativas de se contrapor à mesma, tida como a geradora de uma sociedade e de indivíduos cada vez mais alienados de suas autênticas propriedades humanas e sociais. Segundo Marx, no entanto, estes pensadores, em certa medida, partiam do mesmo pressuposto dos economistas, pois assumiam dogmaticamente a propriedade privada como sendo um fato dado, sem explicá-lo, deixando, assim, de entender a gênese social deste fato.
Para, no entanto, poder questionar algo a partir de sua gênese constituidora, é preciso entender suas condições de possibilidade, ou, em outras palavras, a processualidade social e humana pressuposta. O mérito da reflexão de Marx em relação ao tema, no escrito em questão, é que, em vez de afirmar que a propriedade privada é a causa da alienação, como faziam os socialistas utópicos, afirma o contrário: que o trabalho alienado é a causa (condição de possibilidade) da propriedade privada.
Marx realiza seu intento teórico à medida que vai desvendando e aprofundando os pressupostos humanos e sociais desta forma específica de propriedade a partir de níveis diferenciados de alienação. Busca, assim, "apreender a conexão essencial entre todo este sistema de alienação [...] e o sistema do dinheiro" (Idem: 158), termo utilizado na época para designar o que mais tarde se passaria a chamar, consensualmente, de sociedade capitalista.
Para tanto, Marx assume um fato que os próprios economistas haviam descoberto (do qual muitas vezes não nos damos conta), qual seja, o de que o "trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais riqueza produz" (Idem: 159), já que ocorre que as riquezas produzidas pelo trabalhador são apropriadas por outros. Marx busca, no entanto, investigar os pressupostos ocultos neste fato, ou seja, como é possível que quanto mais o trabalhador produz mais ele valoriza o mundo das coisas e o poder daqueles que o dominam?
Segundo os economistas, este parece ser um destino humano, ou seja, o trabalhador exteriorizar-se em coisas físicas, objetivando-se e aumentando, desta forma, o poder das coisas sobre o poder humano. Dessa forma, a apropriação do objeto no processo de trabalho, uma vez que trabalho é sempre um processo de exteriorização, aparece sempre como sendo alienação de si mesmo. A economia política não ultrapassa este estágio do pensamento, simplesmente identificando objetificação/exteriorização com alienação, e apresentando, assim, a alienação do produto do trabalho como algo naturalizado e necessário. Marx não se satisfaz com esta explicação e procura deduzir outras implicações deste fato.
Reflete, por isto, que o trabalhador é duplamente dependente do objeto, ou seja, não apenas porque ele não pode produzir sem ter um mundo sensível com o qual interage, mas também porque precisa deste mundo exterior para se manter como ser vivo, comendo, respirando, etc. Conclui-se, portanto, que a humanidade concreta e viva do homem só pode se realizar à medida que este se relaciona com o mundo exterior.
Neste fato, Marx evidencia uma realidade que não aparecia na afirmação superficial da alienação do trabalho em relação ao objeto. Afinal, se a interação humana com o objeto tem um significado mais amplo do que uma simples objetificação, a alienação do objeto também tem implicações mais amplas e profundas, de forma que na "alienação do objeto do trabalho, resume-se apenas a alienação na própria atividade do trabalho" (Idem: 162). Decorre, portanto, que o próprio processo produtivo já deve ser um processo ativo de alienação, ou seja, não basta distribuir os produtos do trabalho alienado, pois é o próprio processo de trabalho enquanto processo ativo de alienação que precisa ser superado.
Em vez de uma alienação factual e estanque, a alienação passa a ser concebida a partir de sua origem processual e social. Esta realidade, segundo Marx, é constatável pelo fato de que, no processo de produção capitalista, o trabalhador se sente infeliz e oprimido, chegando ao extremo de que "o trabalhador só se sente em si fora do trabalho, enquanto no trabalho se sente fora de si. Assim, o seu trabalho não é voluntário, mas imposto, é trabalho forçado" (Idem: 162). O trabalhador, neste caso, sente que está se arruinando espiritual e fisicamente. O trabalho não traz satisfação em si, serve apenas como meio para atingir outros fins, pois o trabalhador sabe que o trabalho não é seu, que ele pertence a outro. Ele nem mesmo decide sobre a forma de proceder e a finalidade do mesmo. É apenas um sacrifício necessário.
Como a ação que o trabalhador realiza neste processo é expressão de sua própria vida, é sua própria vida enquanto atividade produtiva que se aliena. Esta reflexão permite que Marx possa perceber um nível ainda mais profundo de alienação implícito ao trabalho alienado, ou seja, a auto-alienação. Esta, no entanto, não é um simples processo de objetificação de um indivíduo, pois a própria atividade do trabalho só é possível à medida que os homens são capazes de uma atividade vital consciente, ou seja, à medida que eles fazem uso de qualidades humanas universais, enquanto seres genéricos, ou, nas palavras de Marx: "como um ser universal, e portanto livre" (Idem: 163). Não é, pois, em um nível puramente intelectual, mas em sua atuação sobre a natureza, ou seja, moldando a natureza conforme sua natureza humana, que o ser humano efetivamente se manifesta como ser livre. Como esta atuação/interrelação com a natureza não lhe pertence mais, é sua liberdade que lhe é usurpada. Dessa forma, suas qualidades propriamente humanas servem apenas como meios, vendidos a alguém, para satisfazer indiretamente suas necessidades animais, como comer, vestir, etc.
Como conseqüência subseqüente, pode-se afirmar que, quando "o homem se aliena de si mesmo, entra igualmente em oposição com os outros homens" (Idem: 166), ou seja, pelo fato de o homem ter se alienado de seu corpo, de sua natureza externa e de sua capacidade de ser livre, ele acaba se alienando também de seu semelhante, uma vez que a própria espécie humana passou a ser algo estranho para ele. No dizer de Marx:
O que se verifica com a relação do homem ao seu trabalho, ao produto do seu trabalho e a si mesmo, verifica-se também com a relação do homem aos outros homens, bem como ao trabalho e ao objeto do trabalho dos outros homens. De modo geral, a afirmação de que o homem se encontra alienado da sua vida genérica significa que um homem está alienado dos outros, e que cada um dos outros se encontra igualmente alienado da vida humana (Idem: 166).
A conclusão a que Marx chega é inédita: a alienação do homem em relação a seu produto, ao processo de produção e a si mesmo, experimenta-se, primeiramente, na relação do homem com os outros homens, desvendando-se, assim, uma inter-relação nas formas de alienação. Dessa forma, a que surgiu por último, a saber, a alienação do homem em relação aos outros homens é, também, condição das anteriores. Ou seja, há uma inquestionável primazia deste último nível de alienação em relação aos demais. O estranhamento e a indiferença dos homens na relação uns com os outros se mostra, portanto, como sendo o fundamento social mais profundo da alienação e não a propriedade privada. Ou, dito de outra forma: toda "auto-alienação do homem, de si mesmo e da natureza, transparece na relação que ele postula entre os homens, si mesmo e a natureza" (Idem: 168).
A possibilidade de que um ser humano se aproprie do produto do trabalho de outro ser humano só é possível à medida que os seres humanos se relacionam entre si na qualidade de seres estranhos. Dizer que o homem se relaciona de forma alienada com seu trabalho significa dizer que outro homem usurpou este poder dele enquanto senhor que o determina e coage. "Por conseguinte, o homem, através do trabalho alienado, não só produz a sua relação ao objeto e ao ato de produção como a homens estranhos e hostis, mas produz ainda a relação dos outros homens à sua produção e ao seu produto e a relação entre ele mesmo e os outros homens" (Idem:168), ou seja, nesta relação se efetiva a dominação de quem não produz sobre o produtor, a produção e o produto.
Os níveis diferenciados de alienação acima expostos são, portanto, pressupostos sociais e humanos para que alguém possa se apropriar de forma aparentemente legítima do trabalho alheio. A alienação gera a possibilidade de apropriação privada dos produtos do trabalho humano socialmente produzido. A propriedade privada é, pois, fundamentalmente, produto e conseqüência do trabalho alienado, ou, nas palavras de Marx: "A propriedade privada deriva-se assim da análise do conceito de trabalho alienado, ou seja, do homem alienado, do trabalho alienado, da vida alienada do homem estranho a si próprio" (Idem: 168).
As reflexões de Marx, no escrito em questão, são de uma extrema atualidade e produtividade político-pedagógica. Gostaríamos de chamar atenção para alguns destes possíveis aspectos.
Em primeiro lugar, ao tornar a questão da propriedade privada uma questão que diz respeito a uma processualidade social e a propriedades genuinamente humanas, Marx desmistificou alguns dogmas dos economistas, evidenciando pressupostos e relações de poder e dominação camuflados por estes dogmas. "De fato, ao falar-se de propriedade privada, há quem pense estar a ocupar-se de algo externo ao homem. Mas, quando se fala de trabalho, havemo-nos imediatamente com o próprio homem" (Marx: 171), ou seja, Marx revelou relações de dominação implícitas nos pressupostos da propriedade privada, trazendo, assim, estas relações para a esfera da sociedade e das decisões humanas e políticas.
Em segundo lugar, fica evidente que o simples aumento de salários ou uma distribuição mais eqüitativa dos produtos do trabalho apenas afeta a forma mais superficial do processo de alienação e em nada altera as condições de possibilidade e de reprodução da propriedade privada, uma vez que não é a desigualdade de renda que gera a alienação e a escravidão do homem. Neste sentido, é válida a afirmação de Marx, segundo a qual "um aumento de salários forçado [...] não passaria de uma melhor remuneração dos escravos e não restituiria o significado e o valor humanos nem ao trabalhador, nem ao trabalho" (Idem: 170). Desta forma, Marx aponta para a ilusão na qual incorrem teorias que pregam uma igualdade de salários, como forma de superação da propriedade privada, e nos desafia a buscar a superação das raízes sociais e humanas desta condição. Da mesma forma, fica evidente a esterilidade de propostas emancipatórias que não impliquem simultaneamente transformações nas relações dos seres humanos com a natureza, entre si e do processo produtivo.
Em terceiro lugar, ao demonstrar que é no próprio processo de alienação que se efetivam as condições de possibilidade da propriedade privada, Marx abre um leque incrível para as ações emancipatórias, pois, se o processo de alienação é, ao mesmo tempo, um processo de perda do ser humano de si, dos outros e da natureza, o processo inverso só pode ser um processo de re-apropriação e de potencialização destas propriedades perdidas. Como esta alienação encontra sua expressão mais radical na relação dos seres humanos entre si e com a natureza, sua superação implica, prioritariamente, a superação do isolamento social em que nos encontramos na sociedade capitalista e a construção de uma outra relação com a natureza interna e externa do ser humano.
O processo de emancipação, portanto, é uma tarefa que pode ser empreendido em diversos níveis e esferas sociais, humanas e naturais, sem que seja preciso esperar por um momento ou sujeito redentor ou messiânico que o faça. Emancipação humana torna-se, assim, práxis social engajada, que vai muito além da estreita e grosseira concepção de política, pela qual muitas vezes somos encurralados e paralisados na atualidade.
FLICKINGER, Hans-Georg. Marx: nas pistas da desmistificação filosófica do capitalismo. Porto Alegre: L&PM, 1985.
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1975.
MARX, Karl. Ökonomisch-philosophische Manuskripte. In: Marx/Engels Werke, Ergänzungsband. Berlin: Dietz Verlag, 1973.
SCHÜTZ, Rosalvo. Religião e capitalismo: uma reflexão a partir de Feuerbach e Marx. Porto Alegre: EDIPUCRS. Coleção Filosofia 126, 2001.
Autor:
Rosalvo Schütz
rosalvoschutz[arroba]hotmail.com
Doutor em Filosofia pela Universidade de Kassel, Alemanha e pesquisador CAPES no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas.
Docente de Filosofia na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).
Fonte: Revista Espaço Acadêmico Nº87, Agosto de 2008
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