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O que difere o trabalho de todas as outras práxis humano-sociais, portanto, não é a sua configuração interna (teleologia, objetivação, exteriorização[6]etc.), a sua forma, o fato de ser ou não assalariado, de ser ou não uma atividade partícipe da divisão social do trabalho. Todos os atos humanos são uma relação entre teleologia e causalidade; todas as práxis sociais fazem parte da reprodução social; todas as atividades humanas são socialmente necessárias, etc. O que as difere entre si é a função social que exercem. E a função social se expressa imediata e diretamente no momento da objetivação. Por ser o trabalho a categoria que realiza o intercâmbio orgânico com a natureza, é ele o único momento em que a objetivação se volta sobre a causalidade natural (como matéria-prima ou matéria já processada, ou então como produto direto da natureza, como a atmosfera, etc.) (Marx, 1983: 151-153). Isto faz com que sua objetivação incorpore todos os procedimentos indispensáveis para converter o ser natural em valores de uso. Todas as outras práxis sociais, em contraste, agem sobre a causalidade social e, por sua vez, incorporam todas necessidades implícitas na transformação das relações sociais, dos complexos sociais. Sendo muito breve: a objetivação do trabalho age sobre uma matéria natural e tem que levar em consideração as suas determinações físicas, químicas e biológicas. As objetivações de todas as outras práxis sociais se voltam sobre seres humanos e têm que respeitar o fato de transformar uma causalidade social que apenas pode existir através dos atos singulares dos indivíduos concretamente existentes. O que significa que a dimensão ideológica se encontra, nas práticas que não são trabalho, não apenas do lado do sujeito, mas também do lado da causalidade a ser transformada.
É esta situação ontológica elementar que faz com que a objetivação do trabalho seja inteiramente distinta das objetivações de todas as outras práxis sociais e é nesse momento, o da objetivação, que se expressa por inteiro a sua função específica[7]É, por isso, no momento da objetivação que podemos distinguir com clareza o que aproxima e o que distingue o trabalho de todo o restante das atividades humanas.
Ao chegarmos no capitalismo maduro, esta situação passa por uma mudança significativa fundamentalmente porque a mediação do trabalho abstrato torna a relação do trabalho com a totalidade social muito mais complexa. Ainda assim, continua plenamente válido o critério de Marx e de Lukács de tomar a objetivação como a categoria decisiva na distinção do trabalho de todos os demais complexos sociais. Mas, sem dúvida, as coisas se tornaram mais complexas que no mundo pré-capitalista.
A distinção e simultânea articulação entre o trabalho e o trabalho abstrato está na essência da distinção ontológica entre a função social dos operários e a dos assalariados não-operários. Devemos, pois, começar por esta questão.
A primeira necessidade humana, aquela cujo não atendimento implica na impossibilidade de qualquer sociedade, é a reprodução biológica dos indivíduos. E isto apenas é possível pela transformação da natureza nos bens necessários à reprodução social (alimentos, vestuário, moradia, etc). É o complexo social que atende a esta necessidade primária que Marx denominou trabalho. O trabalho, para Marx, é o intercâmbio orgânico com a natureza e, por isso, é uma "condição eterna" da vida social. (Marx, 1983: 153)
O caso do Direito é um dos infinitos exemplos possíveis: surgido para atender à necessidade de organizar uma sociedade divida em classes sociais e, deste modo, garantir a exploração do homem pelo homem, cumpre uma função tão importante na reprodução de tais sociedades que, na sua ausência, nem poderíamos ter o trabalho escravo, nem o trabalho servil medieval, nem ainda o trabalho operário. O Direito é uma práxis social imprescindível para que o trabalho seja realizado com base na exploração do homem pelo homem. Contudo, esta inegável relação histórica entre o Direito e o trabalho não os identifica, apenas os articula. Se o Direito cria as condições necessárias para que o senhor de escravo force o escravo a trabalhar, para que o senhor feudal extraia o maistrabalho do servo e para que o capitalista explore o trabalho assalariado, não menos verdadeiro é que o Direito não produz sequer os bens materiais necessários à sua própria reprodução, para não falar da reprodução da sociedade como um todo. O trabalho realiza o metabolismo entre o homem e a natureza, o Direito faz parte daquela força especial de repressão (o Estado) que auxilia a classe dominante a organizar a sociedade de modo a levar adiante a exploração daqueles que trabalham. O mesmo, mutatis mutandis, pode ser dito da educação, da linguagem, da ética, do serviço social[8]da arte, da filosofia, da política, da educação, etc.[9]
À medida que a sociedade se desenvolve, essa concomitante articulação e distinção entre o trabalho e as outras práxis sociais se repõem sob as formas as mais variadas. A passagem de um modo de produção a outro introduz, sempre, novas formas e novos conteúdos nessa relação. Tal como no escravismo e no feudalismo, também no capitalismo essa articulação/distinção entre o trabalho intercâmbio orgânico com a natureza e as outras práxis sociais não foi abolida, apenas recebeu uma nova forma e um novo conteúdo: os complexos ideológicos ganham um peso crescente na reprodução social, os processos de individuação se relacionam de forma mais intensa e profunda com os processos de alienação (Entfremdung), a interação entre a ciência e o trabalho, pela mediação da tecnologia, tende a receber um impulso qualitativamente novo, etc.
Contudo, mesmo em se levando tudo isso e muito mais em consideração, aquela constatação de fundo continua válida: organizar os homens, ou organizar os projetos (as idéias, as ciências, o conhecimento, a estratégia, o marketing, etc.) para que uma dada transformação da natureza se efetue é distinta da própria transformação da natureza.
Tanto hoje como no passado, organizar o trabalho não é ainda transformar a natureza. A grande novidade na sociedade capitalista mais avançada é que o intercâmbio orgânico com a natureza se tornou mais complexa e fez surgir muitas novas práxis sociais. Estas, contudo, jamais substituirão o trabalho: organizar os homens[10]para que uma dada produção se efetive é ontologicamente distinto da produção enquanto tal. Organizar sempre foi e permanece sendo imprescindível ao trabalho, mas não é, jamais, trabalho[11]Nos termos lukácsianos, a transformação da natureza é sempre o "pôr teleológico primário" e as atividades de planejamento e controle fazem parte do "pôr teleológico secundário"[12].
Na sociedade capitalista dos nossos dias, um fator contribui para que essa articulação e simultânea distinção entre o trabalho e as outras práxis sociais sejam equivocadamente confundidas por uma identidade. O fato de que, para o capital, o que distingue as práxis humanas é sua capacidade para gerar lucros; para a acumulação do capital é aparentemente – lembremos que a aparência faz parte do real --secundário se uma atividade é, ou não, intercâmbio orgânico com a natureza. Examinemos esta questão mais de perto.
Como, para o capital, toda fonte de lucro não passa de fonte de lucro, ele reduz a esse denominador comum todas as atividades humanas, sejam elas ou não intercâmbio orgânico com a natureza, sejam elas ou não trabalho. O trabalho abstrato é precisamente isso: o processo social pelo qual o capital, em sua auto-valorização, desconsidera as diferenças ontológicas entre as diferentes práxis sociais reduzindo-as, todas, àquilo que, para ele, é essencial: as suas diferentes capacidades de produzir mais-valia. Nessa dimensão, e apenas nela, não tem qualquer importância a distinção entre o trabalho que transforma a natureza e o trabalho abstrato de um professor ou de um gerente de fábrica: são eles momentos da reprodução do capital[13].
Fixemos este aspecto, pois da maior importância: entre o trabalho e o trabalho abstrato há uma enorme distinção ontológica. Hoje, o trabalho abstrato inclui quase todo o intercâmbio orgânico com a natureza e, também, inclui uma enorme gama de práxis que apenas de modo indireto, por vezes de modo muito indireto, se articulam com o metabolismo homem/natureza. Ainda assim, não há qualquer identidade possível entre o trabalho e o trabalho abstrato porque são relações sociais que atendem a funções sociais inteiramente distintas.
Esta, contudo, é apenas parte da realidade, aquela parte que tem por horizonte a reprodução do capital. O outro lado da moeda é que, em se tratando da reprodução da sociedade, sem a transformação da natureza, não há qualquer capitalismo possível. Tal como nas sociedade précapitalistas, o trabalho enquanto intercâmbio orgânico com a natureza continua sendo a "condição eterna da vida social". Em se tratando da reprodução social, portanto, há uma distinção ontológica decisiva entre a reprodução do capital e o trabalho. Sem o último, a reprodução do capital é inviabilizada em sua base material. E esse fato fundamental não tem lugar nas relações sociais alienadas pelo fetichismo da mercadoria.
Em outras palavras, para a auto-valorização do capital não faz qualquer diferença se a maisvalia foi ou não extraída do intercâmbio orgânico com a natureza, se a mais-valia teve sua origem numa escola, num teatro ou numa fábrica. Mas, repetimos, isto do ponto de vista da reprodução do capital. Pois, se abandonarmos esta perspectiva alienada constataremos que mesmo a sociedade capitalista mais desenvolvida depende da transformação da natureza. Sem trabalho, portanto, não há qualquer capitalismo possível – mutatis mutandis, tal como com todas as sociedades pré-capitalistas.
Em suma: a regência do capital não deve nos levar a desconsiderar que, sem a transformação da natureza pelo trabalho, não há qualquer capital possível. Entre o trabalho e o trabalho abstrato pode haver uma superposição, mas, jamais uma identidade. Se a reprodução do capital absorve boa parte do trabalho intercâmbio orgânico com a natureza em seu circuito de valorização, isto não significa que tenhamos uma identidade entre a auto-valorização do capital e a reprodução da sociedade. Os processos de alienação são justamente aqueles pelos quais esta contradição entre a humanidade e o capital se afirma de modo mais violento. O trabalho é uma "eterna necessidade" da vida humana, o trabalho abstrato apenas uma categoria da sociedade capitalista.
Posta essa distinção fundamental entre trabalho e trabalho abstrato, podemos nos deter em um outro aspecto da questão: o conjunto dos trabalhos abstratos contém, em seu interior, distintas relações com o capital. Uma parte do trabalho abstrato produz a mais-valia, uma outra parte realiza a transformação dessa mais-valia em dinheiro (mediação imprescindível para que possa retornar à produção como capital) e, uma terceira, como os funcionários públicos, apenas prestam serviços imprescindíveis (com as devidas mediações) à dominação de classe e, portanto, à continuidade da valorização do capital. Para distinguir estes momentos Marx empregou as categoriais de trabalho (abstrato) produtivo e trabalho (abstrato) improdutivo[14]Essa uma primeira diferenciação no interior do trabalho abstrato: do ponto de vista do capital, ele pode ser, ou não, produtor de mais-valia.
Para ficarmos com Marx, peguemos dois exemplos que o debate tornou clássico: o da cantora de ópera[15]e do mestre escola. Ambos podem produzir mais-valia na condição de ter sua força-detrabalho comprada por um capitalista. O burguês sai do negócio com seu capital ampliado: o arrecadado com os bilhetes ou com as mensalidades escolares é um montante maior do que ele pagou pelo trabalho do professor, ou da cantora, somado aos "custos" do negócio. A geração desta mais-valia se deu sem a transformação da natureza: o dinheiro que as pessoas tinham no bolso e que repassaram ao capitalista como pagamento dos bilhetes de ópera, ou das mensalidades escolares, se transformou em capital nas mãos do burguês. Se os consumidores tiraram de seus bolsos 20 reais, estes mesmos 20 reais entraram no cofre do capitalista. É, portanto, uma mera troca de notas de um bolso no qual as notas servem para o consumo, para o cofre, no qual cumprem a função de capital. A riqueza total da sociedade permaneceu precisamente a mesma, nem em um grão foi acrescida por esta troca de notas entre o bolso do consumidor e o cofre do capitalista. Essa é a acumulação de mais-valia pela transformação de dinheiro em capital. Contudo, repetimos, é uma troca de soma zero: ao final do circuito, a riqueza apenas mudou de mãos e de função social (de dinheiro para capital), mas isto não alterou sequer em um átomo a quantia da riqueza total da sociedade.
Algo completamente distinto ocorre com o trabalho operário (aquele que, nas sociedades capitalistas realiza o intercâmbio orgânico com a natureza). Ao transformar a natureza, ele produz uma riqueza antes inexistente. A quantia total da riqueza social se acresce com cada minuto de trabalho operário, pois ele, ao converter natureza em bens sociais, produz o "conteúdo material da riqueza". (Marx, 1983:46).
Ao lado da distinção entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo, esta é a segunda diferenciação da relação do trabalho abstrato com o capital: nem tudo o que produz mais-valia é o intercâmbio orgânico com a natureza que produz o "conteúdo material da riqueza social".
Em sendo assim, e – novamente --tal como nas formações pré-capitalistas, também hoje toda a sociedade vive da apropriação da riqueza produzida por aqueles que convertem a natureza nos bens materiais indispensáveis à reprodução social. E isto, de forma mediada, comparece até mesmo na esfera da auto-valorização do capital: a transformação de dinheiro em capital apenas pode ter lugar se, antes, houver sido produzido o "conteúdo material" desta riqueza expressa pelo dinheiro a ser convertido em capital[16]Portanto – e novamente --(e sem negar as grandes novidades que o capitalismo trouxe nesta área), nossa sociedade também conhece a dependência ontológica da totalidade da vida social para com o trabalho que realiza o intercâmbio orgânico com a natureza. Tanto nas sociedades pré-capitalistas quanto hoje, o "conteúdo material da riqueza" é produzido pelo trabalho manual, intercâmbio orgânico com a natureza que, por isso, é a categoria fundante tanto das formações pré-capitalistas como da sociedade na qual vivemos, é a "eterna necessidade" da vida social.
Se estivermos corretos na nossa delimitação da relação entre trabalho e trabalho abstrato, há três aspectos que merecem ser examinados:
1) a relação entre o capital e o trabalho operário, entre a burguesia e a classe operária. Essa é uma relação de exploração pela qual a força de trabalho dos operários, sob a forma de trabalho abstrato, produz o "conteúdo material" sobre o qual se apóia a forma historicamente particular de riqueza que é o capital.
2) a relação entre o trabalho do operário e o trabalho dos assalariados não-operários. Se todo "conteúdo material da riqueza" é produzida pelo trabalho operário, o salário dos assalariados nãooperários provém da mais-valia extraída do trabalho operário. Nesse sentido preciso, os setores assalariados não-operários vivem da exploração do trabalho operário. Diferente do que ocorre com a burguesia, contudo, esta não é uma relação de exploração direta, mas sim indireta. A burguesia possui a potência histórica de proprietária do capital e, assim, as alienações que ele funda são expressões da força histórica da burguesia enquanto classe dominante. Enquanto tal, ela se apropria diretamente da mais-valia operária e uma parcela dessa riqueza é transferida aos assalariados nãooperários. Ainda que também explorados pelo capital (votaremos a este ponto a seguir), os setores assalariados não-operários vivem indiretamente da exploração do trabalho operário.
3) a relação entre o capital e os assalariados não-operários. É uma relação de exploração, contudo distinta da exploração da classe operária. A força de trabalho destes trabalhadores é convertida em trabalho abstrato e, enquanto tal, entra no circuito de auto-valorização do capital (seja como trabalho produtivo ou improdutivo, aqui não importa). Quanto menos a burguesia transferir a esses trabalhadores do quantum de riqueza que extorquiu dos operários, maior será seu lucro. Há, aqui, portanto, uma relação de exploração que é o fundamento da peculiar contradição entre os trabalhadores não-operários e a burguesia. Os primeiros querem ampliar os seus salários, os detentores do capital querem reduzi-los ao mínimo; é uma contradição centrada ao redor do montante dos salários e não do sistema de assalariamento[17]Destes três pontos, três conseqüências a serem assinaladas:
a) independente de como se apresente, a cada momento da história, a consciência de classe dos operários e dos assalariados não-operários, há entre eles uma fundamental diferença ontológica enraizada na base material da sociedade: tal como a burguesia, os assalariados não-operários vivem da apropriação da riqueza produzida pelos operários.
b) sendo o trabalho operário a origem de todo "o conteúdo material da riqueza" (o que não quer dizer, como vimos, a única fonte de mais-valia), isto significa que todo o restante da sociedade vive da sua exploração. Ou seja, a única classe que vive do seu próprio trabalho é a classe operária. Por essa razão é ela a única classe para a qual a extinção da propriedade privada é condição primeira para sua emancipação. Todas as outras classes vivem, direta ou indiretamente, da exploração do trabalho operário e têm, por isso, na propriedade privada dos meios de produção a condição primeira de sua existência. Daqui que a contradição entre os trabalhadores não-operários e a burguesia seja ontologicamente distinta da existente entre operários e burgueses. Aos primeiros trata-se de lutar pela melhoria dos salários, aos operários a única alternativa histórica está na superação da propriedade privada.
c) Portanto, enquanto existir a sociedade capitalista, ela terá o "conteúdo material da riqueza social" sob a forma capital produzido no trabalho manual que realiza o intercâmbio orgânico com a natureza. Se entre a mão e a natureza se interpõe uma marreta ou um maquinário muito complexo, nada altera de essencial nesse fato: sem a transformação da natureza não há qualquer capital possível. Pela mesma razão, a distinção e articulação entre os assalariados não-operários (as "classes de transição" (Marx, 1979: 229) o proletariado e a burguesia são inelimináveis nos seus traços mais essenciais enquanto perdurar o modo de produção capitalista. O fato de aumentar ou diminuir a quantidade de operários ou de membros das "classes de transição" com o desenvolvimento das forças produtivas do capital certamente é parte das novas situações históricas que vão sendo produzidas continuamente ao longo do tempo. Podem ter (ou não) uma importância política maior, a depender de cada momento. Todavia, em nada altera o que apontamos: não há qualquer possibilidade ontológica de as alterações nas tecnologias ou nos padrões de gerência do capitalismo serem o fundamento da superação das relações de produção capitalistas.
Insistimos que estamos examinando apenas as determinações ontológicas mais gerais dos operários e dos assalariados não-operários. Não se trata, portanto, da investigação das formas de consciência que brotam, a cada momento, de tais determinações. Abordar a questão ideológica aqui envolvida implicaria, antes de mais nada, em um exame do caráter contra-revolucionário do período histórico em que vivemos, o mais profundo e extenso desde a Revolução Francesa. Deixando portanto de lado a questão da "subjetividade" operária – como se diz hoje em dia --e a dos outros assalariados, podemos apenas constatar que a superação da propriedade privada é condição ontológica indispensável para a emancipação operária; e que o mesmo não ocorre para os outros assalariados.
Nenhuma plataforma comunista pode dispensar a centralidade operária --sem desconsiderar que a proposta comunista necessita de uma base social mais ampla que o operariado para se tornar historicamente viável, quando se trata de ir para além do capital, portanto, a centralidade proletária é decisiva. Pela simples e boa razão de ser o proletariado a única classe que vive do seu próprio trabalho e que, por isso, nada tem a perder com a extinção da forma contemporânea de exploração que é a propriedade privada burguesa.
A perda da base social histórica para a superação do capitalismo é, a nosso ver, a conseqüência teórica mais imediata e visível das teses que cancelam ou tendem a velar a distinção entre os operários e os assalariados não-operários. Ao assim proceder, abrem espaço para as concepções (não comunistas, mas democráticas) que propõem a distribuição da renda ao invés da superação do capital.
Tal como da centralidade ontológica do trabalho não decorre imediatamente a centralidade política dos trabalhadores; do fato de operários e assalariados não-operários hoje se comportarem politicamente de modo assemelhado não implica na eliminação das distinções ontológicas entre eles. Ou seja, tanto num caso como no outro, não devemos utilizar a esfera da política como resolutiva das questões ontológicas. Antes, o mais apropriado, de um modo geral, é o inverso: buscar o fundamento ontológico dos fenômenos sociais para explicar as suas repercussões na esfera política.
Substituir a ontologia pela política nunca deu bons resultados teóricos. O fato de hoje estarmos mergulhados em um ambiente contra-revolucionário, em cuja penumbra assalariados e operários se confundem política e ideologicamente, não deve nos levar a desprezarmos os fundamentos materiais que os distinguem. São as diversas inserções dos indivíduos na estrutura produtiva de uma sociedade que diferenciam as classes entre si: é a função que exercem na reprodução social o fundamento material da distinção entre as classes.
Recuperar, trazer à tona, o fundamento ontológico-material das classes sociais, é um passo imprescindível na determinação do sujeito revolucionário no dia em que vivemos. Pelo contrário, se tomarmos como fundante das classes o complexo da política e, em uma postura típica da sociologia, substituirmos a história pela presente "vida cotidiana", "constataremos" o fim do proletariado e, portanto, o fim da revolução capaz de superar a propriedade privada. E, neste caminhar, o nosso horizonte deixará de ser a superação do capital para se restringir à distribuição mais eqüitativa da riqueza expropriada dos operários.
Há que se reconhecer, contudo, que a adoção do critério ontológico para essa discussão é um passo imprescindível, contudo longe de ser suficiente. Uma vez mais, porque se não devemos resolver politicamente as questões ontológicas, também não devemos deduzir diretamente da ontologia as questões políticas. Entre ontologia e política há um enorme campo de mediações que nunca deve ser esquecido. Por isso, a nosso ver, se o caminho de substituir a ontologia pela política é equivocado em suas raízes, não menos desencaminhador é cancelar o campo de mediações que se interpõe entre estas duas esferas.
Isto, todavia, é um outro campo de questões.
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Uma versão condensada desse texto foi apresentada no Congresso Marx Actuel, Paris, 2007. Publicado em Vieira, A.C.S. e Amaral, M.V.B. (orgs) Trabalho e direitos sociais: bases para a discussão. Edufal, Maceió, 2008.
Autor:
Sergio Lessa
sergio_lessa[arroba]yahoo.com.br
Prof. Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Alagoas e membro do comitê editorial da Revista Crítica Marxista.
[1] Para não irmos longe, a triste subsunção, típica do stalinismo, dos fundamentos e princípios ás necessidades políticas momentâneas deixou marcas tão profundas que na esquerda atual (mesmo aquela que se pretende não-estalinista) é considerado uma virtude ser "realista", isto é, abandonar os princípios sempre que necessário para a política da semana e, inversamente, ser principista quando "politicamente" vantajoso. Essa concepção, em todas as suas variantes, não passa da "razão política" que Marx, nas "Glosas Críticas" (Marx, 1995), critica tão duramente.
[2] Nem, claro, de uma determinada relação entre o trabalho e a vida cotidiana, como pressupôs, por exemplo, Claus Offe (Offe, 1984).
[3] Há aqui uma ampla gama de teorias e hipóteses que vão, desde os textos pioneiros de Mallet e Belleville em 1963, até os textos de Braverman (1981), Bottomore (1992), Gallie (1978), Schaff (1990), Lojkine (1995) e, entre nós, Iamamoto (1998), Saviani (2000) e Antunes (1999). Apesar das importantes diferenças entre eles, se aproximam ao considerarem que as alterações técnicas e gerenciais desde a segunda metade do século XX teriam conduzido a uma nova conformação social na qual a distinção entre o proletariado e os demais assalariados teria desaparecido.
[4] Talvez seja importante assinalar que um período contra-revolucionário não se caracteriza pela ausência de conflitos e, até mesmo, de conflitos explosivos entre as classes sociais. Não se caracteriza, também, pela presença do fascismo, ainda que esse fosse um elemento central na Europa do pós-1929. O que caracteriza um período contra-revolucionário é a ausência de revoluções que coloquem em xeque a reprodução do capital em esfera planetária, de tal modo que a solução dos conflitos tende a se limitar ao horizonte próprio do capital. Muito mais que superadores do capital, nos períodos históricos de contra-revolução os conflitos terminam se restringindo a deslocamentos a um novo patamar das contradições fundamentais do sistema do capital (Mészáros, 2002; Paniago, 2007).
[5] Por exemplo, em períodos revolucionários o complexo da política tende a ser o momento predominante, etc.
[6] Como tradução de Entäusserung.
[7] Cf., sobre essa questão, Lessa, 2002.
[8] Uma análise da relação entre o Serviço Social e o trabalho pode ser encontrada em Lessa, 2007a.
[9] Lukács, em sua Ontologia, discute em várias passagens a relação fundante do trabalho para com os complexos sociais parciais. Conferir, por exemplo, Lukács, 1981:49-50, 90,91-2,132-3,261, 537-9, 545, entre muitas outras passagens.
[10] Não devemos perder de vista que o planejamento é necessariamente também a organização das atividades humanas. Ao um engenheiro desenhar uma nova caixa de câmbio faz parte do processo de concepção planejar as peças de tal modo que sejam mais facilmente produzidas em uma linha de montagem. O que significa, também, que sua fabricação exigirá ações, comportamentos, dos operários que poderão mais facilmente ser controladas pelo "despotismo fabril" (Marx, 1983:263-4).
[11] Há uma questão de fundo, tipicamente filosófica, que aqui apenas podemos mencionar: desde a Idade Média é uma conquista consolidada que a necessidade e identidade são categorias que não coincidem. Algo apenas pode estabelecer uma relação de necessidade com aquilo que não seja ele próprio. A alteridade (e nunca a identidade) é a mediação imprescindível á qualquer relação de necessidade. Portanto, ao contrário do que se faz na maior parte das vezes, do fato de uma práxis social ser necessária ao trabalho não significa, por si só, que seja ela trabalho.
[12] Cf. Lukács, 1981: 55-7, 63, 78, 91, 127, 155, 337-40, 448, 455, 464-6, 490-2, entre outras passagens.
[13] Sobre a distinção entre o trabalho abstrato produtivo e improdutivo, a seguir.
[14] Do ponto de vista puramente lógico, a expressão "trabalho produtivo" é um contra senso. Sendo intercâmbio orgânico com a natureza, todo trabalho é necessariamente produtivo; falar em trabalho que não produz é um absurdo. Não é neste sentido, contudo, que a expressão é empregada. Por trabalho produtivo entende-se trabalho abstrato produtivo de mais-valia e, nesta acepção, encontramos trabalho abstrato que não produz mais-valia. Ou, então, é empregado em atividades que não produzem nem realizam a mais-valia mas que são imprescindíveis ao sistema do capital, na expressão de Francisco Teixeira (1995), como os funcionários públicos e atividades afins.
[15] O exemplo da cantora de ópera está no muito referido Capítulo VI - Inédito, de Marx. Há vários problemas em relação a esse texto que impedem que seja utilizado como complementar ou mesmo esclarecedor do texto de O Capital. Sobre essa incompatibilidade entre os dois textos de Marx e alguns dos usos indevidos do Capítulo VI, conf. Lessa, 2007 em especial o Prefácio.
[16] Há um outro aspecto que apenas mencionaremos. A distinção entre o trabalho e as outras práxis que produzem mais-valia é a causa fundamental para que, a mercadoria produzida pelo operário, ao contrário da produzida pelo professor em uma "fábrica de ensinar" (Marx, 1985:106), sirva como meio de entesouramento.é possível o entesouramento de capital em toneladas de ferro, prédios, etc., contudo não podemos guardar capital sob a forma de horas de canto lírico, em horas de aula de um mestre escola, etc. Tratamos dessa questão em Lessa, 2007, em especial no Capítulo V.
[17] "Em vez do lema conservador de: 'Um salário justo por uma jornada de trabalho justa!', [a classe operária] deverá inscrever na sua bandeira esta divisa revolucionária: 'Abolição do sistema de trabalho assalariado!'" (Marx, 1977: 377-8).
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