Grandes feitos dos grandes homens: generais-estadistas e estadistas-generais na política brasileira - a propósito de A ditadura encurralada, de Elio Gaspari



Quando [Geisel] assumiu, havia uma ditadura sem ditador.

No fim de seu governo, havia um ditador sem ditadura.

Elio Gaspari

É forçoso reconhecer serem hoje os livros de Elio Gaspari a mais completa história geral disponível sobre a política brasileira do período 1964-1979.

Antes de ser descartada como um exemplar redivivo da história tradicional – onde o que conta são os grandes feitos dos grandes homens (em geral polí-estadistas e generais), celebrados por uma narrativa descritiva, centrada nos acontecimentos políticos e apoiada exclusivamente em documentos governamentais –, proponho que se leia a série de quatro livros publicados entre 2002 e 2004[1]focalizando não as informações inéditas que revelam (algumas importantes, outras não), mas os princípios historiográficos subjacentes à sua interpretação da política nacional.

Neste comentário trato apenas do último livro, publicado em junho de 2004, embora analise o seu projeto de exegese do regime ditatorial-militar no seu conjunto.

É preciso advertir o leitor que A ditadura encurralada não pode ser tomado como uma síntese dos três volumes anteriores. A exposição dos acontecimentos segue em cada livro uma ordem estritamente cronológica, passando da crônica do golpe militar de 1964 para o registro histórico do governo Castello Branco (1964-1967), daí para o governo Costa e Silva (1967-1969), dele para o governo Medici (1969-1974), para então se concentrar no governo Geisel (1974-1979), seu tema por excelência. O interesse específico desse último tomo reside em apresentar, ao que me parece, o argumento central do autor, ficando o quinto volume planejado para completar a obra apenas como uma extensão da história após o 12 de outubro de 1977 até os atentados terroristas de 1981.

Meu objetivo é analisar os "mecanismos" que, segundo Gaspari, permitiram ao general Geisel cumprir duas tarefas: levar adiante a política de "distensão" dos controles autoritários sobre as instituições políticas nacionais e administrar com relativo sucesso a política de "contenção" do ramo repressivo do aparelho do Estado. Trata-se, desse modo, de avaliar a natureza, o sentido e o alcance da explicação oferecida pelo autor para entender o plano de auto-reforma do regime ditatorial-militar.

I.

A série de Elio Gaspari sobre a ditadura militar brasileira, editada em quatro tomos (de um total projetado de cinco), divide-se em dois blocos: a primeira parte, "As ilusões armadas", reúne os livros A ditadura envergonhada (publicado em 2002) e A ditadura escancarada (2002). A segunda parte, "O Sacerdote e o Feiticeiro", reúne três livros: A ditadura derrotada (2003), A ditadura encurralada (2004) e um último volume, ainda sem título, que narra o período que vai de 12 de outubro de 1977 (data da demissão do ministro do Exército, general Sylvio Frota) a 15 de março de 1979 (data da posse do general Figueiredo na presidência da República). O que liga os volumes entre si – e dá um sentido específico à obra como um todo – é a estrutura da narrativa: ela está centrada basicamente na trajetória e nas ações e reações de duas figuras-chave do período: os generais Ernesto Geisel (o quarto presidente do ciclo de governos militares do pós-1964) e Golbery do Couto e Silva (seu ministro-chefe da Casa Civil). Conforme explicou o autor, "Em nenhum momento passou pela minha cabeça escrever uma história da ditadura. Falta ao trabalho a abrangência que o assunto exige, e há nele uma preponderância de dois personagens (Geisel e Golbery) que não corresponde ao peso histórico que tiveram nos 21 anos de regime militar"[2]. Mas por que esses personagens e não outros? Porque foram eles justamente que "fizeram a ditadura e acabaram com ela"[3] .

O que divide os volumes, e dá sentido aos títulos, para além da rima forçada, resulta de uma periodização detalhada da conjuntura, orientada por uma problemática específica – a militar. De um lado, ela enfatiza os acontecimentos críticos da cena política nacional no pós 1964 e seus efeitos sobre os conflitos no interior das forças armadas (principalmente no interior de seu ramo dominante: o exército). De outro, ela ilumina a atuação dos chefes militares, evidenciando o ideário político, as alianças estratégicas, as movimentações conspiratórias e a ascensão ou decadência desses atores e dos seus grupos em função de duas questões-chave para o regime: a repressão e a sucessão. O comportamento militar é visto assim ora como causa (em maior medida), ora como conseqüência (em menor medida) dos processos de evolução e mudança do regime político ditatorial.

A ditadura envergonhada (que cobre o período de 31 de março de 1964 a 13 de dezembro de 1968) registra no título a orientação mais ou menos provisória da intervenção militar e seu caráter principalmente reativo – contra "o comunismo", contra "o populismo" e contra "a corrupção". Sugere, àquela altura, não somente a timidez da "Revolução" diante de objetivos programáticos mais consistentes, mas também o pretenso desconforto da corrente castellista com as medidas de exceção do governo (censura, cassações, tortura), dada sua decantada moderação diante da "linha dura" do exército[4]. O problema central aqui me parece ser o da institucionalização de uma nova forma de Estado/regime político. Se até outubro de 1965 não estava clara a preponderância absoluta das principais lideranças políticas das forças armadas na coalizão conservadora que derrotou Goulart, depois de dezembro de 1968 consumam-se quatro processos paralelos: o fechamento da cena política, a centralização de prerrogativas e a concentração do poder no executivo federal militarizado e a promoção da "comunidade de informações".


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