Há, na conjuntura ideológica atual, duas teses opostas sobre o governo Lula mas que se merecem, seja pela sua superficialidade, seja pela tentação ao auto-engano que contêm.
Uma tese pertence aos que se poderia chamar de os herdeiros da desilusão. Para quem acreditou que no dia 1º. de janeiro de 2003 assistia-se à (re)fundação da República no Brasil, encontramo-nos hoje em meio à mais profunda decepção. A queixa diante das "promessas não cumpridas" (para ficar no chavão) do "resgate da dívida social" (outro chavão) evoca mais do que o otimismo dos ingênuos; evoca a fé nos governos do tipo "redenção nacional".
A assimilação dupla do PT, como o partido dos "trabalhadores", na figura de Lula, como o líder do "povo", e mais exatamente como o líder de mais uma grande mudança histórica (ainda que bem-comportada) – assimilação essa que foi o tom da campanha de 2002, dos anúncios do « governo de transição », do discurso de posse etc., como todos se lembram – cobrou seu preço muito cedo; precisamente quando o programa para zerar a fome não saiu do lugar.
A outra tese disponível na conjuntura ideológica atual é mais cínica e é sustentada pelos intelectuais da ordem, tanto à esquerda quanto à direita. Nessa versão sobre o governo Lula, não se trata de constatar o fracasso de mais um projeto reformador, mas de celebrar o sentido implacável, inflexível e insuperável da nova « ordem global ». Esses intelectuais se contentam em reafirmar o que, segundo eles mesmos, já se sabia (tanto é que nada poderá ser muito diferente do que o governo de Fernando Henrique fez...): não há qualquer alternativa de política econômica diante dos constrangimentos sistêmicos do capitalismo globalizado. São o time de herdeiros da ilusão (para manter a similitude com o time anterior). Mais exatamente : da ilusão diante da nova opacidade produzida pela circulação do dinheiro nos mercados mundiais.
A essas duas posições ideológicas (com certeza há outras; ou ainda: há versões mais ou menos sofisticadas das mesmas) pode-se contrapor, entre outras, três críticas sociológicas presentes na cena intelectual atual. A de Paulo Arantes (Zero à esquerda, 2004), a de Francisco de Oliveira (O ornitorrinco, 2003) e a de Armando Boito Jr.[1] Menciono brevemente o conteúdo das duas primeiras e gostaria de discutir, neste artigo, um aspecto da análise do Armando, análise essa que estou, em linhas gerais, ou pelo menos diante do seu diagnóstico essencial, de acordo : o governo Lula é um governo neoliberal. Ele representa uma continuidade, agora em outra etapa, dos governos Collor (1990-1992) e Fernando Henrique (1995-2002).
O diagnóstico de Paulo Arantes pode ser extraído, com um certo custo, da seguinte avaliação : « [...] saber se somos ou não viáveis não faz mais sentido. [...] Mesmo a idéia de desenvolvimento supõe um quadro de normalidade capitalista que tampouco resiste ao menor teste de realidade – que o digam as horrendas sociedades que são as máquinas chinesa e indiana de crescimento »[2].
Ou: a modernização possível da sociedade brasileira e da economia brasileira é essa mesma que temos diante de nós. Não há um "depois" ; não há um processo "interrompido" ; não há um ponto a partir do qual retomar o desenvolvimento; o Brasil é « cronicamente inviável », como definiu a fita de Sergio Bianchi[3]. Portanto, o mundo colonizado pelo capital (cuja pobreza, exclusão e miséria é aprofundada pela gestão tucano-petista) seria muito mais destruição que criação. O Brasil, repare, não é o passado do capitalismo. É o seu futuro.
Esse hiperdeterminismo estrutural, onde a economia é a chave que aperta o parafuso da História, é melhor explicado na análise de Francisco de Oliveira, já que há aí a identificação do agente dessa não transformação.
Para o Brasil, hoje já não mais se coloca o desafio histórico de passar do "subdesenvolvimento" para o "desenvolvimento", na terminologia dos anos 50. Não há, nesse sentido, a possibilidade de uma "evolução". A economia e a sociedade brasileiras são o efeito (perverso) da combinação de traços díspares, mas ainda assim funcionais, tal como a imagem esquisita do ornitorrinco evoca : um mamífero ovíparo com bico de pato e cauda semelhante à do castor..., isto é: uma anomalia. E o capitalismo brasileiro não pode se transformar em outras coisas por três razões básicas:
1) ausência de capital para readequar suas forças produtivas à nova fase do capitalismo;
2) ausência de força social das categorias que poderiam pressionar por melhores condições de vida para todos os trabalhadores (metalúrgicos, bancários, petroleiros), já que tiveram seu poder erodido graças à modificação das relações capitalistas e a precarização do trabalho; e
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