Linhagens do pensamento político brasileiro



Nos últimos anos, um heterogêneo conjunto de pesquisadores, equipados com o instrumental analítico acumulado por décadas de ciência social institucionalizada, vem não apenas revisitando o ensaísmo dos anos 30, mas vasculhando a história intelectual do país e produzindo uma quantidade respeitável de análises, pesquisas empíricas e historiográficas, interpretações teóricas que têm contribuído para renovar nosso conhecimento dos padrões e dilemas fundamentais da sociedade e da política brasileiras. Esboçado em meados do século XX, tendo recebido notável impulso nos anos 70, este campo de estudo chegou á maturidade nos 90, constituindo-se num dos mais produtivos das ciências sociais. Com efeito, além da emergência ou renovação das disciplinas que investigam os fenômenos do viver em transição - como a violência urbana, a pluralização religiosa, a explosão do associativismo, as redefinições das relações de gênero e as raciais, as transformações do mundo do trabalho, a judicialização da política, o papel da mídia na formação da vontade política da população, a financeirização da economia, os novos equilíbrios nas relações internacionais, etc., etc. - uma das características mais salientes das ciências sociais que estamos fazendo é o crescimento e a diversificação desta área de pesquisa que vem sendo chamada, com maior ou menor propriedade, de "pensamento social" no Brasil ou de "pensamento político brasileiro".

Visto retrospectivamente, os seus contornos nunca foram muito claros: como se trata de uma área de fronteira, acolhendo orientações intelectuais provindas das diversas ciências humanas, o estudo do "pensamento político-social" se estabeleceu aqui, como em todo o mundo, no cruzamento de disciplinas tão variadas como a antropologia política e a sociologia da arte, a história da literatura e a história da ciência, a história das mentalidades e a sociologia dos intelectuais, a filosofia e teoria política e social e a história das idéias e das visões-de-mundo. Esta superposição - por vezes conflituosa na medida mesma da indiferenciação - talvez fosse inevitável no caso de país de capitalismo retardatário como o nosso, uma vez que o tratamento da literatura, da arte, da cultura e das ciências aqui praticadas acaba tendo uma importante dimensão política por força da relação urgente que se estabelece entre formação da cultura e formação da nação.

Como em todo lugar, muita coisa menor foi aí escrita, desde história das idéias que não passava de exposição monográfica das concepções de um autor sem a menor inquietação sobre a natureza da empreitada teórica e dos processos histórico-sociais dos quais - pensamento em pauta e forma de abordá-lo - são momento e expressão, até a pretensão de erigir a sociologia da vida intelectual ou a sociologia das instituições acadêmicas em sucedâneo da sociologia do conhecimento, de resolver o problema da qualidade e da capacidade cognitiva e propositiva de uma teoria pela enésima remissão ao grau de institucionalidade da disciplina ou província acadêmica onde ela surge. Isso sem falar nas tradicionais "explicações" de uma obra pela origem social do autor e nas moderníssimas reduções do conteúdo e da forma da produção intelectual ás estratégias institucionais ou de ascensão profissional ou social das coteries.

Apesar disso, aquela diversidade favoreceu a acumulação de capital teórico e, de qualquer maneira, não impediu a cristalização de um campo intelectual diferenciado, que arrancava do reconhecimento de uma (rica) tradição de pensamento social e político no Brasil para fazer da reflexão sobre os seus "clássicos" - visconde de Uruguai, Tavares Bastos, Sílvio Romero, Joaquim Nabuco, Ruy Barbosa, Euclides da Cunha, Alberto Torres, Oliveira Vianna, Azevedo Amaral, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Nestor Duarte, Caio Prado Jr., Raymundo Faoro, Vítor Nunes Leal, Guerreiro Ramos, Florestan Fernandes, Celso Furtado, etc. - o instrumento para interpelar inusitadamente a sociedade e a história que os produz. Junto com a "expansão quantitativa da pós-graduação e a concomitante diversificação das formas institucionais que se operaram a partir de meados dos anos sessenta", a existência desta tradição, em boa medida "anterior aos surtos de crescimento econômico e urbanização deste século, e mesmo ao estabelecimento das primeiras universidades", terá contribuído para a constituição e consolidação de uma Ciência Política relativamente autônoma no Brasil (1). A reflexão sobre o pensamento político e social revelou-se, entretanto, demasiada rebelde para ser tratada como mera pré-história ideológica a ser abandonada tão logo se tenha acesso á institucionalização acadêmica da disciplina científica. Demonstrou-se, ao contrário, um pressuposto capaz de ser continuamente reposto pelo evolver da ciência institucionalizada - como um índice da existência de um corpo de problemas e soluções intelectuais, de um estoque teórico e metodológico aos quais os autores são obrigados a se referir no enfrentamento das novas questões postas pelo desenvolvimento social, como um afiado instrumento de regulação de nosso mercado interno das idéias em suas trocas com o mercado mundial.

Parte desta rebeldia e capacidade de interpelação tem a ver, é claro, com a centralidade do papel dos "clássicos" - incluindo os "locais" - nas ciências sociais. Pode ser que resida aí alguma anomalia. Com efeito, numa pesquisa feita artesanalmente com um pequeno, mas sênior grupo de cientistas sociais, sobre quais seriam as obras e autores brasileiros mais importantes do século XX, as respostas indicaram não estudos teóricos ou empíricos executados segundo bons manuais metodológicos, mas Casa Grande & Senzala (1933) e Sobrados e Mucambos (1936), de Gilberto Freyre; Formação Econômica do Brasil (1954), de Celso Furtado; Os Donos do Poder (1958), de Raymundo Faoro; Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda; Coronelismo, Enxada e Voto (1948), de Vitor Nunes Leal; Formação do Brasil Contemporâneo (1942) e Evolução Política do Brasil (1933), de Caio Prado Júnior; A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá (1952) e A Integração do Negro na Sociedade de Classes (1964), e outros, de Florestan Fernandes; Populações Meridionais do Brasil (1920) e Instituições Políticas Brasileiras (1949), de Oliveira Vianna; e Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha (2).


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