A tradução portuguesa de "As Minas de Salomão" foi revista por Eça de Queiroz1. Empreendi a leitura na expectativa de matéria enriquecedora de quanto já tenho escrito sobre naturalistas-exploradores em África, em particular Francisco Newton. E consciente de que a fronteira entre literatura científica e Literatura não é tanto de meios como de fins. A questa das Minas de Salomão decorre algures no interior do sul de África, e tem como ponto de partida o facto de o primeiro explorador a penetrar nelas ter sido um português, D. Pedro da Silveira, no século XVI. Esse conhecimento transitou para um parente, José da Silveira, fazendeiro de Lourenço Marques, sob a forma de um mapa riscado num pano de linho com o próprio sangue do seu antepassado.
Graças ao mapa, foi possível aos ingleses alcançar, três séculos mais tarde, as fabulosas minas de diamantes que permitiram decerto a Salomão construir o Templo. Delas sobrariam construções em pedra, como a Estrada de Salomão que a elas conduzia, e uma caverna cheia de tesouros, que os ingleses redescobem com o íntimo gáudio de terem assim passado á frente dos portugueses.
Iniciada a leitura, comecei a verificar que uma das bases arquitectónicas d'"As Minas de Salomão" é a aritmética, o que porventura lhe confere carácter científico :-). A tal ponto os números se apresentam em quantidade e qualidade, que dei por mim, sempre que surgiam á tona das letras, a surpreender-me: "Então e o 7, não aparece?"
Ora, não sendo a matemática uma das minhas sequer mínimas aptidões, não vou envolver-me em cálculos, ainda que passíveis de conduzir aos diamantes salomónicos. E também não pretendo mergulhar nas volubilidades mercuriais da exegese cabalística. Apenas mostrar, a quantos fecham os olhos a esta capacidade de um texto acumular várias linguagens, entre elas um código secreto, como se ele não existisse, quando é os alicerces da criação, que ele está lá, e não só está como constitui o principal vector de sentido da obra - o login para aceder á informação. Por conseguinte, vamos acompanhar alguns passos do livro e ficar pelo sentido literal deles, se tal é possível - sim, o sentido literal, essa miragem dos racionalistas.
O TRÊS, CORRELATOS & OUTROS ALGARISMOS
Por correlatos do 3 entendam-se o 6, o 9, o 12, o 18, o 30, o 300, etc., e também o triângulo, a pirâmide, o trio e a tripeça. Vejamos como se comportam eles ao longo da narrativa.
D. Pedro da Silveira alcançara as Minas de Salomão 300 anos antes dos protagonistas desta história, que o narrador diz serem 3, apesar de nunca serem só 3, pois vão acompanhados por outros caçadores do tesouro, como o zulu que virá a tornar-se rei do país dos kakouanas, região onde se localizam as Minas de Salomão. Não vejo na circunstância nenhuma exclusão racial, essa exclusão tem o mesmo valor que a do 14, 25 ou qualquer um entre infinitos números. Quando se trata de referir numericamente os elementos da equipa, o narrador diz "três": ele mesmo, Allan Quatermain, que na tradução portuguesa é Quatermar, o barão Henry Curtis e um marinheiro, o capitão John Good. São três porque o três é por si uma pessoa, a Trindade.
Quando os 3 tomam conhecimento da existência das minas, o informador declara que ouvira falar delas pela primeira vez 30 anos antes. Justificando a sua vontade de partir á descoberta apesar dos perigos da viagem, Quartelmar afirma: "...estou velho, já vivi três vezes mais do que costuma viver na Africa um caçador de elephantes" (p. 41). Logo no primeiro troço de viagem: "sahimos de Durban no fim de janeiro, e andadas quasi as trezentas leguas que vão d'aqui ao sitio em que se juntam os rios Lukanga e Kalukue..." (p. 51). Nessa jornada, dos vinte bois que puxavam o carrão "só doze restavam" (p. 51).
Quando as horas não são certas, apesar de terem relógio, diz-se "quase nove" (p. 57). Quando se trata de dezena imprecisa de factos ou objectos, escreve-se "dez ou doze", ou um "rebanho todo, vinte a trinta elephantes", dos quais matam 9, passando dois dias a serrar-lhes os dentes (p. 58).
O que os viajantes levam na bagagem traduz-se em quantidades: três revólveres, cinco mantas, etc., e algo mais extraordinário: um compasso e uma enxó. Para quê uma enxó, instrumento de carpinteiro que serve para desbastar madeira? O compasso, sim, serve ao risco de mapas. O que serve para cortar madeira é o machado, a enxó, o mais que podia, era ser útil ao afeiçoamento da madeira de mimosa, árvore que ficamos a saber faz parte da flora do reino dos zulus, introduzida talvez por D. Pedro da Silveira. A enxó deve ser um instrumento que está para a madeira como a trolha para a pedra, e só por isso faz parte da bagagem de exploradores que vão atravessar o deserto.
Para persuadir três negros a segui-los, os 3 aventureiros têm de lhes dar três facas de mato e uma manta (p. 74). Quando a lua nasce, é pelas 9 horas (p. 75). Após uma pausa de 30 minutos (p. 79), seguem caminho, sonhando acordados com o paraíso de quem tem sede: água. E pelas 6, "já o sol ardia" (p. 79). Novo descanso, porém ás 3 horas acordam (p.79). Já quase morto, Quartelmar cai no chão e cerra os olhos. Mas Umbopa desperta-o: "á distancia de oito ou nove milhas" via-se um outeiro que devia ser um dos Seios de Sabá (p. 83). Chegam então ao pé de um cômoro estranho, "especie de duna d'areia, escura, lisa, atarracada, da altura d'uns trinta metros..." (p.84). "De sorte que, descobrindo a umas trezentas jardas..." (p. 93) algo que não interessa á matemática, perguntemos: e então o número 7, que todos sabemos ser o número da Criação, não aparece?
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