Richard Khaitzine, autor com ascendentes russo-judaicos, tem-se dedicado sobretudo á exegese de textos literários, na sua qualidade de iniciado e na qualidade iniciática desses textos. é o caso de livros sobre o Capuchinho Vermelho e Peter Pan, ou de La Langue des Oiseaux, em que vários escritores são analisados, entre eles Georges Perec, invocado abaixo no extracto que fazemos do livro "Da Palavra velada á Palavra perdida - Franco-Maçonaria e Alquimia".
O autor estudou também Fulcanelli, alquimista com o qual revela afinidades. A principal é esta: Khaitzine e Fulcanelli são (para mim) os dois únicos alquimistas que escrevem de forma inteligível, mesmo usando a língua das aves ou quando discorrem sobre ela. O discurso alquímico é geralmente uma barragem intransponível de palavras, das quais nenhum eco de sentido nos chega ao ouvido, nenhum foco de referente nos ilumina o olhar, porque se exprime num código cerrado daquilo a que correntemente chamamos símbolos. Com a agravante de aquilo a que chamamos símbolos não apontar nunca para um referente só, sim para muitos, o que torna inviável a compreensão dos textos, mesmo quando estamos familiarizados com as palavras, caracteres, imagens ou sinais simbólicos. Uma coisa é o símbolo num dicionário deles, outra, muito diversa, o símbolo em acção num contexto literário ou laboratorial. Daí que vários laboratórios, e de mestres, não de aprendizes, tenham ido pelos ares, no curso de experiências levadas a termo infausto por má selecção dos referentes de símbolos análogos talvez a carvão, salitre e enxofre. O enxofre sobretudo é muito problemático. A combinação destas três palavras não é explosiva, porém a mistura dos elementos a que literalmente se referem é verdadeira pólvora. Se o mesmo acontecesse aos que apenas lidam com as palavras dos alquimistas, decerto seriam pouquíssimos os exegetas e por isso o estimado leitor não teria oportunidade de se deleitar ou não com o que estou a escrever.
RICHARD KHAITZINE
De la Parole voilée á la Parole Perdue
Franc-Maçonnerie et Alchimie
Le Mercure Dauphinois
Grenoble, 2001, 228 pp.
Fulcanelli e Khaitzine têm vocação pedagógica, por isso ensinam e por isso é sempre aliciante lê-los, aquém ou além das palavras veladas, que todos usamos, de outras maneiras, noutros códigos, e com outros fins. Algo que ensinam de fascinante para os que nas palavras têm a sua matéria-prima é o significado perdido delas, a sua origem etimológica, as suas relações de família em diversas línguas, o que traz para o terreno da cultura em geral um contributo valioso, associável a um evolucionismo do verbo.
Neste interim já chamei alquimista a Richard Khaitzine, sem na verdade saber se ele o é ou não, apenas porque no livro ele invoca os Irmãos, declarando que a obra é para iniciados e profanos (só um iniciado teria coragem de dizer que escreve para iniciados, por mim tenho a de dizer que também, mas com o desnecessário aviso de que preparo as minhas mezinhas e rezo as minhas orações sem avental), o que tem por único fim chamar a atenção para a circunstância, de muitos ignorada, e que por vezes levanta críticas aos conteúdos do colóquio "Discursos e Práticas Alquímicas", de Alquimia e Maçonaria serem indissociáveis. Esse aliás o subtítulo de Richard Khaitzine, esse o seu périplo e o que nos propõe - a questa da Palavra Perdida, chave de um rito maçónico maior, através dos meandros da alquimia.
Alquimistas (operativos), se existem (que me perdoem os que apresentam na net resultados das suas purificações de sais empreendidas na banheira, se ponho em dúvida a garantia de autenticidade alquímica do que no fundo dela se deposita), nunca, por razões de modéstia e segredo, participariam em debates públicos. Donde a única participação genuinamente alquímica que se pode ter num colóquio sobre tais assuntos é a dos maçons. Qualquer outra participação é profana em grau maior ou menor de lateralidade, o que é independente de graus académicos ou outros, em que ao máximo lente pode corresponder a mínima luz - e esta é uma matéria que o autor invariavelmente toca, movido por crítica, aliás fundamentada, ao seguidismo e acriticismo da escolástica universitária, que não respira fora do balão de vidro do paradigma dominante (materialista ou não). Por crítica idêntica principia e acaba a obra de que me ocupo, tal como mostra a tradução das linhas finais :
Infelizmente, o Espírito não foi a principal característica do passado século, e também não parece ser a do que principia. A verificação é amarga e severo o julgamento, pensareis. Nem por isso, fica abaixo do que merece a nossa Sociedade, uma sociedade que privilegia o parecer em vez do ser, o fazer saber em vez do saber-fazer, em suma, em vez do saber. Quando os asnos, diplomados ou não, estão no poleiro, e os oportunistas, peritos em pequenos ou grandes golpes, tomam conta do poder, a decadência não anda longe.
Tem a obra como ponto de partida a descodificação da lenda de Hiram, uma das narrativas maiores da literatura maçónica, que diz respeito á construção do Templo de Salomão, ou do Templo, tout court, como sequência a demanda da Palavra Perdida, que o autor diz ser o único segredo maçónico, e como final a revelação de que palavra velada e não perdida era essa. Tudo gira então em torno das palavras, por conseguinte da língua das aves. Para chegar aí, á Palavra velada e não perdida, o autor percorre um labirinto linguístico de que ressalta a sua enorme erudição e também capacidade analítica do registo poético da escrita. Erguem-se nele duas casas gémeas, a Maçonaria da Pedra e a Maçonaria da Madeira. Da Maçonaria Florestal ou da Madeira, que tem na árvore a matéria-prima da construção do Templo - os cedros do Líbano -, germinou a semente da Carbonária, em que foram iniciados naturalistas portugueses ainda no século XVIII, caso de José Bonifácio Andrada e Silva (1). E é neste ponto do naturalismo que tenho de mudar o rumo á conversa, deixando como elo de ligação entre partes de um mesmo todo uma pergunta retórica:
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