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Interpretando a tradição musical: da transcrição à execução (página 2)

Manuel Pedro Ferreira

Isto, quanto á postura vocal. Quanto a outras características de estilo, rendi-me ao facto de que qualquer interpretação de música medieval, por mais autêntica que se queira, é impura, porque condicionada pelos hábitos modernamente adquiridos. Ou seja, nenhuma voz é estilisticamente neutra; pode é ser mais ou menos moldável. Assim sendo, não hesitei em procurar um cantor associado ao fado; lembrei-me de um rapaz que ouvira cantar, num restaurante do Bairro Alto, com essa suavidade e clareza que os medievais tanto prezavam. Infelizmente, quando me dirigi ao tal restaurante para o identificar, responderam-me, de má cara, que esse moço estava proibido de entrar novamente naquele espaço, por ter roubado a carteira a um dos clientes; era um carteirista profissional, coisa que até admitiam, desde que não exercesse ali a profissão; porém, não tendo ele essa ética, fui vivamente desaconselhado de o contratar. E assim acabou uma tentativa de experimentação no domínio do cruzamento estilístico.

Ainda falei a Carlos do Carmo, a José Mário Branco e até a Luís Represas, mas nenhum deles se mostrou suficientemente confiante, ou, no último caso, suficientemente bem pago, para arriscar um mergulho no canto medieval. A solução foi, em primeiro lugar, contactar uma cantora com experiência em música antiga, Helena Afonso (que garantiria uma linha vocal claramente delineada), e um guitarrista ligado ao jazz, José Peixoto (que permitiria introduzir um acompanhamento idiomático, sem recurso á escrita musical); e, em segundo lugar, admitir como horizonte da interpretação vocal a fusão dos ensinamentos retirados da análise do repertório com uma sensibilidade moldada pelo lied.

A primeira vertente sugeriu, por exemplo, flexibilidade rítmica nos finais de verso e liberdade de expansão improvisatória nos melismas de Ondas do mar de Vigo; a segunda levou a explorar diferentes colorações tímbricas correspondentes á emoção que prevalece em cada cantiga. No que respeita ao acompanhamento, procurou-se uma heterofonia semi-improvisada, cuja felicidade foi traída por um alaúde emprestado á última hora, de péssima qualidade, que se revelou teimosamente avesso a manter-se afinado, levando-nos a perder preciosas horas de estúdio[1].

Saiu um disco impuro, e, apesar dos seus defeitos, orgulhosamente impuro: não pertencemos ao grupo daqueles que julgam poder fazer tábua rasa de tudo o que ouvimos, expulsando os velhos convivas pela porta da frente como se pela porta das traseiras não entrassem outros, ás vezes tão indesejáveis como os primeiros. As reacções á gravação foram significativas: uns acentuaram negativamente, com alguma razão, a distância relativamente a certos ideais sonoros do movimento da música antiga; outros saudaram a profundidade interpretativa, e, implicitamente, a conformidade a cânones musicais familiares[2].

Dez anos mais tarde, em 1995, fundei as Vozes Alfonsinas. Vozes marcadas, em maior ou menor grau, pelo repertório clássico, coral ou operático, mas até certo ponto, moldáveis. Menos moldáveis do que desejaria, certamente, mas tal circunstância tem a ver com a quase impossibilidade de um cantor ter, em Portugal, uma prática profissional regular centrada na música antiga, o que retira motivação para uma especialização na mesma área.

Em dez anos de actividade, por vezes intermitente, a direcção deste agrupamento permitiu-me dispôr de um campo de experimentação intimamente entretecido com a investigação musicológica. Embora, no que respeita aos cantores, tenha tido que lutar com afinco contra velhos hábitos, incluindo o de alguma indisciplina artística, e também contra a indiferença relativamente á necessidade de apurar a justeza intervalar e a fusão harmónica, tive a sorte de contar com alguns excelentes profissionais, que se esforçaram por corresponder aos novos desafios postos por esta música, pondo nisso todo o seu talento. No meio das dificuldades, aprendi a lidar melhor com a especificidade da voz, procurando, nem sempre com sucesso, encontrar formas de conduzir o cantor á transformação individual do seu som, de modo a servir adequadamente o repertório. Beneficiei ainda das sugestões, da experiência e da sensibilidade de instrumentistas como Nuno Torka Miranda e César Viana, que adicionaram ao percurso das Vozes Alfonsinas dimensões á partida não entrevistas.

Pondo de parte, por inúmeras ou evidentes na discografia do grupo[3], as contribuições individuais ou colegiais para a definição da sua sonoridade, passo de seguida a relatar três casos em que a procura de soluções de execução me levou a, ou me firmou em, hipóteses de interpretação histórica que julgo interessantes.

Uma vez, ao deparar-me, em Paris, com um manuscrito dos inícios do século XI onde o monge Adémar de Chabannes apontou uma composição da sua autoria, um Versus para São Marçal, julguei ver nas duas linhas melódicas confusamente sobrepostas a este texto, como se fossem duas camadas independentes, uma peça de carácter polifónico. Experimentei as diversas possibilidades de relacionamento entre as duas linhas e, com as Vozes Alfonsinas, apresentei em público uma primeira hipótese de solução, recorrendo a dois tenores. Mas não fiquei inteiramente convencido, fosse porque essa solução implicava opções prévias demasiado interventivas, fosse porque o manuscrito me sugeria uma alternativa: uma única linha vocal com acompanhamento instrumental. Para poder imaginr o resultado, procurei informar-me sobre as implicações acústicas da execução da segunda linha melódica num saltério ou numa harpa medievais; contudo, não tivesse uma harpa sido trazida para o grupo, possibilitando uma breve experiência, essa imaginação teria permanecido abstracta, e não se teria transformado em convencimento estético, que por sua vez me deu o alento para defender essa hipótese numa publicação sujeita á avaliação crítica da comunidade musicológica internacional[4].

Outro exemplo: nas Cantigas de Santa Maria do rei castelhano Alfonso X, o Sábio (colecção de canções acabada de compilar em 1284), há frequentemente poemas em que uma frase se distribui entre o final de uma estrofe e o início da seguinte, com o refrão de permeio. Para que o sentido gramatical da frase seja claro á audição, foi proposto por certos autores que o refrão devia ser suprimido na execução musical, proposta a que outros ripostaram com casos comparáveis em que o refrão é sempre cantado, apesar de supôr uma suspensão provisória do sentido narrativo. Com as Vozes Alfonsinas, experimentei uma solução alternativa que elimina o problema. Inspirando-me nas práticas de canto antifonal da Idade Média e particularmente na tradição do romanceiro transmontano, em que o canto alternado entre homem e mulher supõe a retoma do último verso da estrofe depois de cantado um refrão de verso único, criei uma versão da cantiga 228 que é a imagem exacta do texto tal como aparece no manuscrito original, com refrães intermédios abreviados, sem que se deixe de ouvir a concatenação gramatical entre o fim de uma estrofe e o início da seguinte. Ou seja, a resposta a um problema de interpretação textual foi encontrada numa convenção exterior ao texto, o estilo antifonal de execução, que permite conciliar a presença do refrão com a desejável fluidez narrativa.

(Ilustração sonora: CD das Vozes Alfonsinas, O Tempo dos Trovadores, Strauss/PortugalSom SP 4287, faixa 10)

Um outro caso foi o da cantiga 223. Quando, em 1994, apresentei uma comunicação sobre a possível influência árabe no ritmo das Cantigas de Santa Maria, aventei a possibilidade de que algumas peças se pudessem ler em compasso quinário, sem que isso se pudesse provar sem margem para dúvidas, devido á ambiguidade da notação musical. Foi só depois, ao tentar cantar e encontrar na cantiga 223 uma coerência rítmica interna que insistia em escaparme, é que me dei conta de que a notação, aparentemente clara, fazia pleno sentido não dentro de um sistema rítmico francês, ternário, a que aparentemente pertencia (surgindo contudo musicalmente coxo), mas dentro de um sistema rítmico árabe, em compasso quinário, usando um padrão musical bem documentado na Península Ibérica até ao século XVI: 2+1+2 unidades de tempo. Para que essa hipótese funcionasse, havia somente que considerar a primeira nota como uma anacrusa (ou seja, como arranque para o início de um compasso que coincidiria com a segunda nota) e assumir um valor de longa invariavelmente equivalente a dois tempos de duração.

(Ilustração sonora: CD das Vozes Alfonsinas, O Tempo dos Trovadores, Strauss/PortugalSom SP 4287, faixa 5)

E chegamos finalmente ao nível da transcrição. A transcrição musical não é uma tarefa mecânica, mas uma tarefa crítica e imaginativa, em que o musicólogo se coloca alternadamente na pele do compositor e do executante, quer para poder bem compreender a peça, quer para a poder representar graficamente de forma adequada. Na música medieval isto é especialmente claro, porque frequentemente a notação musical não nos dá a informação completa, ou fá-lo de maneira ambígua. Assim, quem traduz a peça para uma simbologia musical moderna tem de recriar mentalmente a composição, confrontando-a com os critérios compositivos da época e experimentando diversas soluções interpretativas, até chegar a uma solução provável, mais convincente do que as outras, ou, pelo menos, plausível.

Em ocasiões anteriores pude já explicar os passos que me foi necessário dar para chegar a transcrições rítmicas hipotéticas de alguma polifonia medieval que, na sua notação, nos dá nenhuma, ou pouquíssima informação sobre a duração de cada som. Um caso é o hino a São Bernardo, num manuscrito de Arouca, que constitui o exemplo mais antigo de polifonia portuguesa; outro é o conductus para Santiago atribuído a mestre Alberto de Paris no Códice Calixtino, a peça europeia a três vozes mais antiga que se pode achar fora dos tratados de teoria musical[5]. Mas também na monodia, profana ou religiosa, há muitas vezes que encontrar soluções rítmicas que supõem uma experimentação, decerto não isolada do conhecimento do repertório, mas muitas vezes sem apoio directo em documentos históricos. A situação é semelhante ao de um leitor de hebreu ou de árabe, escrito sem sinais diacríticos; são-lhe somente dadas as consoantes, e tem assim obrigatoriamente que reconstituir as vogais, de modo a que o texto faça sentido. Assim, decidir que notas, no cantochão dos livros de coro bracarenses, serão mais curtas ou mais longas na execução, envolve não apenas o reconhecimento das distinções notacionais aí existentes, que contemplam sons de duração dupla, mas também a avaliação da necessidade prática, do precedente histórico ou da vantagem estética de apressar certos melismas ou de introduzir algumas pausas de prolongamento. Noutro capítulo, o da polifonia escrita de forma mensural, são certos desenhos melódicos e sobretudo as zonas pré-cadenciais, com as suas implicações de progressão intervalar, que obrigam o editor moderno a repôr certas inflexões não escritas, recorrendo á chamada musica ficta, ou seja, a notas ficcionais dentro do sistema diatónico, mas exigidas pelo contraponto, e que substituíam, na prática do canto, algumas das notas efectivamente apontadas. Havendo mais de uma possibilidade de solucionar o problema, esta tarefa revela-se por vezes espinhosa, tal como espinhosa pode ser a identificação e resolução de erros no manuscrito original; argumentei noutro lugar que em certos casos é incontornável o recurso ao juízo estético individual, o que, por sua vez, implica alguma experimentação6.

É aqui que volta a entrar em cena o piano. Já se sabe que não é um instrumento medieval, que a sua afinação em temperamento igual não é adequada aos intervalos usados na música antiga, e que o seu uso é, nesse contexto, anacrónico; mas permite criar uma primeira imagem, aproximativa, do objecto musical, sobretudo se este tiver carácter polifónico. O piano é, em suma, o laboratório caseiro onde se testam as primeiras misturas. Antes de se mobilizarem cantores e instrumentistas, antes de se lhes propôr um caminho de descoberta, convém antecipar, preparar o terreno, fazer um rascunho sonoro da obra, verificar o funcionamento geral da transcrição. Como o antigo compositor ao clavicórdio na sua cela, quiçá soando a harpa ou um órgão portativo, o musicólogo ao piano desdobra-se em músico, em crítico e em público. Nele a tradição recobra vida, e ao fim desse trabalho de parto, indefesa e nua, emerge a folha que vai pautar o concerto.

Explorador é tanto o geógrafo como o que percorre o seu mapa.

Muito obrigado.

Texto de uma conferência dirigida ao grande público, apresentada em Faro a 26/11/2005, no âmbito dos Encontros AlCultur: Seminário "Tradição e experimentação". As referências bibliográficas e discográficas citadas em nota foram actualizadas em Outubro de 2008.

 

 

 

Autor:

Manuel Pedro Ferreira

mpferreira[arroba]fcsh.unl.pt

Professor Associado na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (Departamento de Ciências Musicais).


[1] Disco publicado em anexo ao meu livro O Som de Martin Codax " Sobre a dimensão musical da lírica galego-portuguesa (séculos XII-XIV), Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1986.

[2]  "Este é un bo exemplo de cómo tódolos presupostos académicos do mundo (...) non garanten unha boa versión, excesivamente impostada a voz da soprano, un pouco perdida durante toda a obra, e absolutamente plano e sen matices o laúde de Peixoto." (Carlos Villanueva, "As cantigas do mar de Martín Codax", in Cantigas do mar, [A Coruña]: Fundación Pedro Barrié de la Maza, 1998, pp. 13-53 [45]). "A interpretación (...) se achega moito a como eu entendera sempre estas cantigas dentro de min (...) está feita con non pouca liberdade de interpretación e con tanta musicalidade, que fai que un pense que, realmente, o que importa non é a materialidade do que se escribe no pentagrama musical, senón o espírito que encerran esas melodías" (José López-Calo, "O feito diferencial galego na música. Idade Media e Renacemento", in Carlos Villanueva (coord.), O feito diferencial galego na música, vol. II, Santiago de Compostela: Museo do Pobo Galego, 1998, pp. 9-39 [22]).

[3] Seis CDs, cinco dos quais já publicados ou em vias de publicação: As melodías de Martín Codax, publicado pelas Edicións Xerais de Galicia em anexo ao livro Johán de Cangas. Martín Codax. Meendinho: Lírica Medieval, 1200-1350 (Vigo, 1998; gravação de 1995). O Tempo dos Trovadores (Strauss/PortugalSom, 2000; gravação de 1999). La mar de la musica (EMI-Classics, 2001; gravação de 1998). Cânticos bracarenses de Natal e Matinas de S. Geraldo (gravação de 2000) e Antologia sonora: dos Visigodos a D. Sebastião (gravação de 2008), ambos integrados na minha Antologia de Música em Portugal na Idade Média e no Renascimento, Lisboa, Arte das Musas/Cesem, 2008, no prelo. Por publicar: Mon seul plaisir. Anglo-Italian & French Songs from MS Porto 714: (gravação de 2002). Pode encontrar-se mais informação sobre a actividade do grupo em www.vozesalfonsinas.blogspot.com.

[4]  "Is it polyphony?" [The Versus de Sancto Marciale by Adémar of Chabannes] in Revista Portuguesa de Musicologia nº 12 (2002), pp. 9-34.

[5] "Early Cistercian Polyphony: A Newly-Discovered Source", in Lusitania Sacra, 2ª série, Tomo XIIIXIV (2001-2002), pp. 267-313; "Uma questão de ritmo", in Francisco Monteiro e Ângelo Martingo (coordenação), Interpretação Musical - Teoria e Prática, Lisboa: Colibri, 2007, pp. 219-46. 6 "Juízo estético e filologia musical: em torno de um cancioneiro polifónico do século XV", in Philosophica, 19/20 (2002), pp. 251-78.



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