Nesta comunicação apresentam-se alguns dos dados da pesquisa realizada no âmbito do doutoramento em sociologia, subordinada ao tema "o quotidiano dos sujeitos em risco genético de cancro hereditário". O objectivo foi saber como é que este sujeitos experienciam e gerem o diagnóstico de risco genético de cancro hereditário e quais as estratégias que encetam, para no seu quotidiano, viverem com o risco de que são portadores.
Verificou-se que, face ao risco genético de que são portadores e que escapa á sua lógica de controlo, a pressão é colocada sobre a ciência e a medicina, de forma a encontrarem novos formas de se relacionarem com o impacto de decisões passadas ou presentes. Quando a mestria individual se revela inoperante, surge a necessidade de assumir a responsabilidade por aquilo que lhes sobrevive e criar futuros contemporâneos, que, mais não são que presentes para as gerações futuras. O que ressalta é a força desta projecção responsável, de que a ciência e a medicina são os protagonistas, mas onde é o tempo que marca os ritmos de actuação. Não depende deles, mas da ciência (e da sua contínua evolução), que o presente cumpra a sua promessa de futuro. Para os indivíduos em risco genético de cancro hereditário, o futuro torna-se o refúgio da esperança.
A previsão do futuro tem sido um dos dogmas da genética. Este dogma remete-nos para Tirésias, o cego de Tebas, que Hera castigou com a cegueira e a quem Zeus, para o compensar, concedeu o dom da presciência. Questionava o cego, para que servia ter a clarividência - adivinhar o futuro - se nada se ganhava com ela ou, dito de outro modo, para que serve saber quando se vai adoecer ou morrer, se não se tem nenhum poder para mudar esse desfecho. O Genoma, ou o Grande Livro da Vida como muitos lhe chamam, pode oferecer a cada um o tipo mais gélido de auto-conhecimento - o conhecimento do nosso destino. Não o tipo de conhecimento que nos permita fazer algo com ele, mas apenas a maldição de Tirésias. E tal como este cego, a condição de cada sujeito será de total impotência com acesso, a cada vez mais conhecimento sobre o seu futuro, mas permanecendo o seu saber completamente limitado sobre a forma de o controlar.
O fantasma das probabilidades, dos futuros calculáveis e da previsão, já não paira em castelos distantes, mas atormenta quotidianos cada vez mais próximos. O refinamento da previsão é contínuo e todas as doenças serão detectáveis como probabilidades ou predisposição a partir de uma amostra do ADN de cada um. As cartas probabilísticas, semelhantes ás cartas astrais, irão impor-se da mesma forma que serão instituídos os estilos de vida destinados a reduzir os riscos.
Quando uma doença é definida como genética, movemo-nos de uma doença individual para uma doença familiar, como acontece com diversos cancros, cujas componentes genéticas já foram identificadas. A partir daqui, o que está em causa são os processos e as consequências da interacção do conhecimento social e biológico na construção de uma percepção do risco hereditário e do seu potencial impacto no quotidiano dos sujeitos.
A ideia de uma doença inteiramente ligada á linhagem viu-se concretizada na prática quotidiana, quando os testes genéticos revelaram as mutações cromossómicas responsáveis por doenças como o cancro, a diabetes ou a hemofilia. O sujeito passou a ser confrontado com um diagnóstico, que lhe anuncia que ele é um portador da doença - um futuro doente ou um portador de uma doença potencial para os seus descendentes. Os "bons" e os "maus" genes impõem-se e passam a dominar o imaginário quando se referem a igualdades desejadas ou a igualdades indesejadas.
Perante o anúncio de um diagnóstico genético, aquilo que se lhe transmite é uma concepção estritamente endógena da doença. A doença está em si próprio e, independentemente da acção dos factores ambientais, irá desenvolver-se.
Se se pode dizer que a doença, no geral, interfere sempre no quotidiano do sujeito, parece inegável que a doença genética hereditária, pelas suas especificidades, se consubstancia num momento decisivo, não apenas do quotidiano mas, essencialmente, no projecto de vida dos sujeitos.
Estas questões impõem, inevitavelmente, um questionamento constante da genética e da biologia, não apenas pelo lugar estratégico que têm ocupado na construção de novas categorias médicas, a par da medicina, como pelas implicações práticas destes novos saberes, graças aos quais as práticas eugénicas abandonaram as brumas do passado, para pairarem sobre o presente e assombrarem os horizontes do futuro.
A consolidação dos novos domínios de conhecimento, como a genética e a biologia molecular, permitiu operar uma redefinição do cancro como doença genética, em que os factores ambientais deixaram de intervir, ou seja, há cancros que não surgem devido á alteração genética provocada por uma agressão ambiental. A investigação centrada nos oncogenes permitiu identificar os agentes genéticos responsáveis, nomeadamente, pelo cancro do cólon e da mama, que foram reconceptualizados como cancros genéticos hereditários (Nunes, 1998). Aqui, a alteração ou a mutação genética surge no gene de cada um de nós, sem que seja necessária a acção de um factor externo. O cancro passa a estar "dentro de nós" ou como referem Levine e Suzuki (1993:91) "temos dentro de nós as sementes da nossa destruição", ao que se poderia acrescentar, e das nossas futuras gerações[1].
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