Neste artigo analisamos as múltiplas relações entre os valores e símbolos religiosos afro-brasileiros e a música popular nacional. Uma vez que a música é uma linguagem privilegiada na expressão dos valores destas religiões e, também, um elemento marcante na concepção da identidade brasileira, os termos comuns ou intercambiáveis destes campos semânticos constituem um locus privilegiado de trocas simbólicas e constituição do que se poderia chamar de ethos nacional. Este ethos incorpora e privilegia a musicalidade e tudo o que ela permite de extravasamento emocional e utilização do corpo de modo comunicativo e sensual. Não pretendemos discutir neste trabalho o papel da música na religião, mas seu diálogo com a cultura nacional.1 Além disso, embora estejamos cientes do papel fundamental que os ritmos e melodias de inspiração africana desempenharam para o êxito das canções analisadas, priorizaremos, para os fins deste texto, as mensagens contidas nas letras das músicas, deixando de lado seu aspecto melódico.
“No terreiro de `preto-véio´, Iaiá, vamos saravá!”.
Religião e os primórdios da música popular brasileira Nas religiões afro-brasileiras a música desempenha um papel fundamental.
É um dos principais veículos por meio dos quais os adeptos organizam suas diversas experiências religiosas e invocam os orixás, caboclos e outras entidades espirituais que os incorporam em festas, giras, sessões e outras cerimônias coletivas. Nesses rituais a música é produzida por diversos instrumentos (atabaques, cabaças, chocalhos, agogôs, ganzás etc.), que variam segundo os ritos, acompanhados porcantos que são considerados formas de orações que unem o homem ao sagrado.
A musicalidade dos terreiros, marcada pela herança africana, foi um dos pontos que mais atraiu a atenção para a diferenciação dessas crenças, servindo como elemento aglutinador e difusor de estilos musicais “profanos” que participaram da formação da cultura musical brasileira sob diferentes formas ao longo dos vários contextos históricos.
Exemplos bem conhecidos destes processos são os ritmos maxixe e lundu.
Em fins do século XIX, como atestam os jornais e outros documentos da época, havia grave rejeição, por parte de segmentos dominantes da sociedade, às práticas religiosas afro-brasileiras. Atribuía-se a eles o caráter de “selvageria”, cujos exemplos, constantemente citados, eram a “lascívia das suas danças” e o “estrondoso barulho” de suas batucadas.
Rita Amaral, Valgner Gonçalves da Silva
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