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A capacidade lingüística própria de nossa espécie, que é a ferramenta mais
importante para a transmissão da cultura, aporta-nos certas vantagens claras na
estratégia de sobrevivência social que os sistemas de comunicação mais simples
não poderiam sustentar. Sem embargo, seguimos sem conhecer por que a vantagem
adaptativa é tão grande como para chegar ao ponto de permitir-nos conhecer
"quem fez o que a quem". Podemos predizer em termos de conduta bem definidas as
conseqüências das ações de nossos congêneres mas, por outro lado, não somos
capazes de acudir a uma definição mais precisa de justiça ou de delimitar em
que aspecto, por exemplo, a teoria do direito natural é preferível a de um
positivismo mais sossegado.
Para intentar entender e superar a obscuridade tradicional das discussões
teóricas na análise da moral e do direito quiçá a perspectiva mais fecunda seja
a funcional, quer dizer, aquela que não parte de uma suposta (e por vezes
reducionista e/ou eclética) perspectiva axiológica, sociológica ou estrutural
dos mesmos, senão que intenta dilucidar para que servem a moral e o direito no
âmbito da (evolucionada) existência humana5 .O ponto de partida
funcional não obriga a recorrer ao expediente retórico (relativista ou
tradicional) de condicionar o conhecimento moral ou jurídico aos limites
obscuros da revelação de umas teorias que transcendem a compreensão e a própria
experiência humana.
Não é necessário propor a existência de verdades morais ou jurídicas
independentes que nossa inteligência não é capaz de processar e entender, nem
há que dar por inabordáveis as razões que justificam a existência da moral e do
direito como um dos aspectos essenciais da vida em grupo. Com efeito, as
discussões funcionais sobre a existência da moral e do direito contribuem para
dissolver (ou pelo menos para amenizar) a bruma piedosa de limites
indeterminados gerada pelas teorias habituais , uma vez que há uma grande
diferença entre estudar o que um mecanismo pode fazer e estudar o que está
desenhado para fazer. Saber para que foi desenhado um determinado artefato
cultural - qual é sua função - tem um enorme valor heurístico porque sugere os
traços que deve conter. Permite-nos também inferir os tipos de problemas que um
artefato deve poder resolver á perfeição assim como possibilita desenvolver
tarefas que especifique que características funcionais devem ter um artefato
para poder resolver determinados problemas. Muitos filósofos e juristas estudam
a moral e o direito sem perguntar-se com que propósitos foram desenhados.
Preferem mais bem descobrir suas estruturas estudando as coisas que são capazes
de fazer. Sem embargo, na investigação acerca da singularidade da moral e do
direito, o pensamento funcional é simplesmente iniludível; não podemos enumerar
suas possibilidades sem pressupor um conceito de função.
Afinal, a moral e o direito estão entre os fenômenos culturais mais poderosos
já criados pela humanidade, e precisamos entendê-los melhor se quisermos tomar
decisões políticas bem informadas e justas. Embora haja riscos e desconfortos
envolvidos, nesse tema, devemos tomar fôlego e deixar de lado nossa relutância tradicional
de investigar cientificamente os fenômenos éticos e jurídicos, de modo a
compreender como e por que a
moral e o direito inspiram tal devoção, e descobrir como deveríamos
aperfeiçoa-los a partir do estabelecimento de elos com a natureza humana.
E uma vez redimensionado e situado este tipo de análise sobre a moral e o
direito a uma dimensão propriamente evolucionista e funcional, é possível
conjeturar - no que aqui nos interessa de forma prioritária - que se ambos
foram criados pelo homem, para os propósitos do homem, então todos os
propósitos que porventura possamos encontrar e extrair deles devem ser devidos,
em última instância, aos propósitos do homem. Mas, "quais são estes
propósitos?", é algo assim como um mistério.
Sem embargo, e porque os humanos são sempre um problema tão sensível, parece
razoável partir da hipótese (empiricamente rica) de que a resposta se encontre
nas teorias que relacionam o tamanho do cérebro com a inteligência social, isto
é, de que a moral e o direito aparecem e se justificam pela necessidade de
competir com êxito em uma vida social extremamente complexa. Ao enfrentarem-se
nossos ancestrais hominídeos com problemas adaptativos associados aos múltiplos
e incessantes relacionamentos derivados de uma vida substancialmente grupal,
apareceram as pressões seletivas em favor de órgãos de processamento cognitivo
capazes de manejar o universo de normas e valores.
Trata-se, insistimos, de uma hipótese. Mas é ao menos a mesma que justifica o
tipo de comportamento social e as capacidades cognitivas de outros primatas
(Humphrey)6 . Apareceria assim a otimização funcional e adaptativa do mecanismo de
interação de certas formas elementares de sociabilidade e valores que parecem
estar arraigados na estrutura de nossa arquitetura mental.
Nesse sentido, uma explicação darwinista sobre a evolução da ética e do direito
supõe que as normas de conduta representaram uma vantagem seletiva ou
adaptativa para uma espécie essencialmente social como a nossa que, de outro
modo, não haveria podido prosperar. Tais normas plasmaram a necessidade da
possessão de um mecanismo operativo que permitisse habilitar publicamente nossa
capacidade inata de inferir os estados mentais e de predizer (e controlar) o
comportamento dos indivíduos.
De tal maneira se ampliaria o conhecimento social entre os membros do grupo e
se desenvolveria nossa também inata capacidade para cooperar e resolver
conflitos sociais sem necessidade de recorrer á formas de hierarquização e
organização social típicas de numerosas espécies animais como é a agressividade7 . Um tal mecanismo normativo supõe a possibilidade de oferecer soluções a
problemas adaptativos práticos, delimitando (mais do que compondo conflitos)
por uma via não conflitiva os campos em que os interesses individuais, sempre a
partir das reações do outro, possam ser válida e socialmente exercidos
(Ricouer).
E entendido assim, parece razoável admitir que a evolução humana desenvolveu no
homem a capacidade de estruturar valores morais e determinadas formas
elementares de sociabilidade por meio das quais constrói estilos aprovados de
interação e de estrutura social. Neste particular, o avanço das ciências
cognitivas tem ajudado a compreender melhor o funcionamento do cérebro, os
correlatos cerebrais que intervêm no processo cognitivo de formular juizos
morais acerca do justo ou injusto e a forma em que se ativam as neuronas, como
as denominadas neuronas espelhos, que são as responsáveis do mecanismo de
mimetização do que sucede no entorno por meio do processo de aprendizado8 . Tudo isso nos adverte da plasticidade e da modificabilidade do cérebro, assim
como da não-determinação do comportamento e as normas éticas, da íntima
dependência que existe entre estas, o cérebro e o entorno social.
Esta plasticidade do cérebro permite que cada experiência seja adaptada pelo
sistema nervoso e que este mude ou se adapte segundo as circunstâncias, quer
dizer, que o cérebro humano tem uma grande capacidade, através das ativações
neuronais, para o aprendizado e a evolução. Mas este aprendizado dependerá da
natureza e o contexto social, que são dois fatores essenciais na elaboração da
conduta. Na sociedade atual, onde o respeito a muitos dos valores dos direitos
humanos se encontram em crise, este contexto joga um papel fundamental. A educação
é uma maneira de ensinar-nos a pensar. A genética é uma parte do cérebro, mas
não podemos olvidar que há outra parte muito importante que é o entorno9 .
Daí porque Dennet faz referência a que os indivíduos aprendem muito por
imitação de modelos e ressalta que «não são os genes os que dão o aprendizado,
senão esta imitação de modelos com a interação do entorno». O ser humano
aprende de diversas maneiras e as mais fundamentais são, como lembra Dennet, a
experiência e a imitação de modelos. A experiência é um background que se
absorve consciente ou inconscientemente, mas é importante destacar que a
distinção entre umas e outras não radica no cérebro senão no tipo de atividades
que realiza o indivíduo e as percepções que este recebe de ditas atividades. O
aprendizado dependerá então da própria experiência pessoal do indivíduo e de
sua relação com o entorno familiar e social.
Assim , o ensino, os processos de educação explícitos e implícitos, formais e
informais, resultam indispensáveis para assimilar o cooperativismo no indivíduo
porque permite a interação entre o entorno e o cérebro. O cérebro serve ás
crianças para aprender, mas não é o cérebro a chave para este processo
altruísta, senão o que se lhe ensina, os valores que se lhe trasmitem, os modelos
que imita dentro do contexto social onde se formará.
O importante neste processo é que o ser humano seja consciente desta forma de
aprendizado pois isso lhe permitirá apreciar as questões que lhe são diferentes
como algo que não aprendeu, ainda que isto não significará que deva rechaçá-lo.
Quer dizer, que deve partir de uma certeza com perspectiva já que uma certeza
sem perspectiva, sem um posicionamento consciente que lhe permita entender e
aprender que suas certezas não são as únicas nem as superiores, pode levar o
indivíduo a um individualismo injustificável e a pensamentos intolerantes. Esta
perspectiva e o respeito farão possível que , no ato de conhecer ao Outro, o
indivíduo se conheça a si mesmo e seja consciente da fragilidade da condição
humana.
Para assimilar este processo de aprendizado de normas cooperativas ou
altruístas, os seres humanos contam com uma ferramenta indispensável produto da
própria evolução do cérebro e que o diferencia do resto dos seres vivos do
planeta: a linguagem. Sem linguagem , já dissemos antes, não pode haver
cultura. é o que nos diferencia dos animais e que foi criada a partir da
evolução do homem e seu cérebro. A linguagem não é somente um meio de
comunicação senão uma maneira de arrumar o mundo ( Derek Bickerton). A
linguagem é ao mesmo tempo uma ferramenta para o aprendizado e um aprendizado
em si mesmo. Um conteúdo e um formador de conhecimentos e normas. Aportações
fundamentais das disciplinas humanísticas e naturais ao longo de todo o século
XX se dão a mão nestas afirmações e o urgente que é converter estes consensos
em planos de ação: entender e fazer da palavra , da linguagem, do diálogo, a
chave para a convivência pacífica da Humanidade.
Sem embargo, o problema ao que se enfrenta o indivíduo é que na sociedade atual
existe uma desorientação psicológica-ética já que não sabe armonizar as normas
sociais com os traços característicos da natureza humana. Valores que imperam
na sociedade atual como o consumismo, o egoísmo ou a intolerância produzem uma
dissociação entre a mente, a ética e o direito. A ciência é a ferramenta que
pode levar-nos a entender melhor o fato de que o desenho de um modelo normativo
(moral ou ético-jurídico) adequado pode considerar-se, antes de tudo, como a
arqueologia de uma ponte entre natureza e cultura, em forma de uma explicação
científica da mente, do cérebro e da natureza humana, isto é, em forma de uma
explicação de como são os seres humanos, considerados sob uma ótica muito mais
empírica e respeitosa com os métodos científicos.
Assim que o grande reto da sociedade é, a partir destes conhecimentos
científicos, encontrar a maneira que os indivíduos aprendam a comportar-se de
forma altruísta ante uma sociedade que tende cada vez mais ao egoísmo.
Cientistas, psicólogos e filósofos já concluíram que não há uma distinção clara
entre cérebro e sentimientos morais. Mas sim que o aprendizado através de
modelos (quer dizer, a educação) - e isto inclui a todos os setores de uma
sociedade - poderá ajudar a construir um ser humano altruísta, assim como uma
sociedade mundial que viva mais longe do conflito.
Dito de outro modo, porque nosso cérebro está desenhado pela seleção natural
para termos tanto instintos sinistros como instintos luminosos ( os seres
humanos têm alguns instintos que fomentam a virtude e o bem comum e outros que
favorecem o comportamento egoísta e anti-social) precisamos planejar uma
sociedade que estimule aqueles e desencoraje estes (Ridley) ; ou, na aguda
observação de Sandel : na presença de indivíduos dotados de certas qualidades
de caráter, de certas disposições morais que os levam a identificar com a sorte
dos demais e, em definitiva, com os destinos de sua comunidade, o melhor será
deixar de lado a idéia liberal do Estado neutral, para substituí-la por um
Estado ativo em matéria moral, e decidido a "cultivar a virtude" entre seus
cidadãos.
Assim pois, o objetivo de uma boa educação e o objetivo de uma sociedade
próspera, deveriam ser o de fomentar a virtude de cultivar o melhor da natureza
humana e, do mesmo modo, reprimir o pior.Compreender a natureza humana, sua
limitada racionalidade, suas emoções e seus sentimentos parece ser o melhor
caminho para que se possa formular um desenho institucional e normativo que,
evitando ou reduzindo o sofrimento humano, permita a cada um conviver ( a viver
com o outro) na busca de uma humanidade comum10 : o modo como se
cultivem os traços de nossa natureza e a forma como se ajustem á realidade
configuram naturalmente o grande segredo da cultura , da civilização , da nossa
condição de cidadão e de nossa própria educação.
Notas
de rodapé convertidas
1. E parecem ser três as condições (necessárias e suficientes) que contribuiram
para a evolução da moralidade: 1. valor do
grupo ou inclusão social, que consiste na dependência do grupo para
encontrar comida ou para defender-se dos inimigos e depredadores; 2. apoio mútuo ou preocupação pela comunidade,
que consiste na cooperação e intercâmbio recíproco dentro do grupo; 3. conflito dentro do grupo condição segundo a qual os membros individuais de um
determinado grupo têm interesses díspares (de Waal).
2. Assim, por exemplo, os animais não humanos matam, mas não cometem um
"assassinato": é impossível para um pássaro "assassinar" outro pássaro,
porquanto a palavra "assassinato" se reserva para a morte intencionada,
deliberada, iníqua, de um ser humano por outro (podemos matar um cachorro, mas
não assassiná-lo e se um cachorro nos mata não é um assassinato). Da mesma
forma, não parece razoável afirmar que um pato violou outro pato. E muito embora exista "canibalismo" sexual entre as aranhas ( as
fêmeas esperam que o macho haja terminado de fecundá-las e então o matam e o
comem), gaivotas "lésbicas", gusanos "homossexuais" e pássaros "cornudos", o
significado destes termos só adquirem potenciação cultural quando produzidos e
metabolizados por nosso mecanismo cognitivo neo-cortical e vinculados a
aspectos da existência humana (Dennett).
3. Imagine uma situação onde a sua interferência pode significar o sacrifício
de uma vida para salvar outras cinco. Note-se que, na filosofia, não há
consenso acerca da solução para este tipo de dilema. Para a neurociência,
contudo, o raciocínio consequencialista de John Stuart Mill ( segundo o qual o
que importa são as ações que produzem a maior felicidade á maior quantidade de
pessoas, ou seja, o "bem maior") parece estar associado a um padrão de ativação
cognitiva ( pré-frontal) , enquanto buscar o comportamento moral de Kant
(segundo o qual o importante é "agir moralmente", a intenção de quem produz a
ação, independente do seu resultado relativamente ao "bem maior": é mais
importante não vulnerar os direitos de outra pessoa que obter um resultado
ideal) envolve um padrão "social-emocional" de ativação cerebral que envolve,
predominantemente, circuitos emocionais. O que acontece quando há um conflito
entre esses dois tipos de raciocínios? Pois bem, para responder esta pergunta,
Greene e colaboradores criaram cenários onde decisões pelo bem maior
envolvessem a quebra de uma promessa, colocando as predições de Mill e Kant em
pratos opostos da balança. Como esperado, e com um resultado que não dista
muito dos experimentos anteriores, a manutenção de uma promessa em detrimento
do "bem maior" encontra-se associada a ativação de circuitos
sociais-emocionais. Essa ativação também acontece enquanto se decide por
quebrar a promessa em prol de um julgamento utilitário - mas é sobrepujada pela
ativação , instantes mais tarde, do córtex pré-frontal dorso-lateral.
Confrontado com dilemas, portanto, a primeira reação do cérebro parece ser
emocional, em prol de uma moral interna que, no entanto, pode ser silenciada se
o córtex pré-frontal optar pelo bem maior, contra os impulsos de outras regiões
do mesmo cérebro. Um exemplo ilustrará melhor ao que estamos nos referindo:
suponhamos que um indivíduo vá em seu carro novo e vê a um homem estendido na
calçada. Sofreu um acidente e está ensanguentado. Poderia levá-lo ao hospital e
salvar-lhe a vida; sem embargo, mancharia de sangue seu carro novo. é
moralmente aceitável deixá-lo aí? Cambiemos de cenário. Um indivíduo recebe um
pedido por correio donde se diz que, se envia 100 reais, salvará a vida de 10
crianças famintas.é aceitável enviar o dinheiro? Ao analisar este tipo de
dilemas, Greene e colaboradores descobriram que, ainda que as opções são
superficialmente as mesmas - não faças nada e preserva teu interesse próprio ou
salva vidas com pouco custo pessoal -, a diferença estriba em que o primeiro
cenário é pessoal, enquanto que o segundo é impessoal. Em síntese, os estudos
comprovam que as decisões ante dilemas pessoais supoem mais atividade cerebral
nas zonas associadas com a emoção e a cognição moral. E a teoria que justifica
esta circunstância é a de que, desde uma perspectiva evolutiva, as estruturas
neuronais que associam os instintos com a emoção se selecionaram ao largo do
tempo porque resulta benéfico ajudar á gente ou cumprir uma promessa de modo
imediato; o instinto visceral, ou moral, é o resultado de processos
selecionados ao largo do processo evolutivo: dispomos de processos cognitivos
que nos permitem tomar decisões morais rápidas que aumentarão nossa
probabilidade de sobrevivência ( se estamos programados para salvar a um
indivíduo ou cumprir as regras de reciprocidade do intercâmbio social, todos
sobreviveremos melhor). O certo é que, de acordo com os experimentos
provenientes da neurociência cognitiva, parece razoável supor que não estamos
frente a dois juízos reciprocamente excludentes, senão diante de dois juízos
diferentes que ativam áreas distintas do cérebro por obra das circunstâncias e
do envolvimento pessoal do agente que atua. Por exemplo, Casebeer, tendo em
vista as numerosas filosofias morais que existem, tomou como ponto de partida
de suas investigações acerca das zonas cerebrais que se ativam durante o raciocínio
ou juízo moral, as três filosofias ocidentais mais importantes: o utilitarismo
de Stuart Mill , a deontologia de Kant e a teoria da virtude de Aristóteles
(que trata de cultivar a virtude e evitar os vícios). Concluiu sua análise com
a seguinte observação: "Assim que poderíamos dizer [...] que estes três
enfoques situam-se em diversas zonas do cérebro: frontal (Kant); préfrontal,
límbica e sensorial (Mill); a ação corretamente coordenada de todo o cérebro
(Aristóteles)". Seja como for, no atual panorama científico tem aparecido
vários estudos donde se afirma que existe , no cérebro, uma versão do
raciocínio ou juízo moral. Já se descobriu que determinadas regiões do cérebro,
normalmente ativas durante os processos emocionais, se ativam diante de alguns
tipos de juízo moral, mas não diante de outros. Os encarnizados debates
seculares sobre a natureza das decisões morais e sua similitude ou diferença se
resolvem agora de maneira rápida e clara com a moderna imagem cerebral. E os
novos resultados indicam que, quando alguém está disposto a atuar segundo uma
determinada crença moral, é porque a parte emocional de seu cérebro se ativou
ao pensar na questão moral. Assim mesmo, quando se apresenta um problema
moralmente equivalente sobre o qual a pessoa decide não atuar, é porque a parte
emocional do cérebro não se ativa. Trata-se de uma assombrosa novidade para o
conhecimento humano, porque ajuda a entender que a resposta automática do
cérebro pode predizer nossa resposta moral. Resumindo: os novos resultados das
imagens cerebrais parecem indicar que o cérebro responde aos grandes dilemas
morais subjacentes, isto é, de que parece haver mecanismos subconscientes
inatos comuns que se ativam em todos os membros de nossa espécie como resposta
aos desafios morais. é como se todos os dados sociais do momento, os interesses
de sobrevivência pessoal que todos possuímos, a experiência cultural que já
vivemos e o temperamento básico de nossa espécie alimentassem os mecanismos
subconscientes e inatos que todos possuímos e daí surgira uma resposta, um
impulso para atuar ou deixar de atuar (Gazzaniga).Nesse sentido, o fato de que
os juízos morais são maioritariamente intuitivos e inatos talvez seja (ou
constitua) a chispa moral, o aglutinante que impede que nossa espécie se destrua
a largo prazo.
4. Sarah Brosnan e Frans de Waal indicaram mediante um experimento muito
elegante como os monos capuchinos (macaco prego), Cebus apella, dispõem de um sentido agudo da justiça. Em
condições experimentais, aprendem a intercambiar fichas por comida com seus
cuidadores humanos, mas se negam a fazê-lo se o trato oferecido é pior do que
aquele com que se brinda a outro mono cujo intercâmbio é por ele contemplado e
avaliado. Este descobrimento de que os monos capuchinos estão dispostos a intercambiar
fichas por comida mas somente quando o trato é similar ao que se dá a outros
indivíduos do grupo abre um amplo campo de possibilidades de estudo que pode
relacionar-se á perfeição com as idéias dos etólogos e psicólogos (como
Humphrey) acerca do "porquê" do aparecimento dos grandes cérebros dos primatas.
Note-se, neste particular, que já se encontraram algumas evidências etológicas
no sentido de que o castigo retributivo se acha inserto no mais profundo de
nosso desenvolvimento evolutivo (Brosnan & de Wall; Fehr et al.). Uma
hipótese plausível sustenta que o retributivismo foi uma ferramenta útil para a
manutenção da ordem social durante a evolução , com o que certos mecanismos
psicológicos que o sustentam puderam haver sido fixados no transcurso da mesma
(Clark). Robin Dunbar chegou a conclusões semelhantes: descobriu uma correlação
direta nos primatas sociais entre o tamanho do neocórtex (a parte do cérebro
que pensa) e o tamanho dos grupos, típico daquela espécie. Dunbar deduziu que o
poder intelectual evoluiu em função das exigências da vida social : a
sofisticação cognitiva de nossos ancestrais primatas interagiu com o tamanho
crescente dos grupos e produziu uma forte pressão seletiva que acelerou o
crescimento do cérebro e a conseqüente sofisticação da mente humana. Em resumo,
teríamos aqui a resposta de que as vantagens dos cérebros residem nas
atividades sociais (na complexidade das relações sociais) e que quanto maior
for o grupo social, maiores serão os benefícios conferidos pela evolução do
cérebro e mais fortes serão as pressões seletivas para essa evolução. Dito de
outro modo, é a sociabilidade que impulsiona a evolução da inteligêngia e,
conseqüentemente, do tamanho do cérebro ou , nas palavras de Humphrey : a
função do intelecto é resolver problemas sociais.(Foley).
5. Tal como Aristóteles fez notar no nascimento da ciência humana, nossa
curiosidade pelas coisas manifesta-se de diferentes formas, todas inerentes ao
mundo mundano (ao reino do espaço e do tempo) e que não podem existir separadamente
dele. Seus pioneiros esforços por conseguir uma classificação destas formas
estão prenhados de sentido. Identificou Aristóteles quatro perguntas básicas
para as quais buscamos respostas a respeito de algo e denominou estas (as suas
respostas) de as quatro aitia -
um termo grego inexprimível , ainda que tradicionalmente traduzido, de maneira
um pouco estranha, pelas quatro "causas". Nos interessa, aqui, a que se refere
ao fato de que podemos mostrar curiosidade acerca do propósito, objetivo ou fim de algo, a qual Aristóteles chamou telos, ás vezes traduzido, também
estranhamente, como "causa final". é necessário grande esforço de compreensão e
adaptação para conseguir que estas quatro aitias de Aristóteles se acomodem como respostas ás quatro interrogações habituais
"que", "onde", "quando" e "por que"; esta acomodação é só parcialmente boa. Não
obstante, as perguntas que começam com "por que" mantêm mais estrita
correspondência com a interrogação pela quarta "causa" de Aristóteles, isto é,
pelo telos de uma coisa. "Por que isto?", perguntamos constantemente. "Para que
serve isto?" é pergunta tão habitual, que já passou a fazer parte de nossa
cotidiana existência. De fato, durante séculos estes "por quês" foram
reconhecidos como problemáticos por filósofos e cientistas; e tão distintos,
que os problemas que suscitam acabaram por merecer um nome: teleologia
(Dennett). Assim que uma explicação teleológica é aquela que explica a existência ou a ocorrência de algo citando como prova o
objetivo ou propósito ao que serve essa coisa. Os artefatos são os casos mais
óbvios: o objetivo ou propósito de um artefato é a função a cumprir para a qual
foi desenhado por seu criador. Não existe controvérsia acerca do telos de um
martelo: golpear e introduzir pregos. O telos de artefatos mais complicados,
como uma câmara de vídeo, um telefone celular com suas inúmeras opções de
programação, um scaner para tomografia axial computadorizada (TAC) é,
inclusive, mais óbvio. A idéia é certamente natural e atrativa: se observamos
um relógio de bolso e nos perguntamos por que tem um vidro transparente em um
de seus lados, a resposta nos induz a pensar nas necessidades e desejos de quem
utiliza estes relógios: porque desejam saber que horas são, olhando através do
vidro transparente e protetor, e assim em diante. Se não fosse por estes fatos
que se relacionam conosco, para quem (e por quem) o relógio foi criado, não
haveria explicação para o "por que" de seu vidro. E o mesmo ocorre , por
exemplo, com esse artefato cultural a que denominamos de "direito".
6. O estudo de populações de primatas sugere que uma das estratégias evolutivas
desenvolvidas para lidar com as exigências da vida social foi a construção de mapas sociais mentais, ou seja, mapas de
relacionamento capazes de informar a hierarquia social de cada primata do
grupo. De acordo com Sterelny, a capacidade de construir mapas sociais mentais
pode ser uma origem plausível das representações em termos de intencionalidade
(crenças/desejos), mas depende do preenchimento de algumas condições, que
incluem : a) exigências mnemônicas,
para reconhecer os outros indivíduos do grupo e sua posição na hierarquia
social; b) o desenvolvimento da
racionalidade estratégica, tendo em vista que a ação mais eficaz em
um ambiente social depende da expectativa sobre a ação dos outros indivíduos, e
isso exige maior flexibilidade
comportamental; e c) o aprendizado
social, que é capaz de diminuir muito os custos do aprendizado por
tentativa e erro, tanto em termos de segurança quanto em termos de eficiência,
porque os adultos moldam o ambiente de forma a selecionar o que os filhotes
devem aprender (ensinam, assim, o que é relevante aprender), ao mesmo tempo em que os protegem de ambientes potencialmente
perigosos (Sterelny).
7. Tal como assinala o evolucionista Richard Alexander, a principal força
hostil da natureza encontrada pelo ser humano é o outro ser humano. Os
conflitos de interesses estão onipresentes e os esforços competitivos dos
outros membros de nossa espécie se converteram no traço mais caracteristicamente
marcante de nosso panorama evolutivo. Em virtude de que todos temos as mesmas
necessidades, os outros membros de nossa própria espécie são nossos mais
temíveis competidores no que se refere a vivenda, emprego, companheiro sexual,
comida, roupa, etc. Sem embargo, ao mesmo tempo, são também nossa única fonte
de assistência, amizade, ajuda, aprendizado, cuidado e proteção. Isto significa
não somente que a qualidade de nossas relações sociais foi sempre vital para o
bem estar material de nossa espécie, como a solução pacífica dos conflitos e a
igualdade passaram a ser uma estratégia eficaz para evitar os altos custos
sociais da competição e da desigualdade material. Essas considerações vão ao
âmago mesmo dos dois tipos distintos de organização social encontrados entre os
humanos e os primatas não hominídeos: o que se baseia no poder e domínio
("agônico") e o que se baseia em uma cooperação mais igualitária ("hedônico").
Devido a que as sociedades de classes tem sido predominante ao largo da história
da humanidade, temos a tendência a considerar como norma humana as formas
agônicas de organização social. Mas isso passa por alto da evidência de que
durante nossa pré-história como caçadores-recoletores - a maior parte da
existência humana - vivemos em grupos hedônicos. De fato, os antropólogos
qualificaram de "firmemente" igualitárias as sociedades modernas de
caçadores-recoletores. Em uma análise de mais de um centenar de informes
antropológicos sobre vinte e quatro sociedades recentes de caçadores-recoletores
extendidas ao largo do planeta, Erdal e Whiten chegaram á conclusão de que
estas sociedades se caracterizavam por um "igualitarismo, cooperação e reparto
a uma escala sem precedentes na evolução dos primatas..., de que não há
hierarquia dominante entre os caçadores-recoletores..., e de que o
igualitarismo é um universal intercultural que provém sem lugar a dúvidas da
literatura etnográfica". Em resumo, o igualitarismo das sociedades de
caçadores-recoletores - recentes em termos evolutivos -, que marcou as pautas
de nossa existência passada enquanto seres humanos "anatomicamente modernos",
deveria considerar-se como uma eficaz estratégia sócio-adaptativa que evitava
os altos custos sociais da desigualdade material. Paralelamente a este processo
evolucionou a justiça - e a igualdade proporcional aristotélica é uma
manifestação explícita deste paralelismo - , cujo núcleo duro e indisponível
reside na circunstância de que todos os seres humanos devem ser considerados
como fins e nunca como meios, e que são merecedores de um trato e consideração
igual em todos os vínculos sociais relacionais que se consideram constitutivos
da autonomia e liberdade do indivíduo , quer dizer, que permitem a cada um
viver o livre desenvolvimento de sua identidade e de seus projetos vitais em
uma comunidade de homens livres e iguais unidos por um comum e fraterno
sentimento de legitimidade e de submetimento ao direito, e em pleno e
permanente exercício de sua cidadania. Neste particular, o descobrimento de que
os Cebus apella (macaco prego)
estão dispostos a intercambiar fichas por comida mas somente quando o trato é
similar ao que se dá a outros indivíduos do grupo abre igualmente um amplo
campo de possibilidades de estudo que pode relacionar-se á perfeição com as
idéias acerca da origem e da evolução da igualdade entre os primatas. Tem,
portanto, sentido ligar de forma prioritária a concepção de justiça ás virtudes
ilustradas de liberdade, igualdade e fraternidade. A história recente das
teorias da justiça é fundamentalmente a da articulação e do desenvolvimento
cada vez mais refinado e sofisticado dessas virtudes e, muito particularmente,
do princípio de igualdade. Dito de outro modo, estas três virtudes que
configuram a noção de justiça somente são aspectos diferentes da mesma atitude
humanista fundamental destinadas a garantir o respeito incondicional á
dignidade humana. (Atahualpa Fernandez).
8. Uma larga e rica história de investigação psicológica esboçou a chamada
hipótese do altruismo empático, que intenta explicar a conduta pró-social que
adotamos quando vemos a outro ser em apuros. Automática e inconscientemente
simulamos estes apuros em nossa mente, que a sua vez nos fazem sentir mal, não
de uma maneira abstrata senão literalmente mal. Nos contagiamos das sensações
negativas da outra pessoa, e para aliviar esse estado próprio nos vemos
motivados a atuar. Vários estudos corroboram a idéia de que a manipulação dos
sentimentos com relação a um indivíduo incrementa a atitude cooperativa. Por
exemplo, a percepção de gestos de angústia ou dor no outro propicia que a
conduta seja mais altruísta. Já se realizaram incontáveis experimentos para
corroborar essa idéia geral. John Lanzetta e colaboradores já demonstraram em
várias ocasiões que a gente tende a responder ao sentido do tato, do gosto, da
dor, do medo, da alegria e do entusiasmo dos demais com análogos padrões
fisiológicos de ativação.Literalmente sentem os estados emocionais dos demais
como se fossem próprios. Esta tendência a reacionar ante o sinal de dor ou
sofrimento dos demais parece inata: se há demonstrado em crianças recém
nascidas, que choram em resposta ao sinal de dor de outras crianças nos
primeiros dias de vida (Simner). Alguns experimentos neurofisiológicos e de
imagem cerebral sugerem que as neuronas espelho existem nos seres humanos e que
são as responsáveis da "compreensão das ações", quer dizer, que têm a função de
contribuir á compreensão e á imitação das ações alheias.(Rizzolatti et al.). Em
resumo, este sistema neuronal parece ser o causante de que os humanos tendamos
a imitar aos que nos redeiam e o responsável de que sintamos uma emoção quando
vemos a alguém emocionar-se: literalmente, sentimos essa mesma emoção. Estas
"neuronas expelo" também nos permitem "ler" a mente do Outro e a identificar-se
com ele.
9. Dito de outro modo, significa dizer que também resulta precipitado e pueril
pensar que as primeiras investigações neurocientíficas acerca do juízo moral e
normativo já nos abre a porta a uma humanidade melhor. Me temo que isso seria
simplificar as coisas ao extremo. Assim como o criacionismo ingênuo pode
condenar aos humanos a uma minoria de idade permanente, assim também um modelo
neurocientífico incompleto pode levar-nos a conceber ilusões impróprias. Porque
não é definitivamente certo que um maior e melhor conhecimento dos
condicionantes neuronais dos humanos nos proporcione automaticamente uma vida
humana mais digna. Oxalá fossem as coisas tão simples! Pensar que a relação
cérebro/moral/direito é tudo pode levar-nos a olvidar que a medida da moral e
do direito, a própria idéia e essência da moral e do direito, é o humano, cuja
natureza resulta não somente de uma mescla complicadíssima de genes e de
neurônios senão também de experiências, valores, aprendizagens, e influências
procedentes de nossa igualmente embaraçada vida sócio-cultural. O mistério dos
humanos consiste precisamente em advertir que cada um é um mistério para si
mesmo. A neurociência, a ciência cognitiva, a primatologia, a genética do
comportamento e a psicologia evolucionista - para citar apenas as mais
representativas- nos ajudarão a entender uma série de elementos que configuram
o mistério, mas não o eliminará de todo. Ainda assim, dando por sentado que o
mistério permanecerá sempre, a ciência talvez possa levar-nos a entender melhor
que a busca de um adequado critério ético ou moral pode considerar-se, antes de
tudo, como a arqueologia das estruturas e correlatos cerebrais relacionados com
o processamento das informações morais e ético-jurídicas.
10. Tentando definir o que significa "ser de esquerda", assim se manifesta
Peter Singer : "Tomar consciência da imensa quantidade de dor e sofrimento que
há em nosso universo, assim como do desejo de fazer algo para reduzi-la (...)
isso, creio eu, consiste a esquerda (...) - ou seja - é essencial para qualquer
esquerda autêntica. Se nos encolhemos de ombros ante o sofrimento evitável dos
débeis e dos pobres, dos que estão sendo explorados e despojados, ou dos que
simplesmente não têm nada para levar uma vida decente, não formamos parte da
esquerda. Se dizemos que o mundo sempre foi e será assim, pelo que não se pode
fazer nada, então não formamos parte da esquerda. A esquerda (ao seguir o
imperativo de reduzir o sofrimento) quer fazer algo por cambiar esta situação".
Autor:
Atahualpa Fernandez
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