No vasto e importante debate que nas últimas décadas se abriu em torno ao problema da interpretação jurídica, nenhuma teoria específica da interpretação logrou reivindicar para si um papel exclusivo. Sem embargo, não há dúvida de que no fascinante ciclo cultural que viu a interpretação, em poucos anos - desde a publicação, se desejamos indicar uma data, de Verdade e Método de Gadamer - converter-se certamente em um dos temas objeto de maior interesse e de mais ampla confrontação teórica, jogou um papel de primeira importância a nao comum capacidade atrativa e, ao mesmo tempo, a flexibilidade com que a hermenêutica filosófica funcionou, ora como polo atraente, ora como elemento de contraposição com posições filosóficas diferentes ou inclusive contrárias ao programa teórico que a mesma sustenta.
Com sua tese da inseparabilidade do conhecer e o interpretar e do interpretar e o aplicar, e da incidência da interpretação na realidade mesma que haverá de interpretar-se, ou seja, da construtividade do interpretar, a hermenêutica acabou por abrir caminho a uma ampla gama de ricas e originais reconsiderações teóricas dos temas do compreender, do interpretar, do aplicar, do significado e da linguagem, aproximando âmbitos distintos do saber.
Muitos e importantíssimos são os problemas levantados e discutidos no âmbito desta abertura de novos itinerários intelectuais propiciados pela centralidade do tema interpretação, no qual, por sua vez, a interpretação jurídica - inclusive graças a um novo despertar da consciência hermenêutica dos juristas, depois de que durante todo o século XIX e boa parte do XX o modelo do bom legislador havia prevalecido claramente sobre o modelo do bom intérprete - foi convertida no ponto cardinal da evolução jurídica.
A teoria hermenêutica do direito deu passoas de gigante no século XX, propiciando uma indubitável aproximação entre momento normativo e momento interpretativo-aplicativo. Mas se há um em particular do qual parece haver despertado maior interesse e cuidadosa atenção, certamente este está representado pelos limites da interpretação, em virtude da cada vez mais clara necessidade de precisar e redefinir os limites intrínsecos e estruturais próprios da atividade interpretativa e dos processos de tomada de decisão.
Por outra parte, é evidente que o problema dos limites da interpretação, proposto também pelas teorias semióticas da interpretação jurídica, pode ser afrontado de diferente maneira e desde distintos pontos de vista: interrogando-se, por exemplo, acerca de se a interpretação está sujeita a vínculos e, em caso de resposta positiva, esclarecendo quais são estes; ou perguntando-se se o conceito mesmo de interpretação deve ser delimitado; ou bem se é oportuno restringí-lo preventivamente, dissociando-se de um modo de entendê-lo (por outro lado, muito difundido) que o dilata, pressupondo em última análise que tudo é interpretação.
Mas limitar o conceito de interpretação implica que o homem esteja disposto existencialmente a aceitar a limitação que lhe é própria, essa estrutura da finitude e da limitada racionalidade que ele tem que considerar seriamente. Sem embargo, não é difícil entender que o fato de que este tema se apresente hoje como central é o preciso efeito da fortuna mesma da problemática da interpretação, de seu extraordinário êxito e da ampla difusão de que goza em nossas sociedades pluralistas. Perdidas hoje, definitivamente, aquela homogeneidade de valores e aquela comunidade de ethos e de bens compartidos nos quais se baseava a idéia de uma objetividade e de uma certeza dos resultados da atividade interpretativa - e, portanto, não se podendo já propor, por seus excessos de unilateralidade, a concepção juspositivista do direito - se foram impondo paulatinamente o relativismo e o conflito das interpretações .
Não obstante, frente á tentação difundida e recorrente, que pretende sugerir que nada há mais que interpretações, não poderiam deixar de surgir imediatamente a exigência urgente de interpretações corretas. Com efeito, em contextos fortemente pluralistas e maculados pelo virótico episódio relativista está sempre presente o perigo concreto de que a interpretação resulte subjetiva e arbitrária, expressão de instâncias e valores que, em lugar de aceitar a fatiga de uma articulada confrontação intersubjetiva, tendem irresistivelmente a impor-se, ainda que carentes de adequadas motivações. Neste caso, a justiça se vê reduzida a uma formalidade virtualmente desprovida de significado e conteúdo, e o direito, resultado de uma incontrolável arbitrariedade da interpretação, intrinsecamente injusto.
Vamos então, a partir de agora - no quadro da problemática a que se pretende aludir -, tratar de trabalhar especificamente na dilucidação de uma questão fundamental. Vamos começar por tomar posição relativamente á condenação da velha concepção do juiz inerte e meramente reprodutor de comandos normativos e da jurisdição como atividade estritamente vinculada, porque fiadora da certeza do direito e da segurança dos cidadãos.
Muitas das soluções defendidas no seguimento desta exposição que vai decorrer hão de necessariamente ser a conseqüência de certa atitude - da nossa atitude - relativamente a esse problema mais geral de que no caso só se trate de fazer uma concreta e problemática interpretação, justificação e aplicação do direito .
E não parece despropositado que isto mesmo se mostre através de uma análise como esta. Para começar, diremos que nossa proposta de trabalho parte das seguintes indagações: será admissível deixar ao juiz certa margem de liberdade para ajuizar, na sua tarefa interpretativa, o sentido e o alcance dos enunciados normativos? E justamente em que medida isso será admissível ou aconselhável, nomeadamente no que diz respeito ao processo de tomada de decisão, em concreto?[1]
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