Como todo texto, este também tem um ponto de partida. Como sempre, também, um ponto de partida pressupõe o abandono de outros. Por isso, gostaríamos de assinalar que as discussões privilegiadas neste texto não desconhecem que o tema comporta uma pluralidade de abordagens, e que todas pressupõem, como estas apresentadas, antagonismos, contradições e resistências.
Uma humanidade articulada em um processo histórico que abarca a vida de todos os homens resultou, não em existências genéricas ricas e multifacetadas, mas sim em individualidades solitárias e amedrontadas. O fundamento deste paradoxo está na mercadoria plenamente explicitada: o fetichismo e a reificação fazem com que as pessoas deixem de encontrar nas outras pessoas a substância autenticamente humana de que carecem. Perdem, então, as suas raízes genéricas e só lhes resta constituir suas identidades a partir delas próprias. A pobreza deste patamar de individuação é um fator importante para que a luta de classes explicite a sua forma mais bárbara: o conflito armado "despolitizado" da propriedade privada dos marginais contra a propriedade privada do status quo. Os centros urbanos, criações do mundo burguês, vão se dissolvendo em um mar de indivíduos solitários, amedrontados e violentos: é a etapa superior do individualismo burguês correspondente á crise estrutural do capital. Palavras-chave: individuação, identidade, Lukács, Marx.
A vida não está fácil.
Ser humano torna-se algo cada vez mais complicado. Nos últimos 200 anos, os homens se transformaram em um gênero universal no sentido mais rigoroso e radical da expressão. Verdade que desde o surgimento do homo sapiens somos um gênero na acepção biológica; todavia, com o desenvolvimento do mercado mundial a partir do século XVI fomos nos convertendo em um gênero articulado por uma única e mesma história. Por muitos milênios as histórias das sociedades apenas se influenciavam de modo esporádico, se e quando se relacionavam. Pensemos nas centenas de milhares de anos do período primitivo em que a vida dos homens asiáticos em nada interagiu com a dos homens europeus, por exemplo. Ou então, nos outros milhares de anos que o isolamento das sociedades possibilitou que formas de vidas tão distintas quando o modo de produção asiático e o feudalismo coexistissem em um mesmo planeta. A superação desse isolamento que reduzia o gênero humano á sua dimensão biológica é obra de toda a história humana - e o desenvolvimento das forças produtivas é o seu momento predominante. Tal superação, que se inicia lentamente, ganha momentum e em radicalidade com as transformações
econômicas, sociais e políticas que ocorreram na esteira da Revolução Industrial e da Revolução Francesa. Desde então, ainda hoje a crescente divisão social do trabalho intensifica a dependência de cada indivíduo para com a sociedade á qual pertence e, analogamente, intensifica a dependência de cada economia nacional com o mercado mundial. Ao chegarmos ás duas Grandes Guerras Mundiais do século passado, as economias nacionais são apêndices (mais ou menos importantes, não importa aqui) do mercado mundial e é nesse cenário que a história é decidida. A globalização dos últimos 30 anos apenas tornou ainda mais viva e intensa essa interdependência: o predomínio do capital financeiro, e tudo o que isto implica em termos de abertura das fronteiras nacionais para a sua circulação, faz com que a dependência de cada indivíduo para com a economia mundial corresponda a uma experiência banal da vida cotidiana de cada um de nós. Quase todos sabemos, e reconhecemos como se fosse um dado da natureza, que uma elevação da produção de arroz na China pode afetar o poder de compra de um produtor gaúcho ou, ainda, que uma elevação na taxa de juros nos EUA pode gerar milhares de novos desempregados no Brasil. Só os mais velhos ainda se recordam da situação (hoje, bucólica) em que a maior parte dos valores de uso era produzida pelos próprios consumidores: as geléias que nossas avós faziam em grande quantidade para todo o ano aproveitando a safra de morangos ou laranjas ou, então, quando toda a família se mobilizava por dias para produzir os doces e bolos das festas de
aniversários ou festas de fim de ano. A enorme parte das roupas que usávamos em minha família, quando eu era criança, era feita por uma costureira que trabalhava algumas semanas por ano em nossa casa. E apenas excepcionalmente o lazer era uma mercadoria: o cinema de domingo e, depois, os discos de vinil e as radiovitrolas. Não apenas os brinquedos, mas também as estórias, as lendas e tradições eram passadas de uma geração á outra por relações familiares ou muito próximas do núcleo familiar. Hoje, não há festa de aniversário que não possa ser comprada em alguns poucos minutos em um supermercado (ou numa firma especializada, o que leva ainda menos tempo), nenhuma geléia chega ás nossas mesas sem passar pela indústria e todo lazer é, antes de qualquer coisa, uma mercadoria.
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