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Se, por exemplo, repassássemos o repertório léxico grego-clássico sobre a
bondade, a virtude, a excelência e a retitude moral, nos encontraríamos , quase
sem exceção, com vozes cuja origem etmológica aponta diretamente ao ódio, ao
prejuízo e ao desprezo dos pobres, a traços inequivocamente patrícios : de um
lado, "os grandes", "os notáveis em posição elevada" , " os de bom berço", "os
excelentes" , "os melhores" , "os que estão em posição destacada" etc.; do
outro , "os egoístas, pobres, vagos, preguiçosos, pestilentos" (tudo isso está
na etmologia da palavra grega que ingenuamente se traduz sempre por "maus") , "
os que vêm de estar em mau estado, pútrido", "o vulgar" etc. (Jaeger ).
Os filósofos e os escritores "respeitáveis" já gastaram rios de tinta em
criticar e lamentar o que o discípulo tardio de Calicles e Trasímaco, Nietzsche
, chamou o "ressentimento", a inveja e a mesquinhez dos pobres, os
trabalhadores e o grosso do que Aristóteles considerava classes miseráveis e
incapazes de virtudev. Mas até onde meu conhecimento chega, está por se
escrever a história do ódio, do prejuízo, do desprezo, e por certo, do pânico
que, documentado ao menos desde o Tersites, de Homero, e o caldeireiro-filósofo
de Platão6, vem suscitando entre os ricos, os poderosos e os
chamados intelectuais aqueles a quem, de uma ou outra forma, têm estes " baixo
sua mão".
Não somente há, pois, inveja, incapacidade de reconhecer as excelências
alheias. Também há impostura e abuso de poder sob o pretexto de excelência. E
esse é o lado terrível da desigualdade. Por esse lado - e não pelo outro -
rompem-se vínculos comunitários globais, escinde-se e polariza-se uma
sociedade, e se constitui, enfim, o que o tory Benjamín Disraeli descreveu como as "duas nações" (a dos ricos e a dos pobres),
o que o monárquico orleanista Guizot batizou como "luta de classes" (talvez
recordando-se de Aristóteles) e o que Marx chamou " a não-existência política"
dos que vivem por suas mãos, ou seja, dos que se encontram na parte mais escura
da vida, "no pior de todos os mundos possíveis", para usar a expressão de
Schopenhauer.
Por certo que a desigualdade tem muitas causas , mas a principal seguramente há de buscá-la no atual modelo capitalista (e
neoliberal) de crescimento e desenvolvimento e no vigente modelo anti-social de
propriedade. O capitalismo é um modo de produção que vive da desigualdade e a
retroalimenta positivamente , vive da desigualdade entre o trabalho e o capital.
Reproduz e amplia essa desigualdade porque o capitalismo distribui muitos
distintos recursos de poder a proprietários e não proprietários. E distribui
tão desigualmente o poder social porque se baseia em um modelo de propriedade e
apropriação que não conhece limites a sua acumulabilidade , e permite
formidáveis (hiper) concentrações de poder econômico e social que não somente
escapam a todo controle democrático senão que por inúmeras vias conseguem uma
sobre-representação institucional e política de seus privilegiados e
minoritários interesses7.
Assim que a batalha - até agora duramente perdida - contra a extrema
desigualdade social passa por buscar-lhe alternativas - decerto parciais e
graduais - ao capitalismo, alternativas de tipo social-republicano, alternativas
que permitam a sociedade recuperar o controle democrático sobre as decisões
sociais, políticas e econômicas , e aos indivíduos- a muitos, a milhões deles -
recuperar o controle sobre suas próprias vidas, isto é, sua verdadeira
autonomia8.
E ensinar isso não é, definitivamente, uma tarefa fácil !
Notas
de rodapé convertidas
(*) Para a consulta da referência bibliográfica relativa aos autores citados
neste artigo cfr.: Atahualpa Fernandez, Direito
e natureza humana. As bases ontológicas do fenômeno jurídico ,
Curitiba: Ed. Juruá, 2006.
1 O problema, parece-nos, é que desde suas primeiras formulações, a justiça
sempre foi associada com a igualdade e, nessa mesma medida, foi evolucionando
ao compasso desse princípio ilustrado. No Livro V da ética a Nicómaco, por exemplo, Aristóteles desenvolveu a sua
doutrina da justiça ( que, ainda hoje, representa o ponto de partida de todas
as reflexões sérias sobre a questão da justiça ) situando a igualdade
(proporcional ou geométrica) como o cerne deste valor, isto é, como núcleo
básico da justiça. De fato, e neste particular sentido, tanto em situações
experimentais como de observação, já se demonstrou que o objetivo da justiça
baseado na igualdade é capaz de anular quaisquer outras considerações contrapostas.
Inclusive o princípio básico do comportamento humano que é maximizar o próprio
benefício, é rechaçado em favor de maximizar uma distribuição equitativa (um
princípio da igualdade): alguns estudos indicaram que, ademais de sentir-se
desgraçadas quando obtêm menos do que crêem que merecem, as pessoas se sentem
verdadeiramente incômodas quando obtém mais do que merecem ou quando outras
pessoas obtêm mais ou menos do que merecem. Em síntese, dado um conjunto
determinado de condições qualificativas, as pessoas sempre tratarão de atuar de
uma maneira que pareça justa, quer dizer, igualitária (Clayton e Lerner). Mas,
como é quase ocioso recordar, a igualdade não é um fato. Dentro do marco da
espécie humana, que estabelece uma grande base de semelhança, os indivíduos não
são definitivamente iguais. O princípio ético-político da igualdade não pode
apoiar-se portanto em nenhuma característica "material"; é mais bem uma
estratégia sócio-adaptativa, uma aspiração desenvolvida ao longo de nossa
história evolutiva, que passou de aplicar-se a entidades grupais mais reduzidas
até englobar a todos os seres humanos (como proclamam, aliás, as mais
conhecidas normas acerca dos direitos humanos da atualidade). A justificação de
tal princípio descansa, desde suas origens, no reconhecimento mútuo, dentro de
uma determinada comunidade ética, de qualidades comuns valiosas e valores
socialmente aceitos e compartidos, os quais representaram uma vantagem seletiva
ou adaptativa para uma espécie essencialmente social como a nossa que, de outro
modo, não haveria podido prosperar biologicamente. A regra, portando, é do
trato igual, salvo nos casos em que, por azar social (origem de classe,
adestramento cultural, etc.) ou azar natural (loteria genética - que inclui a
distribuição aleatória de talentos e de habilidades - enfermidades e
incapacidades crônicas sobrevindas, etc.), dos quais não somos absolutamente
responsáveis, o tratamento desigual esteja objetiva e razoavelmente
justificado. Que embora a igualdade constitua o núcleo básico da justiça ( e
parece muito intuitivo que se trata de uma emoção moral arraigada em nossa
arquitetura cognitiva mental : o mais canalha dos homens sempre reagirá ante um
tratamento desigual no que se refere a sua pessoa), as reais e materiais
desigualdades entre os membros de nossa espécie exigem o desenho de estratégias
compensatórias para reparar, na medida em que se possa fazer, as desigualdades
nas capacidades pessoais e na má sorte bruta. Dito de outro modo, justiça e
igualdade não significam, necessariamente, ausência de desníveis e assimetrias,
já que os indivíduos são sempre ontologicamente diferentes, mas, sim, e muito
particularmente, ausência de exploração de uns sobre outros. Daí que tratar
como iguais aos indivíduos não necessariamente entranha um trato idêntico: não
implica necessariamente, por exemplo, que todos recebam uma porção igual do
bem, qualquer que seja, que a comunidade política trate de subministrar, senão
mais bem a direitos ajustados ás diversas condições (Dworkin). Nas palavras de
Zeki e Goodenough: "For instance, in a literal sense, human equality is a myth.
Variation ensures that each of us has our own package of strengths and
weaknesses. Neither of us has the ability to paint respectably, write good
detective fiction, compose songs or play sweeper for even a middling kind of
football team. Yet, as a legal matter, the democratic societies in which we
live treat us as the equal of those who can do these things. This equality myth
is a key element in the maintenance of a particularly admirable kind of social
order, a counterfactual that pays dividends in fairness and stability. Proving
the law wrong in its declared assumptions may not actually affect the utility
of those assumptions (p.e. Goodenough)".
2 Uma observação paralela acerca da noção de liberdade: para começar, diremos
que para ser plenamente indivíduo, para gozar de plena existência individual,
separada e autônoma, é necessária a liberdade plena. E a liberdade (plena), a
exemplo do que ocorre com a individualidade, também não pressupõe a (plena)
existência ab initium et ante saecula de indivíduos (plenamente) separados e autônomos, senão que a (plena)
existência separada e autônoma desses indivíduos pressupõe a (plena)
institucionalização histórico-secular da liberdade. De fato, na vida social
tudo é possível : o melhor - se houver - e, desde logo, o pior. Tão é tudo
possível na vida social, que até é possível nela a declaração de inexistência
individual, o certificado de defunção social de alguns humanos: a escravidão é a
morte do "indivíduo" para todos os efeitos do trâmite social, sua desumanização
total por via de redução do sujeito a mero instrumentum
vocale , segundo a célebre formulação do direito romano ( ou
"instrumento animado" , para usar a expressão de Aristóteles).Para existir como
indivíduo separado e autônomo é , pois, e ao menos , necessária a prévia
institucionalização da liberdade; é necessário não ser escravo, não ser tratado
como um instrumento , senão como um fim em si mesmo - aliás , dito seja de passo,
perde-se habitualmente de vista que quando Kant formula a exigência de tratar
aos demais como fins em si mesmos, não está dizendo nada radicalmente novo e
"moderno", mas que está repetindo o mesmo que sustentaram todos os filósofos
morais e todos os juristas republicanos ao menos desde Aristóteles, ou seja:
que aos livres não se lhes pode tratar como escravos , quer dizer, como
instrumentos ( "vocais" ou "animados"). Pois bem, o liberalismo entende por
liberdade somente a liberdade negativa, e esta é definida de tal maneira que
uma pessoa é livre quando está livre de coerção, quer dizer, que não há ninguém
nem tampouco uma lei que lhe ponha impedimentos. De liberdade positiva se fala,
em câmbio, quando uma pessoa tem a capacidade e a oportunidade de atuar, ou
seja, de que o Estado não só deve proteger senão também ajudar o indivíduo, de
criar oportunidades para que o indivíduo se possa ajudar a si mesmo. Para citar
um exemplo que se encontra em Hayek: no primeiro caso, um montanhês que cai em
um abismo do qual é incapaz de sair, é livre neste sentido porque não há
ninguém que o impeça de sair; já no caso de liberdade positiva, nosso montanhês
precisamente não seria livre neste sentido, se não pode sair, ainda que ninguém
o impeça - falta-lhe a capacidade e a oportunidade de atuar. O direito proíbe,
por exemplo, matar a outro indivíduo se não é em circunstâncias muito extremas,
e isso supõe uma restrição óbvia de meus cursos de ação, supõe uma
interferência. Mas dita interferência não é arbitrária, senão que precisamente
está justificada pela proteção geral da liberdade dos cidadãos, assim que não
pode implicar uma violação de minha liberdade mais que em um sentido muito
primário. Trata-se, em síntese, de uma concepção robusta de liberdade, aqui
entendida em seu sentido republicano-democrático, como "não interferência
arbitrária", ou seja, como um aparato histórico-institucional que imponha ao
Estado a obrigação de assegurar e
de promover, no contexto de uma sociedade igualitária, a liberdade necessária
para que o indivíduo possa autoconstituir-se como entidade separada e autônoma,
e que, em igual medida, garanta ao mesmo - como já dissemos antes, plena
capacidade para resistir á interferência arbitrária não somente do próprio
Estado, mas também de si mesmo e de todos os demais agentes sociais. Dito seja
de passo que, para Aristóteles, dessa liberdade carecem os desfarrapados, os
miseráveis e, em geral, os despossuídos e os empregados em ofícios
"aviltantes". Que os pobres deveriam estar excluídos do governo porque não
podem governar-se a si mesmos, por carecer, pois, de virtude, é uma idéia
recorrente em Aristóteles, e o fundamento normativo de sua - relativamente
moderada - hostilidade á democracia, que ele, como todos os escritores antigos
e modernos até bem entrado o século XIX (Kant incluído), consideraram como
governo potencialmente despótico dos pobres livres ( recordemos que, para
Aristóteles, "democracia" significa propriamente governo dos pobres, não
governo da maioria, por muito que a maioria estivesse, de fato, constituída
pelos pobres livres - Política,1290a)(Doménech). Sobre liberdade republicana e
sua diferença com relação a liberdade liberal: Pettit; Ovejero et alii; Skinner; Sandel; Atahualpa
Fernandez. Para o estudo de uma teoria sobre a liberdade (e sua correspondente
relação com a responsabilidade) aplicada tanto aos aspectos psicológicos da
pessoa livre e a vontade livre como ás vertentes políticas na teoria do Estado
livre e da Constituição livre, cfr., por todos, Pettit. Já sobre a a liberdade
( e sua contraposição com o problema do determinismo) a partir de um enfoque
cognitivo e envolucionista, cfr. Dennett; Rose.
3 Por exemplo, a felicidade é um dos aspectos mais hereditários da
personalidade. Estudos realizados com gêmeos idênticos mostram que 50 a 80% de
toda a variação entre as pessoas e seus níveis médios de felicidade podem ser
explicados por diferenças em seus genes, e não por suas experiências de vida -
Lykken e Tellegen (episódios específicos de alegria ou depressão, entretanto,
normalmente precisam ser entendidos analidando-se a interação dos eventos e
condições da vida com a predisposição emocional da pessoa). O nível médio de
felicidade de uma pessoa típica constitui o "estilo afetivo" da pessoa. Seu
estilo afetivo reflete o equilíbrio diário de poder entre nosso sistema de
aproximação ( o sistema de motivação do comportamento humano que provoca
emoções positivas e o faz querer se aproximar de determinadas coisas) e o
sistema de retração (o sistema de motivação do comportamento humano que provoca
emoções negativas e nos faz querer evitar determinadas coisas), e esse estilo
está praticamente escrito em nossa testa. Há muito se sabe, através de estudos
de ondas cerebrais, que a maioria das pessoas apresenta uma assimetria: mais
atividade no córtex frontal direito ou no córtex frontal esquerdo. No final da
década de 1980, Richard Davidson, da Universidade de Wisconsin, descobriu que
essas assimetrias estavam relacionadas com as tendências gerais da pessoa a
vivenciar emoções positivas ou negativas. As pessoas que apresentavam maior
quantidade de determinado tipo de onda cerebral vinda pelo lado esquerdo da
testa relataram sentir-se mais felizes na vida cotidiana e sentir menos medo,
ansiedade e vergonha do que as pessoas que apresentavam maior atividade do lado
direito. Pesquisas realizadas posteriormente mostraram que as pessoas com maior
atividade no lado esquerdo têm menos tendência á depressão e se recuperam mais
rapidamente de experiências negativas (Davidson ). A diferença entre as pessoas
com maior atividade cortical do lado direito e do lado esquerdo pode ser
observada até mesmo em bebês. Bebês de 10 meses de idade que apresentam mais
atividade do lado direito tâm mais tendência a chorar quando separados
brevemente das mães ( Davidson e Fox). E essa diferença na infância parece
refletir um aspecto da personalidade que é estável na maior parte das pessoas,
em toda vida adulta ( Kagan). Os bebês que apresentam mais atividade do lado
direito da testa tornam-se crianças mais ansiosas em relação a novas situações;
quando adolescentes têm mais probabilidade de ser medrosas nos namoros e nas
atividades sociais; e, por fim, quando adultos têm mais probabilidade de
precisar de tratamento psicológico para relaxar. Tendo perdido na loteria cortical,
e inocentes de si mesmas, elas lutam a vida inteira para atenuar o controle de
um sistema de retração excessivamente ativo. Já para as pessoas que ganharam na
loteria cortical, seus cérebros foram pré-configurados para ver o mundo pelo
lado positivo (Haidt). O curioso é que há provas recentes que põe tudo isso sob
uma perspectiva ainda mais interessante. Um estudo realizado sobre pacientes
com danos cerebrais de distintos tipos revelou que uma área particular do lobo
frontal direito é crucial para a apreciação do humor. Um indivíduo poderia
perder quase qualquer outra parte do cérebro, inclusive troços da parte
esquerda, e ainda assim ter sentido de humor. Mais extraordinário ainda é o
fato de que isto inclui a apreciação não só de desenhos animados, estorietas ou
outros tipos de humor "visual", senão também do humor verbal, o qual
pensaríamos que é tarefa das áreas da linguagem, radicadas no hemisfério
esquerdo, donde se localizam os centros do discurso. A gente que carece desta
zona crucial do hemisfério direito mostra uma importante redução na capacidade
de sorrir, que parece ser boa para liberar endorfinas ( que são parte de um
sistema de controle neuronal da dor e cuja principal área cerebral responsável
por sua liberação é o hipotálamo: quanto maior seja a quantidade de endorfinas
que segregue o organismo, maior será a quantidade de dor que este possa
suportar, e que em grandes quantidades pode fazer-nos sentir relaxados e/ou
cheios de energia). E neste particular, como parece ser que o riso da ânimos
para continuar com a interação com outros indivíduos, inunda o cérebro de
endorfinas e faz com que um indivíduo se sinta bem predisposto em relação a
outra pessoa, a perda dessa capacidade pode resultar extremamente danosa para a
criação de vínculos sociais. (Dunbar). Ademais, esta parte do hemisfério
direito tem conexões neuronais diretas com a amígdala, no sistema límbico, que
é a parte do cérebro que se ocupa de processar emoções e sinais emotivos.
4 Pense-se, por exemplo, no nepotismo que, no seu (freqüentemente deturpado)
uso cotidiano se refere a conceder favores a parentes ( do latim "nepotem",
sobrinho) como, por exemplo, um pré-requisito para um trabalho ou um status
social. O nepotismo institucional é, desde o ponto de vista oficial, ilícito em
nossa sociedade, se bem que amplamente praticado e, na maioria das vezes, a
gente ainda se surpreende de saber que é considerado um vício. Claro que não é
impossível encontrar uma explicação genético-evolutiva para tal fenômeno: primeiro, e em certas circunstâncias, este
tipo de pessoas pode fomentar a sobrevivência de seus genes por meio do cuidado
que pode aportar a seus irmãos ou a seus sobrinhos; segundo, os parentes são
aliados naturais, e antes de que se inventara a agricultura e a vida sedentária
em cidades, as sociedades se organizavam em torno de clãns que estavam formados
por parentes - Napoleon Chagmon, por exemplo, depois de haver recompilado uma
série de genealogias meticulosamente elaboradas que vinculavam milhares das
tribos ianomami ( a tribo de caçadores-recoletores e agricultores da selva
amazônica que estudou durante trinta anos), demonstrou que o parentesco é o
fundamento que mantêm as aldeias unidas (Pinker ; Tudge). Com efeito, o amor a
nossos parentes ás vezes entra em conflito com nossos próprios interesses ou
com nosso sentido da justiça e a imparcialidade nas relações sociais. Muitos
sistemas políticos tiveram que adotar disposições específicas para tratar de
limitar o nepotismo na esfera pública. Em efeito, nossa tomada de decisões é
complexa, e ás vezes considerações diferentes tiram de nossa consciência moral
condutas que caminham em direções opostas. A tarefa da ética e do direito
consiste em iluminar esses conflitos, não em ignorá-los.
5 Que são: campesinos, jornaleiros, comerciantes, artesões e proletarios
(Política,1318b), ou seja, todos os que trabalham com suas mãos. A "Rebelião
das massas" , de Ortega y Gasset, é talvez o último grande livro nessa tradição
de indignado pânico ante os - supostos - avanços da democracia em sentido
clássico, como participação real dos pobres no governo e na vida pública. Seu
interessante diagnóstico era que a vida democrárica moderna, produzindo o
"homem massa", havia rompido o que ele considerava a piéce de résistance de toda sociedade: a dialética
"exemplaridade/docilidade" ( quer dizer, autoridade ganha com a própria
excelência/submissão a essa autoridade por quem, não sendo eles mesmos
excelentes, são sem embargo capazes de reconhecer - e aderir-se á - a
excelência alheia. (Salvador Giner).
6 O livro V da República, como talvez se recordará, Platão apresenta ao horror
de seus leitores a imagem de um possível filósofo ( possível, claro está, na
aborrecida democracia) que é caldeireiro de ofício, e naturalmente, pouco mais
ou menos, feio, baixinho, barrigudo e calvo. Vinte e tantos séculos mais tarde,
no elegante salão de uma grande Madamme da Paris de XVIII, e talvez recordando
esta passagem de Platão, Voltaire deixou cair entre displicentes suspiros de
afetação parvenu : "Ah! Madamme, quand la canaille se mêle de penser, tout est perdu".
7 Pensemos, por um momento, no capitalismo, entendido, muito sumariamente, como
propriedade privada dos meios de produção mais mercado: a primeira
circunstância, essa peculiar distribuição (e acumulação) dos direitos de
propriedade, carrega consigo importantes implicações distributivas e de
relações de poder; a segunda propicia uns determinados dispositivos
motivacionais ( a desigualdade como estímulo produtivo, o egoísmo) que operam
como combustível social. Tudo isso tem consequências relevantes para os
vínculos sociais de comunidade, de autoridade e de igualdade: a) o mercado
opera sobre um transfundo motivacional egoísta que atenta contra valores ou
disposições emocionais como a confiança, a lealdade, a compaixão e a
generosidade, que constituem o cimento da comunidade política e cuja relevância
para a boa sociedade é, seguramente, superior á importância das virtudes
supostamente favorecidas pelo comércio; b) no mercado a participação nas
tarefas coletivas é puramente instrumental e com consequências
anti-igualitárias: opera segundo um princípio regulador do comportamento que
mina a coesão comunitária e que, sem embargo, se associa á eficiência
econômica; c) a acumulação da propriedade privada dos meios de produção
constitui um importante fator da (desigual) distribuição de poder e da
capacidade discricional em uma determinada comunidade; e, por fim, d) em um
mercado de corte capitalista, inclusive no mais perfeito, as desigualdades de
recursos acabam em desigualdades de riqueza que, de diversas formas, atentam
contra os vínculos sociais de igualdade (por exemplo, a igualdade de
participação e influência política). Em resumo, o capitalismo carrega consigo
um enorme potencial para acabar por complicar a realização dos melhores lados
dos vínculos sociais de comunidade e de igualdade: seus dispositivos
motivacionais socavam o cenário comunitário; a desigualdade desde a qual
funciona atenta imediatamente contra a igualdade de poder e, não menos, contra
o sentimento de fraternidade e de cooperação; as relações de produção que por
vezes o definem tornam improvável o autogoverno pessoal e propiciam a
arbitrariedade e o despotismo - isto é, fomentam a desigualdade social.
8 Isto implica, desde logo, o pressuposto "inclusivista" de que todos os
indivíduos têm de contar por um, e nenhum por mais de um - o pressuposto que
distingue a concepção de um genuíno republicanismo de suas variantes modernas-,
e que incorpora já uma sorte de compromisso igualitário: significa que a comunidade
política é requerida não somente para tratar os indivíduos como iguais, senão
também para criar as condições necessárias e as possibilidades reais para que
essa igualdade seja ( efetivamente) levada a cabo. Dito de outro modo, uma
concepção republicana democrática terá de ser também "inclusiva", dar espaço
para que gentes procedentes de todos os rincões da sociedade possam impugnar as
decisões legislativas, executivas e judiciais. Este requisito significa que o
Estado terá de ser representativo de diferentes setores da população, que os
canais de disputa terão de estar bem estabelecidos na comunidade e que o Estado
terá de se guardar da influência das organizações empresariais e de outros
interesses poderosos (Pettit).
Autor:
Atahualpa Fernandez
Atahualpa Fernandez Bisneto
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