Todo professor de ética, ou de filosofia jurídica, moral e política seguramente já se encontrou em alguma ocasião assediado e angustiado pelas inquietudes de estar ensinando algo que tem pouco a ver com o "mundo real". A oportuna , cuidadosa e por vezes necessária distinção entre ser e dever-ser leva, com frequência , a este particular tipo de esquizofrenia. Por exemplo, um assunto em especial faz com que isso suceda com certa e virtuosa reiteração: o problema da desigualdade social.
De fato, a constância com que se fala da desigualdade social faz com que nos
olvidemos de acentuar o fato empírico de seu acelerado crescimento, de expor
suas causas e origens, de ponderar suas consequências e, mais ainda, de refutar
as falsas e falaciosas justificações ideológicas oferecidas pelos habituais
peritos em legitimação. Na mesma medida, também nos esforçamos em esquecer e/ou
dissimular o fato de que a desigualdade - seja lá de que forma seja medida -
parece galopar de maneira desregrada e sem rendas tanto a escala planetária
como local, tanto em países pobres como nos ricos. Com efeito, já faz algum
tempo que, sobre essa questão, se rebaixou o nível do social, do ético e do
esteticamente tolerável. A extrema desigualdade está fazendo desse nosso mundo
um lugar instável, reprovável e feio: nunca na história da humanidade houve tão
poucos ricos e nem tantos pobres tão pobres1.
E isso é mau ao menos pelas seguintes razões de conseqüência : primeiro, porque torna extremamente
vulneráveis, e em grau diverso, a amplíssimas capas subalternas da sociedade. E
com a vulnerabilidade vem a dependência, com a dependência a falta de liberdade
e com a falta de liberdade, em grau diverso, a condição servil e a perda do
auto-respeito2. Segundo, porque põe em mãos de uns poucos poderes e
recursos desmedidos que podem direcionar e condicionar o processo político do
lado de seus interesses privilegiados, socavando assim toda esperança de
democracia real e quebrando a igualdade política que subjaz ao ideal de
cidadania.
Finalmente, a desigualdade extrema entre ricos e pobres (entendidos estes em
sentido amplo) quebra a comunidade, rompe os laços de fraternidade e desata, de
um lado, a cobiça de uns poucos e, de outro, quando não a inveja e o
ressentimento, sempre ao menos a frustração, e muitas, muitas vezes, a angústia
e o desespero de muitos.
Pese a estas razões - que por si já seriam bastantes para se insistir nessa
estratégia sócio-adaptativa chamada igualdade - não faltam as justificações da
desigualdade. Trataremos apenas de duas. A primeira delas vem a dizer que a gente têm o que merece. Assim como o
rico merece sua riqueza, prêmio por seu empreendedor dinamismo , o pobre - por
sua falta de aptidão e esforço - merece o seu oposto destino social. Assim como
o leal e eficiente trabalhador merece conservar seu emprego, assim aquele que o
perde merece o escarmento do desemprego , situação na qual merecerá permanecer
se não mostra suficiente capacidade e boa disposição para a busca ativa de
outro emprego. Afinal, oportunidades não faltam, somente há que saber
buscá-las.
Esta justificação meritocrática da desigualdade é tão demagogicamente falsa como certo é o fato de que ninguém
merece moralmente nem seu azar genético nem seu azar social, de por si muito
desigualmente distribuídos. Ninguém merece moralmente a família que lhe tocou ,
por sorte, nascer ( rica ou pobre, decente ou depravada) e nem , tão pouco, as
oportunidades - favoráveis ou não - que essa família possa vir a brindar-lhe.
E o mesmo cabe dizer dos talentos - poucos ou muitos- com que um determinado
indivíduo vem ao mundo: ninguém os merece moralmente (já que não temos a
escolha de nós mesmos, isto é, não elegemos as conseqüências dos azares
biológicos, da "loteria cortical"3 ou sócio-econômicos de que somos
"vítimas"). Se é verdade que a justiça aspira a contra-arrestar os caprichos do
azar - social e genético -, pouco justo será permitir que os indivíduos gozem
sem regras nem freios de seus imerecidos diferenciais de oportunidade, que esse
azar lhes põe de bandeja. A distribuição das dotações sociais e genéticas -
como não deixou de advertir John Rawls - correspondem a um ativo comum da sociedade, ainda que
somente seja porque é a sociedade quem as premia e valora ou porque somente em
seu seio podem ser exercidas.
A segunda mais comum justificação da desigualdade a converte no necessário preço da liberdade. Em um
mundo regido pelo livre mercado e assentado no sacrossanto princípio da
liberdade de eleição, um Estado intervencionista poderia impor políticas
redistributivas e regulamentações igualitaristas , mas somente o lograria a
base de cercear essa mesma liberdade individual, a base de recortar e limitar a
opções sobre as que se pode exercer essa "intocável" liberdade de eleição.
Este argumento é tão demagogicamente falso como certo é o fato de que a
desigualdade implica ela mesma uma falta de liberdade , tanto mais profunda
quanto mais dramática seja essa desigualdade. Porque falta de liberdade - de
decidir, de fazer e ainda de rechaçar e resistir - é o que tem o trabalhador
assalariado que apenas chega ao fim do mês e não sabe se amanhã conservará o
seu emprego; é o que (ainda) sofrem todas as mulheres submetidas ao marido e
todas aquelas desfavorecidas e discriminadas em grande parte de suas cotidianas
oportunidades de vida; é o que (ainda) padece o homossexual que suporta o
estigma social da dependência de valores arcaicos e paroquianamente espúrios.
Falta de liberdade é o que tem o pobre, que depende da exígua caridade de seus
congêneres. Falta de liberdade é o que sofre o subordinado - na hierarquia de
uma empresa, por exemplo - porque necessidades e desejos vitais para ele
dependem da vontade de seu superior. Falta de liberdade, enfim, é o que padece
aquele que vive (ou sobrevive) com o permisso de outro. Por onde se vê , o
mundo contemporâneo, porque distribui de forma tão grosseiramente desigual
recursos, oportunidades e riqueza, padece de um profundo e crônico problema de
falta de liberdade.
E nem que dizer que em um contexto de desigualdade está sempre aberta a
possibilidade de que alguém reclame, para si e para os seus, o monopólio da
excelência, ou - também - de que alguém se arrogue a faculdade de restringir a
seu antojo o abanico das excelências humanas4.
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