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Desarquivamento da investigação preliminar (página 2)

Bernardo Montalvão Varjão de Azevedo

Diz-se que o legislador optou pelo arquivamento judicial a fim de que, com a independência de que goza o Poder Judiciário, haja um rigoroso controle sobre o não exercício da ação pública. Com este escopo, introduziu-se o Juiz na fase pré-processual, outorgando-lhe esta função anômala de caráter persecutório. Em outras palavras: o sistema é no sentido de fortalecer a persecutio criminis injuditio.

A propósito, como ressalta o Profº Afrânio Silva Jardim[11], não existisse tal obrigatoriedade de se intentar a ação penal pública, este controle não teria o menor sentido, já que, em tal caso, a persecução criminal ficaria a depender exclusivamente da discricionariedade do dominus litis, em razão do princípio da oportunidade.  

Destarte, o que a lei deseja é evitar, ao máximo, arquivamentos em casos em que a ação penal pública se apresente viável, fortalecendo-se a atividade persecutória estatal. No arquivamento, a função do Juiz é tão-somente de fiscalizar o possível descumprimento da obrigatoriedade da ação, submetendo, nesse caso, ao Procurador-Geral a opinio delicti formulada pelo Promotor de Justiça.

Em sendo assim, como sustenta o Profº Afrânio Silva Jardim[12], não é necessário submeter ao Juiz qualquer requerimento de desarquivamento, vez que, agora, a situação é absolutamente inversa. A retomada das investigações em decorrência de "notícia de novas provas" em nada prejudicará ou debilitará a atividade persecutória do Estado.

Note-se que o arquivamento é uma decisão rebus sic stantibus e, por conseguinte, não ficará infirmada ou desrespeitada pelo desarquivamento resultante de fato novo. Vale lembrar, arquiva-se porque não há base para o oferecimento da denúncia e inexiste diligência a ser realizada, desarquiva-se porque surgiram novas "pistas", ou melhor, notícias de novas provas. Agora, se estas novas diligências darão lastro probatório á instauração de futura ação penal, isto é questão a ser examinada pelo Juiz ao receber ou rejeitar a denúncia, neste último caso, por falta de justa causa (CPP, art. 43, inciso III).

De outro modo, caso o desarquivamento tivesse de ser submetido ao Juiz, ter-se-ia uma indevida intervenção do Poder Judiciário em uma mera investigação policial-administrativa, de natureza inquisitória. O Estado-Administração, antes mesmo de manifestar sua pretensão punitiva em Juízo, ficaria coibido de preparar-se para fazê-lo. Seria mais uma função anômala (não jurisdicional) a ser outorgada ao Juiz, prejudicando, dessa forma, como destaca o Profº Afrânio Silva Jardim,[13] a sua indispensável neutralidade e imparcialidade. E, o que é pior, dessa decisão do Juiz não caberia recurso.  

Anote-se, ainda, que, com muita mais razão, não pode o Juiz decidir pelo desarquivamento de ofício. Se, é certo que não pode fazê-lo mediante provocação do Ministério Público, sem ela a matéria se torna indiscutível, segundo o citado professor[14]. Observe-se que o Projeto, em prol da pureza do sistema acusatório[15], retira do Juiz o próprio poder de requisitar a instauração de inquéritos policiais. Assim, pelo Projeto, não poderá o Juiz requisitar a retomada das diligências, desarquivando inquéritos policiais, não se devendo, portanto, sequer falar em requerimento do Ministério Público dirigido á autoridade judiciária[16].

Saliente-se, mais uma vez, que o Juiz poderá sempre rejeitar a futura denúncia do Ministério Público, com espeque no inquérito policial desarquivado, se ela não tiver arrimada em novas provas. Mas, para que estas novas provas sejam apresentadas, urge se permita reativar as investigações, através do desarquivamento, diante de "notícia" de novas provas (CPP, art. 18; Proj. do CPP, art. 107, § 1º).

Tal controle judicial sobre o regular exercício da ação penal também há de ser feito nos casos de aditamento á denúncia que importe no desarquivamento do que ficou expressa ou implicitamente arquivado[17]. Nesta hipótese de desarquivamento através de aditamento á denúncia, fica patente que o seu sujeito é o Ministério Público.

Por tudo isso, o Profº Afrânio Silva Jardim defende que o desarquivamento deve decorrer de uma decisão do Ministério Público, fundada em notícias de novas provas e mediante requisição de diligências específicas á autoridade policial. Se as novas provas já estiverem produzidas, somente restará apresentar a denúncia, a qual será apreciada pelo Juiz.

Embora o artigo 18 não condicione a retomada das diligências ao pronunciamento do Ministério Público, para o Profº Afrânio Silva Jardim, se afigura indesejável, e até mesmo impraticável, que a autoridade policial continue na prática de atos de inquérito enquanto os respectivos autos estiverem arquivados em Juízo a requerimento do Ministério Público, titular do direito de ação, pois, se assim fosse, força é convir que se acabaria por macular o sistema acusatório[18], adotado no artigo 129, inciso I, da Constituição Federal. Aliás, é esse o espírito do Projeto do Novo Código de Processo Penal, conforme se vê nos artigos 107, § 1º e 538, § 1º.

A questão relativa á atribuição do órgão do Ministério Público para realizar o desarquivamento há de ser resolvida pelas respectivas leis orgânicas estaduais. Se estas nada dispuserem, tanto os Promotores de Justiça como o Procurador-Geral terão atribuição para promover o desarquivamento. Caso ele tenha decorrido de manifestação do Chefe do Parquet, nos termos da parte final do artigo 28, somente ele deverá ter atribuição, segundo o Profº Afrânio Silva Jardim[19], para determinar a reativação do inquérito, por uma questão de mera hierarquia institucional.

No estado do Rio de Janeiro, a Lei Complementar nº28/82, através de seu artigo 10, inciso XXXIII, diz ser atribuição do Procurador-Geral de Justiça "requisitar autos arquivados, promover seu desarquivamento e, se for o caso, oferecer denúncia ou designar outro Órgão do Ministério Público para fazê-lo". Diante da redação da aludida norma, no Estado do Rio de Janeiro a atribuição é exclusiva, ou não concorrente, do Chefe do Ministério Público Estadual.

3. Causas do desarquivamento

Resta examinar, ainda, as causas que legitimam o desarquivamento, seja do inquérito policial, seja das peças de informação.  

Insta salientar, por derradeiro, que é curial que tais causas hão de variar segundo o motivo ensejador do arquivamento[20]. Desde logo, entretanto, segundo o Profº Afrânio Silva Jardim[21], afasta-se a incidência da súmula nº524 do STF, pois ela regula não o desarquivamento, como foi dito linhas atrás, mas, tão-somente, o regular exercício da ação penal baseada em inquérito arquivado.

Desta forma, aplica-se o artigo 18 do Código Procedimental para a hipótese de desarquivamento decorrente de carência de prova, ou seja, "falta de base para denúncia". Portanto, este desarquivamento somente poderá, segundo o citado professor[22], ocorrer "se de novas provas se tiver notícia". Basta a notícia de novas provas, devendo estas serem produzidas após o desarquivamento. Isto vale também para o Projeto, tendo em vista a regra do artigo 107, § 1º.

Se o arquivamento tiver se baseado em mera valoração jurídica dos fatos demonstrados no inquérito ou peças de informação, logicamente não tem cabimento se exigir notícia ou mesmo a demonstração de novas provas. Neste caso, o arquivamento não se deu por insuficiência do conjunto probatório, mas pela redução dos fatos provados a tipos jurídicos, na feliz expressão de Eduardo Couture[23].

Assim, tendo havido simples erro de subsunção, á míngua de vedação legal ou existência de previsão de qualquer outro requisito, o desarquivamento se fará, segundo o Profº Afrânio Silva Jardim[24], independentemente de qualquer outra causa que não o novo exame jurídico do resultado das investigações, tendo em vista o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública. In casu, porque não se precisa de qualquer outra prova, ao desarquivamento se sucederá imediatamente o oferecimento da denúncia, dando ensejo ao magistrado á formulação de seu juízo preliminar sobre a admissibilidade[25] da acusação, á luz do que dispõe o artigo 43 do Código de Ritos.

Pode ocorrer ainda que o arquivamento tenha decorrido de uma avaliação jurídica correta de um fato errôneo ou falso. Não há, nesse caso, insuficiência de prova, mas prova inverídica[26]. Diante de tal situação, como afirma o Profº Afrânio Silva Jardim[27], aplica-se a solução apresentada para a primeira hipótese: havendo notícia de prova que invalide aquela constante dos autos, procede-se ao desarquivamento para realização das diligências necessárias á produção da nova prova que infirmará a falsa. Quando da propositura da ação penal, caberá ao Juiz examinar normalmente a admissibilidade da acusação.

Todas essas considerações valem para o desarquivamento realizado através de aditamento á denúncia oferecida e que importe em arquivamento expresso ou implícito em relação ao que nela não ficou imputado. Se forem necessárias novas investigações, pois apenas a instrução criminal deu notícias de novas provas, deve o Ministério Público requisitá-las á autoridade policial para depois, se for o caso, realizar o aditamento com as necessárias novas provas, tendo em vista a súmula nº524 do STF.

3.1. Jurisprudência

<span style=font-size:10.0pt; font-family:"verdana">DESARQUIVAMENTO. "HABEAS CORPUS" (STF): "Arquivamento. Novo indiciamento requerido pelo Ministério Público em relação ao mesmo delito, fundado em novas provas. Material probatório constituído unicamente de elementos já versados no feito anterior. Habeas Corpus concedido para o trancamento do segundo inquérito. Aplicação da súmula nº524" (RT, 646/334)[28].

4. Retomada das investigações

Apesar de o presente assunto já ter sido explicado linhas atrás, tomando por base a lição do Profº Afrânio Silva Jardim, cabe, agora, expor as controvérsias que há acerca da matéria, de maneira que se possa ter uma visão, ainda que superficial, dos posicionamentos doutrinários em torno da questão.

Insta responder, por primeiro, a seguinte indagação: pode a autoridade policial, obtendo notícia de novas provas, realizar as diligências de ofício ou tem que aguardar prévia decisão do Ministério Público? Trata-se de questão polêmica na doutrina.

Para uma primeira corrente, há necessidade de prévia autorização do Parquet. Nesta linha, a autoridade policial deveria representar ao Ministério Público pelo desarquivamento, vez que com a promulgação da Constituição Federal de 1988 a titularidade para dar início e movimento a persecução criminal foi conferida exclusivamente ao Ministério Público[29], face á imposição do sistema acusatório[30][31] (CF, art. 129, inciso I) e, sendo assim, tanto a autoridade policial quanto a judiciária não têm mais qualquer atribuição para dar início á persecutio criminis. Nesse sentido é a lição do Profº Afrânio Silva Jardim e outros[32].

Ademais, exercendo o Ministério Público o controle externo das atividades policiais, conforme impõe a Constituição Federal (CF, art. 129, VII), seria de todo estranho admitir que a autoridade policial possa desarquivar os autos do inquérito, que foram arquivados mediante requerimento do Parquet, sem antes dirigir representação a este.  

Além disso, em se concordando com o posicionamento da doutrina que defende a atribuição da autoridade policial para desarquivar os autos do inquérito de ofício, acabar-se-ia por incorrer, a um só tempo, em três equívocos. Primeiro, restaria ofendido o princípio da simetria das decisões (princípio que impõe que uma decisão somente poderá ser desconstituída por outra decisão emanada pela mesma autoridade que a tenha prolatado ou por autoridade que lhe seja hierarquicamente superior), pois a decisão da autoridade policial poderia, desta forma, desconstituir a decisão da autoridade judiciária ou do Chefe do Ministério Público.

Segundo, o de se permitir á autoridade policial que desarquive o que não pode sequer arquivar[33] (CPP, art. 17). E, terceiro, o de tornar tal desarquivamento, caso pudesse ser feito, totalmente inútil e oneroso, uma vez que as novas investigações policiais, caso o Ministério Público entendesse pela manutenção do arquivamento, restariam frustradas, apesar de já terem demandado despesa para os cofres públicos[34]. Vale dizer, tal atribuição da autoridade policial, caso se admita, é antes de tudo ofensiva ao princípio da economia processual[35]. 

Todavia, outra parte da doutrina, entre eles o Profº Julio Fabbrini Mirabete[36], o Profº Fernando da Costa Tourinho Filho[37] e Fernando Capez[38], entende que a autoridade policial deve atuar de ofício, independentemente de autorização do Parquet, vez que tanto o artigo 18 do Código de Processo Penal não determina tal decisão prévia como a decisão de arquivamento não faz coisa julgada, além de que essa exigência poderá redundar na frustração das investigações policiais, já que estas poderão acabar prejudicadas com a falta de celeridade e excesso de formalismo de tal imposição.

<span style=font-size:10.0pt; font-family:"verdana">Para os defensores de tal entendimento, a autoridade policial poderá, no caso do inquérito ter sido arquivado por falta de provas, proceder a novas diligências, enquanto não extinguir a punibilidade pela prescrição[39][40] (CP, art. 109 e 107, IV).

Rompendo com a lacônica do atual Código de Processo Penal, que provoca todas as discussões, há pouco apontadas, acerca do assunto, a Comissão de Reforma do Código de Processo Penal, procurando conciliar as duas posições doutrinárias, apresentou o seguinte teor ao seu artigo 18:

"Art. 18. Arquivados os autos da investigação, por falta de base para a denúncia, havendo notícia de outras provas e não o obstando a promoção de arquivamento, a autoridade policial deverá proceder a novas diligências, de ofício ou mediante requisição do Ministério Público"[41].


Notas de rodapé do autor e referências bibliográficas

[1]JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Penal. Forense, 9ª ed., 2000, Rio de Janeiro, p.173.

[2] Ob. Cit. p. 173.

[3] Ob. Cit. p. 173.

[4] Ob. Cit. p. 173.

[5] Ob. Cit. p. 174.

[6] Ob. Cit. p. 174.

[7] Ob. Cit. p. 174.

[8] Ob. Cit. p. 174.

[9] Ob. Cit. pp. 174-175.

[10] Ob. Cit. p. 175.

[11] Ob. Cit. p. 175.

[12] Ob. Cit. p. 175.

[13] Ob. Cit. p. 175.

[14] Ob. Cit. p. 175.

[15] PRADO, Geraldo. Sistema acusatório no processo penal, Lúmen Júris, 2000.

[16] SIQUEIRA, Geraldo Batista. Estudos de Direito Processual Penal, Rio de Janeiro, Forense, 1988.

[17] ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado, vol. 1º, Editor Borsoi, Rio de janeiro, 1960. 

[18] TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. Tese. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1993.

[19] Ob. Cit p.176.

[20] LIMA, Marcellus Polastri. Ministério Público e persecução criminal.Lúmen Júris. 2000.

[21] Ob. Cit pp.176-177.

[22] Ob. Cit. p. 177.

[23] COUTURE, Eduardo. Fundamentos Del derecho proceso civil,Buenos Aires, Depalma, 1976, 3ª Reimpressão da 3ª ed.

[24] Ob. Cit. p. 177.

[25] GRINOVER, Ada Pellegrini. "Pressupostos processuais e processo penal", in O processo penal em sua unidade I, 1978.

[26] CARNELUTTI, Francesco. Princípios del proceso penal.Buenos Aires, EJEA, 1971, trad. Sentis Melendo.

[27] Ob. Cit. p. 177.

[28] CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. Saraiva, 1998.

[29] LIMA, Marcellus Polastri. Ministério Público e persecução criminal.Lúmen Júris. 2000.

[30] SCARANCE FERNANDES, Antônio. Processo Penal Constitucional. RT, 1999, São Paulo.

[31] PRADO, Geraldo. Sistema acusatório no processo penal, Lúmen Júris, 2000.

[32]LOPES JR., Aury Celso. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. Lúmen Júris. Rio de Janeiro.2002.

[32] Ob.Cit. pp. 458-462.

[33] MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal, 2ª ed., Forense, v.1.

[34] ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado, vol. 1º, Editor Borsoi, Rio de janeiro, 1960. 

[35] ARAÚJO CINTRA, GRINOVER E DINAMARCO. Teoria geral do processo, 13ª.

[36] MIRABETE, Julio Fabbrini. Código de Processo Penal interpretado.Atlas,, 2ª ed., 1994, p.35

[37] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. Vol. 1, 20 ª ed., São Paulo, Saraiva.

[38] CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. Saraiva, 1998.

[39]  JESUS, Damásio Evangelista. Código de Processo Penal Interpretado. Saraiva. São Paulo.

[40] GRECO FILHO, Vicente. Processo  penal. Saraiva São Paulo.

[41] Projeto do Novo Código de Processo Penal que está tramitando no Congresso Nacional, cuja Comissão Organizadora é presidida pela Profª Ada Pellegrini Grinover.(projeto de lei nº01 de junho de 2000).



Autor:

Bernardo Montalvão Varjão de Azevedo

bernardomontalvao[arroba]hotmail.com



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