A dança da metamorfose



Conferência sobre María Zambrano.

Nunca compreendi o que era estar no tempo, o que era mudar, o que é agir. Sinto-me bem a moldar a metamorfose.

 Maria Gabriela Llansol, Lisboaleipzig1, o encontro inesperado do Diverso, editora Rolim, Lisboa, 1994, p. 25.

Incorpórea, a claridade da manhã dança. Quem não terá visto na claridade da manhã, na dança perfeita que é a metamorfose, uma pluralidade de figuras que, desenhadas e desdenhadas, não se corporizam, transformando-se infatigavelmente? Nascem e desfazem-se, enlaçam-se e retiram-se; escondem-se para reaparecer como faz o homem a jogar quando é criança, ou quando joga com esses jogos em que a infância se eterniza.

María Zambrano, O Homem e o Divino, p.41.

Para Eduardo Prado Coelho, o mais suave amigo

é próprio dos que pensam poeticamente a sua confiança na potência da linguagem e nos seus efeitos, a qual é conquistada pela experiência constante dos seus movimentos metamórficos e pela crença da inesgotabilidade da linguagem. E o que se abandona ao exercício da linguagem poética sabe que exerce sobre os outros uma permanente inquietação, uma desestabilização que advém da impossibilidade de antecipar a compreensão do objecto. Da mesma forma que respirar é um gesto desigual, marcado pela irregularidade do fôlego e, apesar de apenas retermos dela a sua continuidade, aquele que escreve conhece bem a hesitação íntima, o recuo e o avanço, a paragem e a suspensão do pensamento ou, ainda, o abismo do indizível, o silêncio que tece, no seu movimento oculto, toda a reflexão. Esse é o estranho lugar onde se dá o encontro com o pensamento de María Zambrano. Sem dúvida inquietante e perturbadora, a escrita desta autora entranha-se na pele, arrasta o leitor, seduzindo-o, também, pela intensa carga poética da sua linguagem. Nela, as imagens convocam a clareza do pensamento, desafiando o leitor ao diálogo permanente.

Fundam-se, assim, os lugares da linguagem, que irrompem, como o fluxo da razão poética na sua escrita, imagens e conceitos entrelaçados que possibilitam a criação de novas topologias. A linguagem aparece como a desvelação do mundo, sinal e abertura, urgência do sentido. Neste umbral do pensamento e da poesia encontramo-nos suportados e, ao mesmo tempo, suspensos, adiados pela linguagem, pelo seu poder metamórfico. Vivificadora do pensamento filosófico, a poesia é a voz matricial que cava o seu sulco na sua linguagem. E, mais do que uma apresentação do mundo, a sua filosofia constitui-se como uma visão da linguagem, o fio condutor que percorre toda a sua obra.

Posicionando-se de forma crítica face ao pensamento moderno e ao naufrágio da esperança moderna, o que ressalta é o profundo amor que María Zambrano devota às coisas, numa tarefa de devolver à matéria e a tudo o que nos rodeia a sua voz, a sua fala íntima, num recuo até ao contacto primitivo, arcaico. Trata-se, como compreenderemos ao longo desta comunicação, de habitar a linguagem, de construir nela a morada do pensamento e da vida, em simultâneo, distanciando-se de um ponto de vista estritamente objectivo e redutor do pensamento, para volver a um estado originário da palavra e do pensamento, em que a violência do gesto filosófico ainda não escavara a sua fractura.

Se habitar a linguagem ou procurar a clareira do bosque[1] é, sem dúvida, a vocação primordial do escritor, ele sabe, no entanto, que se submete ao perigo, abandonando-se às flutuações, detendo-se no limiar na escuridão, onde apenas tem acesso a fugidias sombras, questionando-se permanentemente sobre o que o espera. Nesse arrebatamento que lhe é próprio, assume a sua força, assim como as suas contradições e os limites. Ele conhece profundamente o modo como lhe resistem essas potências e tensões não domesticadas da linguagem, sabe como pode sucumbir à vertigem da luta com o anjo, arriscando-se à perda de si e ao embate com as resistências do pensamento e da linguagem.

Como Zambrano o afirma[2], "a clareira do bosque é um centro onde nem sempre é possível entrar; da extrema olha-se para ela e o aparecimento de algumas pegadas de animais não ajuda a dar esse passo. é outro reino que uma alma habita e guarda." Tem-se dela um conjunto de indícios: pegadas de animais, o grito de um pássaro, um segredo que o bosque guarda, no seu silêncio. Todas as perguntas que se fazem, na veloz perseguição desse centro, se quedam inúteis. A procura revela-se, também ela, sem efeito. é preciso estar atento, aberto à escuta, suspender o conhecimento objectivo, suspender as imagens, os conceitos, para que a voz, a voz descontínua, sem tempo, o leve a um tal lugar sagrado. Onde a respiração leve da luz o conduza e lhe dê guarida, perto do coração animal.

Da mesma forma, escrever é, como o diz a autora, "descobrir um segredo e comunicá-lo". E este segredo revela-se ao escritor visitando-o, na sua solidão incomensurável. Porém, "o segredo revelado" permanece no seu enigma, não se torna mais explícito[3], pelo facto de ser revelado. é, todavia, o destino do escritor, "aquele que tropeça primeiro na verdade", mostrar aos outros, para que a decifração possa nascer desse enigma. Trata-se, assim, de um puro acto de fé e de fidelidade, nascido da solidão daquele que escreve.[4] Deste modo, é necessário percorrer um trilho oculto no corpo da linguagem e, ao mesmo tempo, necessário perceber o modo como a voz visita inesperadamente o pensamento. é, ainda, preciso acreditar que um dia ela há de encontrar a justeza da palavra, do modo de dizer, resgatando as coisas ao silêncio da matéria. E essa fidelidade, a mais elevada capacidade de resgatar o traço ou vestígio mínimo, reclama a purificação das paixões e da vaidade, desfiguradora da verdade[5].


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