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O conflito entre vontade geral e vontade de todos – ou do risco da guerra civil em J.-J. Rousseau (página 2)

André Barata

Esta mesma questão é um manifesto sintoma da actualidade do pensamento do Rousseau, pois se há hoje teste á maturidade das democracias ocidentais passará com certeza pela capacidade de salvaguardar minorias do efeito de maiorias, imprimir condicionamentos que atendam ao protesto da verdade, por mais difícil que seja determinar o estatuto desta em política, face ao acto sagrado da democracia - o voto. Fenómenos como o eleitoralismo, o populismo, a convergência imediata e desordenada de vontades, a demagogia, em suma, o que classificaríamos genericamente sob a categoria de "tirania das maiorias" são hoje efeitos contra os quais as democracias devem procurar soluções. Expor esta actualidade de Rousseau, até pela sua feição contraditória, é outro dos nossos objectivos.

Por fim, como terceiro e último objectivo, procuraremos articular, na esteira de Arendt, uma condição bélica no cidadão como garantia última contra a precariedade da vontade geral rousseauniana, mas também, indo bem além de Arendt, da própria ideia de democracia.

Que formulação apresenta, pois, Rousseau, para um pacto social que respeite a moldura que o direito natural impõe, ou seja, um pacto capaz de realizar uma alternativa quer ao cenário de destruição do homem no 'estado natural', quer á submissão sem limites, sem salvaguarda da liberdade, do cidadão? Eis a conhecida fórmula do contrato:

Cada um de nós põe em comum a sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema direcção da vontade geral; e nós recebemos em corpo cada membro como parte indivisível do todo.

A análise deste contrato revela três momentos consecutivos: o da alienação da pessoa de cada um e das suas posses; o da formação da vontade geral, pessoa abstracta que assume a soberania; e o da recuperação a título legal de tudo aquilo que cada um havia alienado, sejam as suas posses seja a sua pessoa, dando a posse de cada um lugar á propriedade legal, isto é, ao reconhecimento pelos outros e pela comunidade civil em geral das suas posses. De que modo podem estes três momentos determinar uma associação em que a pessoa e os bens de cada associado sejam protegidos da força comum? Simplesmente porque, apesar da instituição de uma autoridade soberana, todos os súbditos permanecem tão livres quanto dantes; a liberdade natural converte-se - eis o momento engenhoso do argumento de Rousseau - numa liberdade civil, sem nada perder; pelo contrário, ganhando o reconhecimento dos outros que participam da mesma comunidade. Não se sacrifica, pois, a liberdade do cidadão á submissão ao súbdito.

Mas bastará de facto esta forma de associação, este pacto social, para que fique salvaguardada a liberdade dos cidadãos, os direitos que os assistem quanto á posse de bens, e tudo o mais de que dispunham naturalmente, face aos perigos de sobreposição de uma força comum? E, mais latamente, aos perigos de dissolução do nó social, da perda de uma posição de paz em troca de uma de guerra? Note-se que, para Rousseau, há um vínculo profundo entre estas duas questões - a sobreposição da força comum sobre os particulares representa, por si só, em termos que esclareceremos adiante, uma destituição da legitimidade do pacto social, pelo que, nessas circunstâncias, e face a ele, não será menos ilegítima a posição de guerra civil. 

 A nossa proposta de resposta a estas questões é tríplice:

1.      A fórmula do pacto mostra-se claramente insuficiente. Vê-lo-emos a respeito da noção de interesse comum e da possibilidade de conflito entre este e o interesse particular. Donde, haver a necessidade de formular condicionamentos ao pacto.

2.      Os condicionamentos propostos por Rousseau mostrar-se-ão, porém, contrários, por vezes contraditórios, com o desígnio que almejavam cumprir. Veremos que assim é com os condicionamentos da indivisibilidade e da inalienabilidade da vontade geral.

3.      Não obstante, os mesmos condicionamentos, se lidos reflectidamente, expõem a nosso ver uma precariedade essencial aos regimes democráticos que, no limite, só encontra amparo na capacidade dos cidadãos em sustentar, no seu peito, uma ficção comum - a vontade geral. Vê-lo-emos, muito em particular, a partir da tematização rousseauniana do conflito entre vontade geral e vontade de todos e o estatuto do cidadão.

I. O Interesse Comum

Posto este trajecto, começaremos por explicitar a distinção entre interesses particulares e interesse comum. Tal como Rousseau no-lo apresenta, o interesse comum é em substância da mesma natureza que o interesse particular, no sentido em que resulta tão-só da abstracção do que nos múltiplos interesses particulares da multidão de vontades individuais envolvidas no acto do pacto permanece comum. Assim, o interesse comum identifica-se com aqueles interesses que, além de particulares, sucede serem comuns a todos as vontades contratantes. Por isso, de um ponto de vista lógico, é manifesto que o interesse comum não é mais do que o conjunto de interesses que resultam da intersecção de todos os conjuntos de interesses particulares de todos os indivíduos de uma comunidade. Obviamente, se o conjunto-intersecção fosse nulo não seria possível abstrair um interesse comum nem firmar uma Vontade Geral que o perseguisse. Sobre esta explicitação, Rousseau não se poderia ter exprimido de modo mais inequívoco:

(...) se a oposição dos interesses particulares tornou necessário o estabelecimento das sociedades, foi o acordo desses mesmos interesses que a tornou possível. é o que há de comum entre esses diferentes interesses que forma o laço social, e se não existe nenhum ponto no qual todos os interesses se acordem, nenhuma sociedade poderia existir. Ora, é unicamente sobre esse interesse comum que a sociedade deve ser governada.

Poder-se-ia concluir que, deste modo, o facto de, numa ou mais vontades, interesse comum e interesse particular entrarem em conflito só se explicaria nos termos de um equívoco. Ou sucederia o interesse que passa por comum não ser realmente comum a todas as vontades individuais, ou sucederia o interesse particular proclamado em certa ocasião por dada vontade não ser realmente um interesse seu. Mas esta conclusão não se sustém, pois os interesses particulares estão em constante transformação e, consequentemente, o interesse comum pode deixar de exprimir um interesse efectivo de todas as vontades. Mas não deveria o interesse comum, de acordo com a definição, transformar-se também ele de acordo com os novos interesses particulares? Em parte sim, se a expressão "interesse comum" continuar a significar o interesse que sucede ser comum ás vontades que se submeteram ao pacto. Contudo, a resposta também é parcialmente negativa e por uma razão, a nosso ver, inicialmente aceitável: embora nada impeça no contrato social que os pactuantes sejam volúveis e inconstantes quanto aos seus interesses particulares, não é o caso que sobre aquilo que pactuaram - o interesse comum - não seja razoável a exigência de um compromisso. E se contratar envolve, de algum modo, um acto de promessa acerca do objecto de contrato, no caso a estabilidade do conteúdo do interesse comum, então, ter-se-á que o interesse comum originalmente apurado pode, de facto, esvanecer-se em vontades particulares, e, mais importante, torna-se, de jure, exigível face ao compromisso assumido. Esse é justamente o ponto de Rousseau quando afirma que quem desobedecer á Vontade geral será constrangido por todo o corpo social e que tal não tem outro significado senão o de o forçar a ser livre.

Não obstante, se inicialmente se afigura razoável esta exigência de perseverança na Vontade geral, são diversas as dificuldades que rapidamente fazem com que Rousseau, permita-se a expressão, entre num terreno escorregadio. Desde logo, porque a formulação do pacto não envolve um outro em carne e osso, um segundo outorgante que se dê a ver em pessoa, mas tão-só uma abstracção, além do mais, ficcionada, provavelmente por cada um á sua maneira, como se fosse uma vontade. Assim, quem exige ao cidadão que persevere no interesse comum a que se obrigou não é ninguém, nem um outro cidadão, nem uma assembleia de cidadãos, mas algo cuja realidade senciente, porém, está em toda a parte. E, no entanto, de facto, quem exigirá e obrigará serão outros cidadãos, com os quais o desobediente nenhum contrato houvera celebrado. Todos e qualquer um, em pé de igualdade, estão em condições de denunciar um segundo e um terceiro, fazerem-se, digamos assim, ministros da verdade a respeito do interesse particular de cada vontade, juízes da verdade e da falsidade do interesse comum a todas as vontades.

 Esta ambivalência sobre quem pode exigir obediência torna-se tanto mais perniciosa quanto, como vimos, o interesse comum pode ele mesmo se transformar. E se Rousseau não nos dá critérios pelos quais possamos julgar da legitimidade do conteúdo do interesse comum originalmente contratado, menos nos dá a respeito do interesse comum transformado, das mediações formais que regulam a sua transformação. No limite, cruzando a indefinição em que Rousseau deixa as condições de obrigação dos cidadãos e a indefinição quanto aos procedimentos de legitimação do próprio interesse comum e sua transformação não é difícil ser-se conduzido a tal ponto que quem não acompanhe a transformação corre o risco de se tornar um desobediente, mesmo que cumpra com todo o zelo o interesse que havia contratado. E quem desobedece ás leis, quem as viola, cessa de ser membro do Estado. A sua existência e a do Estado tornam-se incompatíveis. Entre ambos, a relação será a mesma que a de inimigos em guerra. Em suma, nenhum interesse particular e nenhuma vontade particular estão a salvo!

Significará isto que Rousseau lançou as bases para o Terror e para a democracia totalitária? Seguindo exclusivamente a formulação do pacto, julgamos que sim. Mas, de forma alguma, o mesmo significa que os tenha legitimado. Pelo menos duas boas razões sustentam esta conclusão. Primeiramente, a motivação e a moldura do pacto afirmam, como já observámos, que a força comum não tem legitimidade para se sobrepor aos particulares; em segundo lugar, a possibilidade de desvio da vontade de todos face á vontade de geral é representada pelo próprio Rousseau como um risco inelidível, mas, ainda assim, condicionável.

Quanto á primeira razão, já verificámos como Rousseau, afinal, vem tolerar a sua contraditória em virtude da insuficiência do pacto. Com efeito, ao não determinar condições de legitimidade do conteúdo do interesse comum apurado, Rousseau acaba reduzindo a questão em torno da legitimidade, ou não, do interesse eleito ao simples facto de ser ou não comum ás vontades particulares.

Talvez por isso, Rousseau tenha sentido a necessidade de avançar com uma segunda razão, a saber, a distinção algo volátil entre Vontade geral e vontade de todos, sobre cuja discussão recai não só a valia, em particular, do projecto rousseauniano de direito político, mas também a condição, por assim dizer, intrinsecamente precária dos regimes que classificamos genericamente como democracias.

II. Vontade geral e vontade de todos

A distinção entre estas duas vontades é-nos dada sob a seguinte formulação:

Há muitas vezes uma diferença entre a vontade de todos e a vontade geral; esta só tem em vista o interesse comum, a outra tem em vista o interesse privado e é apenas uma soma de vontades particulares: mas retirem destas mesmas vontades os mais e os menos que se destroem entre si, e restará como soma de diferenças a vontade geral

Fazendo uso dos conceitos de 'intersecção' e de 'reunião', poderíamos ser tentados a distinguir a Vontade geral da vontade de todos, tomando a primeira como constituída a partir do conjunto-intersecção dos interesses individuais, como vimos, e a segunda como constituída a partir do conjunto-reunião dos mesmos interesses. No entanto, uma tal caracterização conduzir-nos-ia á consideração do conteúdo da Vontade geral como sendo parte do conteúdo da vontade de todos, o que não segue nem a letra nem o espírito do texto rousseauniano. é explícito nas palavras do genebrino que os conteúdos das duas vontades, a geral e a de todos, podem divergir; aliás, o risco de divergirem é mesmo objecto da sua preocupação teórico-política, pois é também o risco de fazer cessar o próprio pacto social.

Perguntar-se-á, então, de que outro modo se pode caracterizar a vontade de todos em contraste com a Vontade geral? A este propósito, uma nuance impõe-se. Rousseau não afirma que a vontade de todos consista na soma dos interesses particulares, mas, diversamente, na soma das vontades particulares. Faz realmente diferença esta diferença? Absolutamente, pois vontades particulares não exprimem necessariamente interesses particulares, nem, do mesmo modo, interesses comuns; exprimem tão-só interesses, podendo, contingentemente, dar-se o caso de nelas se discernir o que é particular do que é comum no interesse eleito. Por outras palavras, a vontade de todos originariamente diz respeito á totalidade das vontades individuais e só derivadamente ao interesse que elas elegem.

Nestes termos, a vontade de todos (bem como a da maioria) não está vinculada ao interesse comum, podendo, por isso, não o atender, sacrificando assim a Vontade geral; no limite, o próprio pacto. é esse o caso que Rousseau nos descreve:

Quando o nó social começa a afrouxar e o Estado a enfraquecer, quando os interesses particulares começam a fazer-se sentir e as pequenas sociedades a influir na grande, o interesse comum altera-se e encontra opositores, a unanimidade já não reina entre as vozes, a vontade geral já não é a vontade de todos, elevam-se contradições, debates e a melhor opinião já não passa sem disputas

Invertendo o ângulo de abordagem, a Vontade geral, por não poder deixar de se actualizar através da expressão das vontades individuais, depende sempre da vontade de todos (ou, ao menos, da maioria), esperando nesta a capacidade de preservar a atenção no interesse comum. Mas é justamente aqui que há uma situação de risco inelidível - a possibilidade permanente dos indivíduos elegerem outro interesse que não o comum, seja por se iludirem (e são muitas as estratégias de ilusão em política) seja por esquecerem a sua condição de cidadãos, suspendendo o estado civil, como que regressando ao estado de natureza. Desta forma, a contingência de uma dissensão entre a vontade de todos (ou da maioria) e a vontade geral não é mais do que a contingência de tudo aquilo que, pese embora a adesão maciça que possa obter no circunstancialismo da ocasião, ponha em causa o interesse comum e o próprio fundamento do contrato social. Neste sentido, a vontade de todos, quando desavinda da Vontade geral, pode ser entendida como o nome rousseauniano para fenómenos como o populismo e a demagogia, exemplificáveis nas democracias totalitárias, com o seu particular volutear revolucionário, mas também, a seu modo é certo, nas nossas hodiernas democracias ocidentais cada vez mais massificadas e "mediacratizadas". Se a tirania das maiorias pôde conduzir aos totalitarismos de feição aparentemente democrática, hoje já extintos, não será por isso que deixam de constituir uma ameaça, aliás crescente, ás democracias que integramos. A nosso ver, com este conceito de vontade de todos, Rousseau deu conta da perpétua condição precária de uma Vontade geral assente na soberania popular. A condição da legitimidade da Vontade geral está na assunção do perigo inelidível da sua reversibilidade. Com este conceito de vontade de todos Rousseau terá identificado, arriscamos a generalização, a precariedade inerente ao regime democrático.

III. O Condicionamento do Pacto

Não obstante, face a esta inelidível precariedade - enquadrada no facto de a Vontade geral só ser elegível através de vontades particulares - Rousseau procura estabelecer um duplo condicionamento que salvaguarde a perenidade do contrato social e estabilidade da Vontade geral. Trata-se de uma ilegitimação do direito á representação política, por um lado, e de uma ilegitimação do direito á associação política, por outro. Ambas são ilegítimas, no juízo de Rousseau, porque anulam o próprio pacto social. Se este constitui uma Vontade geral enquanto pessoa subjectiva, ainda que abstracta, então tal vontade não se pode alienar - tal qual as vontades particulares, que, mesmo querendo, não podem renunciar á sua liberdade, a Vontade geral não pode renunciar a si mesma. Donde, a ilegitimação de uma vontade que se fizesse representar por outra. Por outro lado, não pode dividir-se pois só por absurdo se poderia ser conduzido a conceber uma pessoa que não fosse uma pessoa, subjectividade constituída qua unidade individual. Donde, a ilegitimação de uma vontade que se fragmentasse em vontades intermédias, resultado de associações políticas.

Note-se que, a admitir este condicionamento pela natureza subjectiva da Vontade geral, ele não pode ser considerado um mero suplemento ad hoc ao pacto. é condição de implementação do pacto. é claro que esta essencialização, por assim dizer, do condicionamento faz parte do engenho de Rousseau em conferir-lhe tanta legitimidade quanta a que se conferir ao pacto propriamente dito. Mas não é menos óbvio que a argumentação de Rousseau neste ponto depende estreitamente de uma caracterização bastante discutível da natureza da Vontade geral. Numa palavra, que a Vontade geral enquanto expressão do interesse comum das vontades particulares se diga uma vontade em sentido literal e não apenas metafórico é ponto que só muito arduamente, para não dizer nunca, seria sustentável.

Aliás, Rousseau tenta, designadamente no que respeita ao direito de associação política, uma outra argumentação bem menos insustentável, ainda que, como veremos, nem por isso legítima. Desta feita, tratar-se-á de um argumento de cariz sociológico. A partir da ideia de que o interesse comum será tanto mais fielmente expresso quanto maior for a fragmentação dos interesses particulares, Rousseau pronuncia-se pela inadmissibilidade de associações de cidadãos, cujas vontades constituiriam um meio-termo entre a vontade particular de cada um e a vontade geral da comunidade civil. Toda a associação dentro da comunidade significaria, a seu ver, um acto de divisão ou, pelo menos, um acto de enfraquecimento do nó social. Isto porque, se houvesse algo que instituísse um interesse comum ao nível de uma associação intermédia, tal entraria em competição, se não mesmo em conflito, com o interesse realmente comum a todos. A alegada ilegitimidade do direito de associação política resulta, pois, do facto, presumido por Rousseau, de que tal poria em causa o próprio pacto social.

Para demonstrar este resultado, Rousseau retoma a noção, mesmo que metafórica, de uma Vontade geral. Vimos atrás que a vontade de todos era o que se elege por unanimidade, ao passo que a Vontade geral, por princípio, se definia pelo interesse comum, isto é, pela abstracção do que é comum na multiplicidade de interesses particulares dos cidadãos. Vimos também que nada nos garante que a Vontade Geral seja eleita, como nada nos garante que o interesse eleito seja, de facto, o interesse comum. Como já dizia Francis Bacon noutro contexto, embora não tão longínquo do presente quanto poderá parecer, «...mesmo que todos os homens ensandecessem continuaria a ser perfeitamente possível o acordo entre eles.» (Novum Organum, afor. 27.) Portanto, para evitar os perigos de uma vontade de todos perdida e para privilegiar as condições de elegibilidade da Vontade geral, Rousseau expõe-nos o seu argumento:

Se, quando o povo suficientemente informado delibera, os cidadãos não têm nenhuma comunicação entre si, do grande número de pequenas diferenças resultaria sempre a vontade geral, e a deliberação seria sempre boa.

Note-se, desde já, que se Rousseau pensa, nesta comentadíssima passagem, a Vontade Geral como resultado de um "grande número de pequenas diferenças" e também, noutra passagem do mesmo capítulo, como resultado da "soma de diferenças", tal não significa que esteja a contradizer a definição de princípio, ou sequer a enunciar uma sua formulação alternativa. Apenas determina aquelas que julga serem as condições preferíveis para uma eleição da vontade geral, entendida tal qual a sua definição de princípio entende. Não está em causa o que ela seja, nem sequer como ela resulta, mas, muito incisivamente, como resulta melhor. Novamente, uma pequena diferença faz uma grande diferença - uma coisa é determinar os modos como dos interesses particulares, da dinâmica societária que entre estes se surpreende,  resulta um interesse comum; outra, bem diferente, é um trabalho de "engenharia" sobre os interesses particulares que os conforme a uma tal disposição que deles resulte como que por necessidade o interesse comum.

Ora, esta via propugnada por Rousseau só pode ser tomada como inaceitável, pois com ela o condicionamento desloca-se para o plano dos interesses particulares sobre os quais, porém, a esfera do poder político não deveria poder exercer qualquer condicionamento. A haver condicionamento legítimo teria de se situar numa posição in pactum, nunca numa posição ante pactum. Com efeito, aqueles interesses particulares que se aglutinam em torno de associações são historicamente anteriores ao pacto. Supor o contrário conduzir-nos-ia a uma concepção absurda do estado da natureza, segundo a qual nenhum tipo de articulação entre interesses particulares seria possível, desde os mais elementares como a sobrevivência individual e da espécie, como todos os que resultam da organização societária de modos de vida, modos de produção, etc. Mas esses mesmos interesses são também logicamente anteriores á formação do interesse comum; são a base, tanto quanto os interesses particulares individuais, para a formação do interesse comum. Limitá-los é limitar irremediavelmente uma justa representação da vontade geral. Mais do que isso é destituir aquilo a que hoje continuamos a chamar Sociedade Civil. De facto, se Rousseau visa garantir a elegibilidade da vontade geral logo no espaço dos interesses particulares, para aí impor inibições formais á iniciativa, designadamente á iniciativa de associação, não tolerando que haja outros interesses particulares que não os desarticulados interesses de cada cidadão por si, então é a sociedade civil o preço a pagar pelo resgate da estabilidade da vontade geral e de perenidade do contrato social. Ora, a simples pressuposição de que a comunidade, na sua vida económica, não envolvesse associações constituídas em torno de interesses particulares é, como vimos, totalmente infundada. Naturalmente, Rousseau sabe-o, o que não soube, digamos assim, foi prevenir-se de forçar a realidade a estar de acordo com as melhores condições para que o pacto vingasse de forma perene. Em termos talvez excessivamente crus, Rousseau, não adaptando o pacto á realidade, acabou condicionando a realidade ao pacto. O resultado é evidente: Rousseau só evita o sacrifício da Vontade geral a uma vontade de todos totalitária, coarctando ao indivíduo, aquele mesmo a quem prometia garantir a sua plena liberdade caso pactuasse, todas as liberdades de associação a outro ou outros com vista á promoção dos seus interesses, sejam negócios seja o que for o que os mova. Na representação rousseauniana da civitas não haveria sociedades privadas, nem semi-públicas; só haveria cidadãos e, depois, o Povo soberano.

De qualquer modo, se as soluções de Rousseau para o problema da precariedade da vontade geral não são aceitáveis, tal não significa que o problema não seja ele mesmo digno de atenção; menos pertinente, ainda, seria uma interpretação que supusesse que Rousseau visse nessa precariedade alguma espécie de bem público, como sugere Hannah Arendt no seu On Revolution - «Rousseau insistia em que "seria absurdo para a vontade restringi-la no futuro", antecipando deste modo a forçosa instabilidade... dos governos revolucionários».Aliás, a respeito do criticismo de Hannah Arendt, estamos em crer que se trata de uma das mais envesgadas interpretações do pensamento político de Rousseau a que se pode ler nas suas seguintes palavras em On Revolution:

é certo que nenhum estadista tem seguido Rousseau até esta conclusão lógica... Não encontramos em parte alguma a hipótese de que o inimigo comum reside no coração de todos. Contudo, é diferente o que se passa com os revolucionários e a tradição de revolução. Não foi apenas na Revolução Francesa, mas em todas as revoluções, que o seu exemplo inspirou, que o interesse comum apareceu sob a forma do inimigo comum e a teoria do terror, de Robespierre a Lenine e a Estaline, pressupõe que o interesse da totalidade deve de modo automático, e decerto permanente, ser hostil ao interesse particular do cidadão.

A objecção é imediata e tripla: nem Rousseau propugnou alguma vez pelo interesse da totalidade, que o tenha proporcionado sim, mas que o tenha proposto não; se há preocupação no CS em discernir a Vontade de todos da vontade geral é, como vimos, justamente para de algum modo condicionar aquela; nem em momento algum será possível encontrar em Rousseau alguma acepção do interesse comum pela qual este fosse o inimigo; nem sequer em circunstância alguma Rousseau pensou o contrato social como configurando uma hostilidade, pelo menos automática e/ou permanente, do interesse da totalidade, sequer do interesse comum, face aos interesses particulares dos cidadãos. Tais afirmações arendtianas, do ponto de vista de Rousseau, ilegitimariam o próprio pacto.

Que o Terror se tenha inspirado na intransigente afirmação rousseauniana do carácter popular da soberania, que o Terror se firmasse sobre o medo, a denúncia e a ameaça da guerra que a fórmula do pacto social possibilitam, tal não elide o facto de que Rousseau procurou, com maior ou menor eficácia, ilegitimá-las. Se o risco da guerra foi fonte de unidade nacional no Terror, se o mesmo risco de guerra é, como veremos adiante, segundo Arendt, fonte de conservação do nó social em Rousseau, há, no entanto, uma diferença maximamente relevante - a guerra para o Terror visava exaltar a vontade de todos; a guerra para Rousseau visava condicionar a mesma vontade de todos.

Não antes de encerrar este ponto, permitimo-nos ainda discordar de uma outra interpretação, muito celebrada, de Alexis Philonenko, de acordo com a qual a tal soma de um "grande número de pequenas diferenças" de que resulta a Vontade Geral corresponderia a uma aplicação do cálculo infinitesimal. é certo que Philonenko expõe fortes indícios de que Rousseau estaria familiarizado com este tipo de cálculo, mas tal, a confirmar-se, só serviria, a nosso ver, para vacilar sobre se Rousseau o tivera efectivamente em conta aquando da exposição do que chamámos condições preferíveis para a eleição da Vontade Geral. é que esse cálculo faz-se sobre um contínuo, ao passo que a eleição da Vontade Geral se faz necessariamente sobre unidades discretas, a saber, as vontades individuais. Aliás, tratando-se de apresentar um modelo de cálculo para a eleição da Vontade Geral tal qual Rousseau a pensa, mais facilmente, e de forma bastante mais adequada, encontrá-lo-íamos no cálculo vectorial. Com efeito, de acordo com este é possível somar vectores num plano de coordenadas, descrevendo-se cada vector por um dado valor numérico, uma dada direcção e um dado sentido. Assumindo que o valor (módulo) seja o número de vontades, a direcção seja o interesse sobre o qual esse número de vontades toma posição, e o sentido, por fim, seja a posição de aprovação ou desaprovação assumida por esse número de vontades a respeito desse interesse, então pode-se traduzir perfeitamente um conjunto de afirmações de Rousseau:

-         Em primeiro lugar, muitos vectores ligeiramente diferentes, exprimindo diferenças de interesses, diferenças de opinião, terão por vector-soma um único vector que, anulando as diferenças, exprimirá, no entanto, um só interesse comum a todas as vontades somadas.

-         Em segundo lugar, associações intermédias conduzem a somas intermédias de que resultam vectores-soma com grandes valores - i.e. que somam já muitas vontades - correndo-se o risco de não se levar a cabo a última soma, opondo-se o interesse particular ligado a uma associação ao de outra, arriscando-se o conflito entre cada um desses interesses particulares e o interesse comum, ou seja, arriscando-se o próprio interesse comum e a possibilidade de um conflito aberto entre interesses particulares.

IV. Actualidade em Rousseau

Enunciado o nosso criticismo face ao que denominámos por trabalho de "engenharia" de Rousseau, convém sublinhar que não é a ideia de uma "engenharia" o que nos motiva a objecção, mas, mais exactamente, o facto de tal trabalho se fazer sobre aquilo que é anterior ao pacto quer de um ponto de vista lógico quer de um ponto de vista histórico. A ilegitimidade rousseauniana consiste em ter feito o pacto transcender-se pelas condições que passam por sua base de implementação. Ao contrário das concepções de soberania tradicionais, seja em ordem da natural autoridade dos pais sobre os filhos, seja em ordem de uma autoridade divina, ambas assegurando a transcendência do soberano face aos súbditos, Rousseau inverte a relação de transcendência - é o estado natural, representado como estado inarticulado de interesses particulares, que transcende o estado civil e a relação súbdito/soberano.

é claro, pelo que vimos até agora, que Rousseau, na sua preocupação pela salvaguarda do contrato social, põe-se em posição de contradição com dois pilares das nossas democracias ocidentais: o sistema representativo, por um lado, e o regime de partidos políticos, por outro. Mas é justamente sobre um dos problemas hodiernamente mais acutilantes do ponto de vista político que Rousseau se mostra actual. Ao fim e ao cabo, o fenómeno de uma vontade de todos divorciada da vontade geral corresponde bem, já o observámos, a fenómenos, com a sua periculosidade, como o eleitoralismo, o demagogismo, o populismo. Ou seja: interesses eleitos por vontades que não procedem ao devido escrutínio do que nelas é interesse particular ou interesse comum. Por outro lado, o fenómeno das associações intermédias corresponde bem a problemas, já muito tratados, de possível défice democrático como o rotativismo político, a antagonização entre representação política e participação política, o corporativismo, em fim, o risco de uma crise das instituições políticas, e da sua real representatividade.

Não significa isto que a democracia directa propugnada por Rousseau seja preferível á democracia representativa - aliás, nem Rousseau considerou em momento algum que a França, ou outra grande nação, pudesse ser regida por uma democracia directa; estaria a pensar, sobretudo, como afirma explicitamente, em cidades, a sua Genebra por exemplo. Significa antes que a salvaguarda da soberania popular é condição da legitimidade do pacto. Por outras palavras: um regime político que não seja democrático não é um regime legítimo á luz do direito natural.

Do mesmo modo, a interdição da fragmentação do interesse comum em grandes interesses particulares em competição não é preferível ao regime partidário. Só que não é inteiramente líquido que os nossos regimes partidários admitam ou devam, pelo menos, admitir o tipo de associações a que Rousseau se refere como não sendo admissível. Os partidos visam o interesse comum, as associações a que Rousseau se refere não. Neste sentido, julgamos não errar ao afirmar que mais do que o regime de partidos políticos das nossas democracias, os quais só não seriam admissíveis se não visassem o interesse comum, serão regimes como a plutocracia, bem como a ditadura do proletariado, ou seja, regimes que privilegiam interesses sectoriais como o de uma classe económica particular, o alvo mais preciso da rejeição rousseauniana. A este respeito, o perigoso equívoco de Rousseau terá estado em ter tomado todas as associações, a um tempo, como políticas e privadas, quando não teria sido ilegítimo censurar ás associações políticas o privilégio de interesses particulares e menos ainda censurar ás associações particulares algum tipo de privilégio político.

 Na verdade, todo o esforço rousseauniano residiu em ilegitimar o que quer que pudesse contrariar o princípio, digamos assim, de uma formação não condicionada da vontade geral. Infortunadamente, Rousseau pretendeu assegurar o respeito por este princípio condicionando ilegitimamente a vida natural das vontades particulares, numa palavra, condicionando a própria natureza societária do homem.

Genericamente, o nosso ponto consiste em distinguir claramente o problema da elegibilidade da Vontade geral, o que requer algum trabalho de condicionamento formal do próprio pacto, do problema em torno dos condicionamentos concretos que Rousseau propõe para beneficiar a elegibilidade da Vontade Geral. Destes, a crítica está feita há muito; limitámo-nos a condensá-la. Mas não resgatar o problema da elegibilidade da vontade geral, fazendo abstracção dos condicionamentos propostos por Rousseau, seria, a nosso ver, perder de vista a clara premonição do genebrino da tensão em que assenta qualquer democracia digna desse nome, a saber, a tensão entre a necessidade, á luz do espírito do pacto, de eleger a Vontade Geral e o facto dessa eleição só se fazer contingentemente em função da Vontade realmente eleita.

 Noutros termos, propomos que esta tensão seja pensada como uma triangulação que esquematizamos do seguinte modo:

Vontade Geral      Problema da convergência               Vontade eleita

   Problema da                                                     Problema da

   correspondência                                           legitimação popular

                        Soberania Popular

Por um lado, a correspondência entre a soberania popular e a Vontade geral só é apurada mediante a eleição de uma vontade que, porém, pode não coincidir com a vontade geral. Por outro lado, a maior ou menor convergência entre a vontade geral e vontade de todos é função de um maior ou menor condicionamento da eleição da vontade. No entanto, se este condicionamento promove, por um lado, a elegibilidade da Vontade geral, já por outro, atenua a expressão directa e autêntica da soberania popular. Esta é a tensão, pois, entre dois resultados, um desejável outro não, que decorrem de uma mesma necessidade de mediação quanto á elegibilidade da vontade geral - uma maior soberania popular - como sufrágio universal, directo e incondicionado portanto - acarreta um maior risco de não se eleger a Vontade geral; uma maior garantia de se eleger a Vontade Geral, implica um menor alcance da soberania popular. René Schérer resume a tensão nos termos de um jogo do possível e do impossível, por um lado «o povo como condição da possibilidade de um estado livre e racional», por outro, a impossibilidade de uma expressão perfeita da democracia.

V. A cidadania

Contra a condição precária e reversível das democracias, risco perpétuo de dissolução do nó social e de conflito real entre interesses, prefigurando a possibilidade da guerra civil, Rousseau apresenta um derradeiro amparo - tratar-se-á de deslocar o conflito entre interesse particular e interesse comum para o seio da própria subjectividade do cidadão. O inimigo externo que fortalece o nó social, a guerra que torna o espaço adentro fronteiras espaço de solidariedade, esse, sugere Hannah Arendt, transfigura-se, com Rousseau, em inimigo interno. A guerra converte-se numa cena da interioridade de cada cidadão. Essa é a derradeira forma de mediação para salvaguardar a convergência entre Vontade Geral e a vontade eleita, ou seja, para salvaguardar a máxima elegibilidade daquela. Dito de uma forma sintética - a guerra interior substitui a guerra externa na prevenção da guerra civil. Nos termos de Hannah Arendt:

O seu problema <o de Rousseau> foi saber onde descobrir um inimigo comum sem ser no terreno dos negócios estrangeiros, e a sua solução foi a de que tal inimigo existia no peito de cada cidadão, ou seja, na vontade e interesse particulares.

Dirá ainda:

Na elaboração de Rousseau, a nação não precisa de esperar por um inimigo para ameaçar as suas fronteiras e se erguer "como um homem só" dando origem á union sacrée; a unidade da nação é garantida enquanto cada cidadão transportar dentro de si o inimigo público.

A precariedade da vontade geral face á possibilidade inelidível de desagregação encontra, pois, uma derradeira forma de resgate transferindo-se para a subjectividade de cada cidadão. Agora são estes, ou seja, cada cidadão na sua vida reflexiva, quem carrega o fardo da condição precária. Sabendo o cidadão discernir o interesse comum, sabendo conservá-lo numa vontade perene, eis o critério último para uma salvaguarda da perenidade do próprio nó social e da estabilidade da vontade geral.

Este critério último, derradeiro - o próprio homem vestindo a pele de cidadão - prende-se com uma notável concepção do que é, ou, mais precisamente, deva ser, o que hoje denominamos exercício da cidanania.

Perguntar-se-á, porém, se não será excessiva a confiança que Rousseau deposita nos homens enquanto cidadãos, i.e, enquanto sujeitos de vontade e sujeitos de razão capazes de discernir um interesse comum na amálgama dos seus interesses particulares. Naturalmente, poder-se-á suspeitar do optimismo antropológico de Rousseau. Exemplos ficcionais colocam o problema - o romance The Lord of Flies de William Golding coloca-o no plano da consideração do homem no estado de natureza, e o recentíssimo Dogville, filme de Lars von Trier, coloca-o mesmo no quadro de um estado civil. Mas é possível matizar o problema, distinguindo o optimismo antropológico de uma ingénua concepção benigna do homem. Mesmo não subscrevendo essa benignidade, dificilmente se poderia conciliar a ideia de uma soberania popular que eleja a Vontade geral e perfilhe o interesse comum - eixo crucial da ideia de democracia - sem crer que o último critério, o homem cidadão, no limite, tomará a decisão certa. E o facto é que já levamos uma longa história de democracias modernas - a que Rousseau não assistiu - que, sem terem elidido a sua condição precária, ainda assim, têm sabido escolher, com os devidos percalços, o interesse comum.

 Como é que Rousseau justifica o seu optimismo? A resposta reside no facto de a celebração do pacto social, desse contrato de associação entre homens, envolver uma transformação radical em cada associado - adoptando a identidade de cidadão, o indivíduo engrandece-se e enobrece-se a si mesmo, ou, como se pode ler no CS:

Esta passagem do estado de natureza ao estado civil produz no homem uma transformação notável, substituindo na sua conduta a justiça ao instinto, e dando ás suas acções a moralidade que dantes lhes faltava.

Esta transformação é justamente um dos elementos da caracterização da cidadania. Como se explica essa transformação? Por o cidadão que exerce a sua cidadania ter em mente o interesse comum, por se distinguir do não cidadão justamente realizando uma pessoa abstracta de que participa. Naturalmente, trata-se de realizar uma ficção. Mas essa ficção, uma vez posta, é uma realidade cuja seriedade só depende de cada cidadão que a ficciona, mas também nela crê. Do mesmo modo que um sonho pode importar mais na vida de um homem que muita da realidade em que está imerso, a Vontade geral pode importar na formação da vontade particular de cada um. Disso só depende a decisão de cada homem em ser, ou não, cidadão ou, ao menos, crer sê-lo.

Mas será que, para isto, é realmente preciso importar a figura de um cidadão em permanente estado de guerra consigo mesmo, como sugere Hannah Arendt? Será, como nos diz a autora de On Revolution, que «para tomar parte no corpo político da nação, cada cidadão deve erguer-se e manter-se em rebelião constante contra si próprio»? Julgamos que não. é certo que o cidadão deve estar pronto para se opor a si mesmo, mas só por um excesso, demasiado frequente nos comentários arendtianos a Rousseau, seria possível supor que essa oposição fosse permanente. Já o dissemos, tal invalidaria prontamente o próprio pacto social quer na sua letra quer no seu espírito. O exercício de cidadania que Rousseau consagra é o de um cidadão que sustenta, no seu peito, uma boa convicção - crença justificada acerca do bem de um artifício ficcionado. Nisto, há como que uma fenomenologia em esboço. Que tal convicção seja susceptível de crítica, essa é a faceta de oposição para a qual a cidadania deve estar disponível; mas que tal convicção não esteja permanentemente em questão, essa é não só a condição para que se possa dizer que há realmente uma convicção, mas para que se possa dizer que há, de facto, comunidade civil. Não estivéssemos convencidos, na íntima subjectividade de cada um, de que a temos e não a teríamos.

Se o fundamento do pacto social e da convivência democrática reside nos homens que o celebram, no entanto, para que o mantenham, apesar da sua inelidível precariedade, o critério último, necessário mas não suficiente, é que cada homem saiba suster, no seu peito, a convicção de que é cidadão.

Rousseau, J.-J., 1762. Du Contrat Social ou Principes du Droit Politique in Å’uvres Complétes,  vol. III. Paris : Gallimard/Bibliothéque de la Pléiade, 1964. (Doravante : CS.)

« Je veux chercher si dans l'ordre civil il peut y avoir quelque régle d'administration légitime et sûre, en prenant les hommes tels qu'ils sont, et les lois telles qu'elles peuvent être »(CS, l. I, cap. 1)

« L'homme est né libre, et partout il est dans les fers. » (CS, I, 1)

«Grotius nie que tout pouvoir humain soit établi en faveur de ceux qui sont gouvernés: Il cite l'esclavage en exemple. Sa plus constante maniére de raisonner est d'établir toujours le droit par le fait. On pourrait employer une méthode plus conséquente, mais non pas plus favorable aux tyrans. Il est donc douteux, selon Grotius, si le genre humain appartient á une centaine d'hommes ou si cette centaine d'hommes appartient au genre humain, et il paraít dans tout son livre pencher pour le premier avis: c'est aussi le sentiment de Hobbes.» (CS, I, 2)

«Trouver une forme d'association qui défende et protége de toute la force commune la personne et les biens de chaque associé, et par laquelle chacun s'unissant á tous n'obéisse pourtant qu'á lui-même et reste aussi libre qu'auparavant. » (CS, I, 6)

Do severo criticismo de Heinrich Heine face a Rousseau, e também face a Kant, Isaiah Berlin faz a seguinte descrição: «Há mais de um século atrás, o poeta alemão Heine alertava os franceses para que não subestimassem o poder das ideias: os conceitos filosóficos acalentados na tranquilidade do gabinete de um professor podem destruir uma civilização. Referia-se á Crítica da Razão Pura de Kant... e descrevia as palavras de Rousseau como a arma manchada de sangue que, nas mãos de Robespierre, aniquilara o anterior regime.» (Berlin, Isaiah, 1958. "Two concepts of liberty" ("Dois conceitos de liberdade") in Berlin, The Proper Study of Mankind. A Busca do Ideal. Tr.: Teresa Curvelo. Lisboa: Bizâncio/Leviatã, 1998: 244)

A respeito da democracia de Rousseau, afirma Cabral de Moncada - «Individualista ainda no seu ponto de partida e nos seus pressupostos racionais, sem dúvida, ela é totalitária e anti-liberal no seu ponto de chegada. Partindo da liberdade do homem e dos seus direitos naturas originários, o dogma da "soberania do povo" e o mito da "vontade geral" acabam por tomar na construção do sistema a dianteira sobre os outros elementos e por anular nela todos os vestígios do seu liberalismo.» (Cabral de Moncada, 1953. Filosofia do Direito e do Estado. Coimbra: Almedina, 1995: 243-244)

Esta indicação, contrariamente ao que se poderia começar por pensar, aponta para um objectivo rousseauniano muito mais ligado ao problema da acção governativa, ou, se se quiser, do exercício do poder, do que ao problema da constituição do poder. Poder-se-á dizer que este segundo problema se subordina ao primeiro, o que, a bem dizer, é plausível não só em Rousseau como em Hobbes: diferentes entendimentos do que deve ser o exercício do poder (ou seja, como se exerce e quem o exerce, e por fim os limites que o condicionam) estruturam diferentes modelos de constituição e legitimação do poder. Enquanto ao absolutismo, de cariz liberal, hobbesiano se faz corresponder determinada constituição, ao regime particular de Rousseau faz-se corresponder outro tipo de constituição e legitimação do poder.

« Chacun de nous met en commun sa personne et toute sa puissance sous la suprême direction de la volonté générale; et nous recevons en corps chaque membre comme partie indivisible du tout. »(CS, I, 6)

« si l'opposition des intérêts particuliers a rendu nécessaire l'établissement des sociétés, c'est l'accord de ces mêmes intérêts qui l'a rendu possible. C'est ce qu'il y a de commun dans ces différents intérêts qui forme le lien social, et s'il n'y avait pas quelque point dans lequel tous les intérêts s'accordent, nulle société ne saurait exister. Or c'est uniquement sur cet intérêt commun que la société doit être gouvernée..»(CS, II, 1)

Cf. CS, I, 8.

Cf. CS, II, 5.

« Il y a souvent bien de la différence entre la volonté de tous et la volonté générale; celle-ci ne regarde qu'á l'intérêt commun, l'autre regarde á l'intérêt privé, et n'est qu'une somme de volontés particuliéres: mais ôtez de ces mêmes volontés les plus et les moins qui s'entre-détruisent, reste pour somme des différences la volonté générale. »(CS, II, 3)

« Mais quand le noeud social commence á se relâcher et l'Etat á s'affaiblir, quand les intérêts particuliers commencent á se faire sentir et les petites sociétés á influer sur la grande, l'intérêt commun s'altére et trouve des opposants, l'unanimité ne régne plus dans les voix, la volonté générale n'est plus la volonté de tous, il s'éléve des contradictions, des débats, et le meilleur avis ne passe point sans disputes. »(CS, IV, 2)

Alain Renaut sintetiza este condicionamento em virtude do carácter subjectivo da vontade geral nos seguintes termos: «A soberania, que não é mais do que "o exercício da vontade geral", fica a distinguir-se por duas características - indispensáveis á constituição do povo como subjectividade: ela "nuca pode alienar-se" (CS, II, 1) e também não pode, pelas mesmas razões, dividir-se (CS, II, 2).» (Renaut, A., 2000. Histoire de la Philosophie Politique, vol. 3 - Lumiéres et Romantisme. História da Filosofia Política, vol.3. Tr.  : António Viegas. Lisboa : Editorial Piaget, 2001: 139.)

«Si, quand le peuple suffisamment informé délibére, les citoyens n'avaient aucune communication entre eux, du grand nombre de petites différences résulterait toujours la volonté générale, et la délibération serait toujours bonne. » (CS, II, 3)

Note-se que o próprio Rousseau ressalva, pese embora de uma forma inarticulada, um domínio que corresponde á Sociedade Civil. é que a Vontade Geral está duplamente limitada, interna e externamente - internamente, no sentido em que só pode legislar isonomicamente, i.e, legislando sempre num plano universal; externamente, no sentido em que só pode ter por objecto o interesse comum, excluindo-se necessariamente do domínio dos interesses particulares. Tal domínio vale bem como esboço de Sociedade Civil, mas não mais do que isso - uma sociedade civil que não se pode articular não chega a ser realmente uma sociedade civil. Este carácter inarticulado do homem em estado de natureza prende-se obviamente com a antropologia desenvolvida por Rousseau nos seus dois Discursos de 1750 e 1755. Aí, Rousseau defendia que a corrupção da bondade natural humana resultava da sua sociabilização; dito de outro modo, no estado natural, com a sua bondade, o homem seria um ser solitário. «Il me reste á considérer et á rapprocher les différens hazards qui ont pu perfectionner la raison humaine, en détériorant l'espéce, rendre un être méchant en le rendant sociable.» (Rousseau, J.-J., 1755. Discours sur l"Origine et les Fondements de l"Inégalité in Å’uvres Complétes,  vol. III. Paris : Gallimard/Bibliothéque de la Pléiade, 1964 : 162) 

Arendt, Hannah, 1963. On Revolution. Sobre a Revolução. Tr.: I.Morais. Lisboa : Relógio d"Ãgua, 2001: 93.

Arendt, op. cit.: 96.

«La mathématique sur laquelle va s"appuyer Rousseau est le calcul infinitésimal.» (Philonenko, Alexis, 1984. Jean-Jacques Rousseau et la Pensée du Malheur. Apothéose du Désespoir (vol. 3). Paris : Vrin, 30)

Mais em pormenor, explicita Philonenko : «La constituition mathématique de la volonté générale est plus complexe. Rousseau lui assigne d"emblée la tâche d"exprimir la totalité du corps politique et social et la caractérise comme somme des différences. Il précisera : « une somme de petites différences ». Il propose judicieusement les principes qui président á cette élaboration. Le premier est strictment mathématique. Parler des plus et des moins « qui s"entre-détruisent » est une allusion directe a procédé de l"erreur compensée qui dans l"opération infinitésimale prend son sens dans la définition de dx et dy comme quantité auxiliaire.» (Philonenko, op. cit. : 31)

Não se pretende com isto defender que Rousseau visasse expressamente uma matematização da formação da vontade geral em termos de álgebra de vectores. Esta só se desenvolveu, pelo menos de forma sistemática, a partir do séc. XIX, muito posteriormente, pois, a CS e mesmo á morte de Rousseau. Bem diversamente, pretende-se apenas chamar a atenção para o facto de haver aspectos do cálculo vectorial - como a lei do paralelogramo para a adição de vectores - que eram bem dominados no tempo de Rousseau. Aliás, a lei do paralelogramo encontrava-se, já desde 1687, enunciada nos Principia Mathematica de Isaac Newton (Cf. Corolário I dos Principia Mathematica), se não mesmo desde a Antiguidade. Ora, nestes termos é razoável presumir que houvesse da parte de Rousseau uma consideração intuitiva dos interesses particulares das vontades como se de entidades vectoriais se tratassem, ainda que não conceptualmente tematizadas qua vectores. Julgamos que corrobora esta interpretação o facto de a Vontade geral, contrariamente á vontade de todos, não ser uma grandeza escalar. Com efeito, para Rousseau não é tanto o número de vontades o que está em causa na formação da Vontade geral, mas o interesse comum que as une.

«Tout en situant dans le peuple la condition même de possibilité d'un état rationnel et libre, il révéle l'existence au cÅ“ur de la démocratie, pour peu que l'on veuille l'exprimer dans son concept et sa perfection, d'une impossibilité. Elle est prise dans un jeu du possible et de l'impossible que l'on peut aussi traduire comme ouvrant et occupant autour d'elle un espace utopique spécifique propre á éveiller et laisser se déployer la réflexion.» Cf. Schérer, René, "L"illusion démocratique" (URL:http://refractions.plusloin.org/textes/refractions1/scherer.

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Arendt, op. cit.: 94.

Arendt, op. cit.: 95.

«Ce passage de l'état de nature á l'état civil produit dans l'homme un changement trés remarquable, en substituant dans sa conduite la justice á l'instinct, et donnant á ses actions la moralité qui leur manquait auparavant.» (CS, I, 8)

Arendt, op. cit.: 96.

Em La Conviction, Fernando Gil não só estabelece um vínculo entre vontade e soberania, no que designa por "pensamento soberano", como o encontra explicitamente instanciado na Vontade geral de Rousseau. E nesta instância, como em outras de pensamento soberano, requisito crucial, aponta Gil, é o trabalho da crença - «Le peuple naissant, la formule appartient á Rousseau, ne saurait obéir aux lois en vertu des avantages apportés par le contrat social. Pour cela, "il faudrait que l"effet pût devenir la cause, que l"esprit social qui doit être l"ouvrage de l"instituition présidât á l"instituition même". Aussi est-il besoin de croire á une République encore irréele, il encombe au Législateur de transformer en croyance permanente la disposition á reconnaítre l"utilité du pacte. Pour ce faire, le peuple doit croire á ses talents de persuasion. Il faut aussi qu"il "se sente en état de changer, pour ainsi dire, la nature humaine".» (Gil, Fernando. 2001. La Conviction. Paris : Flammarion, 171-2).

 

 

Autor:

André Barata

abarata[arroba]ubi.pt

Universidade da Beira Interior

Instituto de Filosofia Prática

URL: www.phi.no.sapo.pt

www.ifp.ubi.pt



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