A tradução e o problema da referência

Enviado por André Barata


Com a presente comunicação procurar-se-á articular o problema da referência sob o fundo da problemática filosófica da tradução. Em particular, tratar-se-á de mostrar como a distinção entre sentido e referência se repercute sob várias perspectivas nessa problemática: desde logo, na prática da tradução, quando ao tradutor se impõe optar entre a letra e o espírito; também na descrição, do ponto de vista teórico, do processo de tradução; e, finalmente, no que designaria por ontologia do objecto da tradução.

1.

Foi Frege quem firmou a distinção sentido/referência (com o seu célebre Über Sinn und Bedeutung), por forma a explicar o facto de expressões com sentidos diferentes - por exemplo, as expressões "estrela da manhã" e "estrela da tarde" - poderem designar a mesma entidade - no caso, o planeta Vénus. Depois de Frege, Russell, Strawson, Donellan, Putnam, Kripke, entre outros, consagraram a distinção fregeana e dela obtiveram diversos aprofundamentos (Russell com a teoria das descrições definidas, Donellan com a distinção entre usos atributivo e referencial, Putnam com a sua teoria causal da referência, Kripke com a distinção entre designação rígida e designação flexível). O que intitulámos "problema da referência", nesta tradição de pensamento, tem residido no problema de saber se a referência é sempre determinada pelo sentido; se existe outro modo de determinar a referência; se, pelo menos para algumas expressões linguísticas, é por esse outro modo que a referência é determinada. (Como consequência das soluções apresentadas para este problema da determinação da referência, têm resultado duas posições distintas sobre a natureza dos referentes das expressões de uma Língua: o externalismo semântico por oposição ao internalismo semântico.)

A Hermenêutica, estou a pensar designadamente na hermenêutica ricoeuriana, há já algum tempo realçou a relevância do problema da referência. Diz-nos o filósofo francês, em Du text á l"action, que o sentido é imanente ao discurso. Por oposição, diz-nos, em La métaphore vive, que o referente é o extra-linguístico que a Língua põe, assinalando uma excedência realizante que o símbolo linguístico se põe a si mesmo, um fora de si mesmo que o discurso exprime e produz, marca da alteridade e intencionalidade próprias á linguagem.

2.

Ora, este mesmo fora de si realizante é também marca da problemática da tradução. Pelo menos, assim será se entendermos que ao traduzir está em causa conduzir através. A etimologia aponta nesse sentido. Mas conduzir o quê? E através do quê? Como resposta apresentarei uma hipótese processual, que enuncio já, embora a sua justificação só se obtenha, numa medida razoável, no que se seguir:

O trabalho de tradução residiria em conduzir através da diversidade de sentido das Línguas algo que, pelo seu carácter extra-linguístico, permaneceria o mesmo ou, ao menos, de algum modo o mesmo: o referente.

A vantagem da hipótese reside na simplicidade como coloca e aparentemente resolve o problema da tradução. Com efeito, poder-se-ia pensar que a distinção entre o sentido de uma expressão e a sua referência resolveria o problema da tradução, uma vez que na assunção fregeana de que á mesma referência podem corresponder sentidos diferentes tanto podem estar em consideração expressões de uma só Língua como expressões de Línguas diferentes.  Retomando o exemplo, basta pensar que as expressões "lucero de alba" e " estrela da tarde" têm a mesma referência.

3.

Mas será apenas a isto o que um tradutor se propõe? A reconstituir o referente de um enunciado proferido numa Língua através da sua reconstituição num qualquer enunciado de outra Língua? é evidente que não se obterão respostas afirmativas a estas questões. A "lucero de alba" deve corresponder, na tradução, a expressão "estrela da manhã" e não a expressão "estrela da tarde". Dito de outro modo, a haver tradução perfeita da expressão de uma Língua, ela encontraria não apenas a expressão da outra Língua que obtivesse o mesmo referente, mas que possuísse também o mesmo sentido. Assim, resulta aqui explícito o compromisso do tradutor em preservar, no seu trabalho de tradução, quer a referência quer o sentido originais.

4.

Ora, mas assim é de se perguntar: Não vem este compromisso contradizer a hipótese processual atrás proposta? Procurarei mostrar que não; que, bem diversamente, vem antes exigir uma definição complementar de prioridades.

Suponhamos, por hipótese, que a expressão portuguesa "estrela da manhã" não é nem tenha alguma vez sido uma expressão que designasse o planeta Vénus. Restaria ao tradutor para a Língua portuguesa escrever, onde lê "lucero de alba", "Vénus" ou então uma outra expressão, por exemplo "Phosphorus", que preserve a referência originária e um remanescente do sentido original. Ou ainda, optar pela tradução literal da expressão castelhana, acrescida de uma nota explicando o seu significado, ou melhor, determinando, por meio de uma descrição, a sua referência. Se nenhuma destas soluções o satisfizesse, restaria uma última: não traduzir a expressão castelhana e deixá-la tal qual aparece no original.

Aonde leva isto? A dois resultados:

1.                  Por um lado, á consideração de que a tradução deve preservar a referência e o sentido, mas, entenda-se, por esta ordem de prioridades - traduzir o sentido tanto quanto possível, ou seja, com a salvaguarda da referência.


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