Resumo: Pretende-se, num primeiro momento, evidenciar que, mau grado uma afinidade aparente, os conceitos de individualidade e singularidade, tal como, na sua raiz, os de unidade e de unicidade, revelam um regime de convivência difícil, onde contrastam reconhecimento e resistência, repetição e o seu contrário, idealidade e acontecimento. Num segundo momento, procura-se concretizar esta mesma dificuldade num contexto particular, o da identificação de correlações mente/corpo. Aí, o esforço de reconhecer estados ou padrões mentais individuais encontra resistência na singularidade distintiva dos qualia. Mas, já por outro lado, se a singularidade é apenas atestável diferencialmente, i.e, sob a assunção de uma externalidade de que se distingue, então, no que respeita aos qualia e, por maioria de razão, aos estados de uma vida mental, a possibilidade de um apercebimento depende de uma auto-representação da vida mental.
1. Se falamos de indivíduos, não o fazemos a não ser por algo que nestes se deixa identificar como sendo da ordem do individual. O carácter evidente desta afirmação contrasta, porém, com a dificuldade em se determinar o regime desta identificação quando nos reportamos á classe dos indivíduos singulares. A unicidade convém ao singular como a unidade convém ao indivíduo, mas entre o que é um e o que é único não resulta fácil compreender como estabelecer um regime partilhável.
Com efeito, assumindo a impossibilidade de identificar algo sem, nisso, estar implicado um seu reconhecimento, ou seja, algo que não tivesse, antes, já sido de algum modo identificado, então, parece que uma condição de reconhecimento do que é individual residiria precisamente na sua não singularidade. Conversamente, uma condição do reconhecimento do singular consistiria na resistência ao reconhecimento da sua unidade, da sua unidade enquanto indivíduo. Paradoxalmente, diríamos que os indivíduos apenas se deixam reconhecer como indivíduos singulares justamente por resistirem ao reconhecimento da unidade que nos permitiria individuá-los. Das duas, haveria que optar por uma: ou temos indivíduos que, nessa qualidade, não são singulares, ou temos singularidades que, nessa qualidade, não se deixam individuar.
Talvez ainda haja espaço para uma terceira opção: a de uma individualidade experienciável, ainda que para lá da possibilidade de um qualquer reconhecimento objectivo. Com efeito, não satisfaz plenamente a ideia de que falamos de singularidade essencialmente porque falamos do que na realidade, individual ou não, resiste ao reconhecimento. A resistência ou irredutibilidade ao reconhecimento pode ser valorada positivamente, marca de uma alteridade que excede os quadros de um reconhecimento possível. Lévinas, por exemplo, reportava a alteridade a uma metafísica, justamente fora do alcance de uma "logia", especialmente uma ontologia. A experiência do singular, neste sentido comparável á da alteridade, não é simplesmente uma experiência deficitária, apenas identificável nessa qualidade. Tal como o outro, o singular dispõe de uma pregnância própria com que se mostra. Mas esta via, se nos expõe o singular, reitera, porém, a inexpressividade cognitiva da unidade do individual. Isto porque o singular, tal qual o outro, fica para lá da possibilidade de um reconhecimento positivo. Seria objecto de experiência positiva, mas não de experiência objectiva. é como se estivesse lá, mas irreconhecível. O problema é desde Aristóteles bem conhecido: será possível uma outra ciência que não a do universal? Haverá conhecimento do singular?
Sob uma outra perspectiva, digamos dinâmica ou processual, em que privilegiemos a singularização e a individuação como processos, surpreende-se a possibilidade de uma inversão nos condicionamentos entre o individual e o singular. Se começámos por pensar o singular como aspecto contingente da individualidade - nem tudo o que é individual será singular, nem tudo o que faz um é único -, pensa-se, por vezes, de um ponto de vista processual, que é a individualidade, com a sua unidade característica, a estar dependente de uma singularização. Aliás, nesta inversão joga-se a própria noção de essência. Por exemplo, a ideia de que os homens se fazem a sua própria essência, de que, essencialmente, a sua individualidade reside na sua biografia singular, portanto não dada a priori, mas constituída numa história empírica única, remete para o singular como suporte real de uma individualidade que de outro modo permaneceria problemática.
Há que notar que a singularidade, neste caso, não está no sujeito de uma biografia, mas na biografia propriamente dita, e que é esta que confere individualidade ou unidade ao sujeito. Note-se também que falar de biografia a propósito da singularidade de indivíduos humanos, longe de constituir uma idiossincrasia ontológica do humano, encontra algum eco numa caracterização serial do singular, como a que Fernando Gil propõe - «diferença de cada situação relativamente a outras situações, dentro de uma série assimptoticamente contínua». [1] Desde logo, este diferencialismo do singular chama a atenção para o facto de que a pergunta sobre se algo é, ou não, único apenas pode encontrar resposta nas condições externas disso que se indaga ser, ou não, único. Por outras palavras, a singularidade envolve, por princípio, um externalismo. Naturalmente, uma coisa é reportar, de forma pouco polémica, tal externalismo ao que julgamos ser singular, outra, bem diferente, é pôr o mesmo externalismo do que pode ser único como fundamento da unidade do que é individual. Fenomenologicamente, tornou-se habitual caracterizar a existência humana como um "estar fora", o que faz sistema com uma singularidade que individua; mas não menos habitual é que justamente por isso se distingue a existência humana da dos restantes existentes.
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