20 de Outubro, 2005
A propósito de O Som e a Fúria de William Faulkner, Jean-Paul Sartre escreveu: «uma técnica romanesca leva-nos sempre á metafísica do romancista». E logo acrescenta: «A tarefa do crítico consiste em descobrir esta antes de apreciar aquela»[1]. A tese é formulada em termos universais e prescritivos; portanto, forçosamente discutíveis.
Pondo de parte confrontos com a questão sobre o que é a literatura, mesmo sobre o que é a filosofia, e, sobretudo, com generalizações improváveis, procuraremos sustentar esta crítica metafísica da técnica romanesca como uma escolha filosófica de Sartre - de acordo com este ponto de vista é, pois, como crítico metafísico, entenda-se filósofo, que Sartre discute a metafísica do tempo em O Som e a Fúria ou a metafísica do absurdo em O Estrangeiro de Camus.
Mas a escolha não é arbitrária - na verdade, seguindo o pensamento de Sartre, nem é da ordem do arbítrio -, pelo que importaria, por aqui, trazer alguma luz sobre a maneira como Sartre pratica a relação entre literatura e filosofia, mesmo entre a sua literatura e a sua filosofia. A literatura servirá de ilustração á filosofia? Quererá isto dizer que há ilustrações adequadas e que as há também inadequadas? E que há uma veracidade e uma função persuasiva nessas ilustrações? Ou, no essencial, tratar-se-á de pedir mais á literatura: que constitua evidência e seja força coactiva para a filosofia? Parece que A Náusea vai pensando O Ser e o Nada e que Proust e Faulkner fracassam metafísicas aos olhos do crítico Sartre; em todo o caso, tem-se a literatura a dar realidade á filosofia, mesmo de dentro da filosofia se se recordar as descrições literárias de angústia ou má-fé em O Ser e o Nada, como se fosse precisamente a ficção que instalasse o realismo na filosofia, um outro com que se confronta, como sua realidade.
Para enfrentar estas questões, propomos um itinerário possível de discussão. Em primeiro lugar, procurar-se-á divorciar esta escolha da literatura como escolha filosófica, bem patente na obra de Sartre anterior ao pós-guerra, dos posicionamentos ulteriores de Sartre em O que é a Literatura?. Com efeito, e independentemente da relevância deste influente texto, é nossa pretensão mostrar que Sartre não começou por ler nem por escrever literatura privilegiando o compromisso. Mais em particular, procurar-se-á mostrar que alguns dos pressupostos em que Sartre faz assentar a ideia de compromisso literário divergem claramente dos pressupostos que lhe permitiram escolher filosoficamente a literatura. Dito isso, evidenciar-se-á esta escolha filosófica da literatura em vários registos da produção de Sartre: o seu trabalho de recepção crítica a duas obras - O Som e a Fúria e O Estrangeiro -; a sua novela A Náusea; e, por fim, numa breve referência, as suas descrições dos fenómenos como a angústia e a má-fé em O Ser e o Nada.
Se quisermos resumir a ideia motriz da filosofia de Sartre a uma frase, um seu enunciado possível seria: a consciência é sempre consciência de alguma coisa que não ela própria. Neste que "não ela própria" captamos a origem da metafísica de O Ser e o Nada. Com efeito, de acordo com o que ficou dito, a consciência, em si mesma, não é nada; ela só é, para si mesma, ou seja, só se reconhece como consciência, no não ser as "coisas" de que vai sendo consciência. Por isso, Sartre distingue o pour-soi do en-soi, sendo aquele o ser da consciência e este o das coisas. E também por isso afirma que a consciência nasce sustida sobre um ser que não ela mesma - e, portanto, na sua permanente dependência. Desta ideia motriz, seguem-se duas consequências que enuncio de uma forma bastante esquemática. Primeiramente, tem-se que a consciência não dispõe de nenhum conteúdo - sendo nada, todo o conteúdo a transcende, mesmo o Eu; daí a ideia de uma transcendência do Ego, entenda-se, transcendência relativa á consciência; daí a recusa de uma filosofia "alimentar" que assimilasse, qual digestão, o estranho em próprio; além disto, sendo nada, nada a pode determinar; daí consciência e liberdade valerem, na filosofia de Sartre, como dois equivalentes, ambos ontológicos, ambos, porém, desprovidos de qualquer substancialidade. Em segundo lugar, tem-se que quaisquer processos de identificação, seja com o seu próprio passado, ou o seu próprio futuro, seja com o seu próprio corpo ou com o corpo de outrem, seja com a consciência de outrem ou com um putativo outrem de si que seria o inconsciente, são apenas formas de iludir a consciência angustiada da falta de ser da própria consciência. Genericamente, á estrutura desta ilusão, sempre votada ao fracasso, Sartre chama má-fé.
Como ficou dito, a liberdade de que Sartre fala decorre da sua própria ontologia da consciência. Daí não podermos, conscientemente, não ser livres. Não somos livres de não escolher - não escolher é já escolher. Por isso, a liberdade, mais do que uma prerrogativa, é, para Sartre, uma condenação; liberdade menos abstracta e mais sentida, por vezes ressentida, cuja consciência é dada não na felicidade, nem no poder de nos guiarmos em direcção a ela, mas na angústia.
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