1. As perspectivas de Jean-Paul Sartre sobre a psicanálise, a sua crítica á hipótese freudiana de um inconsciente, o seu próprio programa de psicanálise existencial suscitaram ao longo da segunda metade deste século muitas reacções, não raras vezes excessivas, redundando em leituras equívocas do seu pensamento. Aqui, perfilharei a posição de Betty Cannon quando afirma que o existencialista francês "(…)concebeu uma filosofia ao mesmo tempo por e contra Freud."> Longe, pois, estou daqueles que denunciam um eventual problema narcísico de personalidade ou um mundo esquizóide em Sartre (posições defendidas por James Masterson e Douglas Kirsner, respectivamente). Mesmo que fosse o caso, é difícil estabelecer alguma relevância neste forma de argumentar, sobretudo para alguém, como Sartre, que recusou classificar o outro de "doente mental" e afirmou, como ainda recentemente Michel Contat lembrou, que "(…)a "loucura" é apenas uma maneira entre outras, possíveis, de "realizar a condição humana"." Limitar-me-ei, na presente ocasião, a introduzir o programa sartreano de uma psicanálise existencial, mas centrando a atenção no debate sobre a existência, ou não, de uma tópica do psiquismo humano que reserve um lugar para o Inconsciente (Ics). Isto, tendo como interlocutor privilegiado Sigmund Freud. Assim, procederei a uma exposição em três partes:
1.1. Primeiramente, exporei um conjunto de objecções, que classificarei de ordem ontológica ou pelo menos ôntica, á hipótese freudiana de um Ics, objecções que valem sobretudo como afirmação de um determinado entendimento do que é, e deve ser segundo Sartre, o Cs.
1.2. Em segundo lugar, exporei outro grupo de objecções, estas de natureza epistemológica, e das quais Sartre deduz a necessidade de uma psicanálise distinta, que designará por psicanálise existencial.
1.3. Finalmente, terminarei fazendo um balanço, inevitavelmente exíguo, e talvez panfletário da importância do pensamento de Sartre hoje e para psicanálise.
1. A postulação de uma instância que determina a consciência e que, no entanto, não é a própria consciência, postando-se atrás dela - ou seja, a postulação de um inconsciente no seio do psiquismo humano - implica segundo Sartre uma contradição, um absurdo, que se deixa formular numa pergunta simples: "o que pode ser um consciente inconsciente?". Em função deste absurdo, a questionar, instâncias como o Inconsciente e a censura freudianos revelaram-se, para Sartre e na sua obra magna E.N. de 1943, nada mais nada menos do que uma realização encoberta de má fé.
2. Mas esta má fé em Sartre é para ser entendida como um conceito filosófico preciso, um conceito que não tem uma leitura moral imediata, como poderá parecer, um conceito que nem se deixa sequer contrapor a uma conduta de sinceridade. Pergunte-se, então, o que é a má fé. Trata-se de uma conduta de fuga face á consciência de liberdade; uma conduta que visa paradoxalmente libertar a consciência da sua própria condição de ser liberdade, absolutamente responsável, e solitária na sua responsabilidade, sem desculpas, ou, por outra, sem determinismos que a desculpem e a libertem do fardo de ter de decidir por si; em última instância, apenas por si. Por isso, a consciência de liberdade revela-se na angústia; e por isso, também, a liberdade se afigura para Sartre sobretudo como uma condenação, a que a má fé tenta escapar.
3. A má fé exprime, segundo Sartre, uma mentira a si própria por parte da consciência, uma mentira que visa criar a ilusão de que "houve razões, condicionalismos, imposições que obrigam o sujeito; que, de uma forma ou de outra, suspenderam de facto a sua liberdade". Ele dirá então "fui forçado, não tive escolha". Ora, para Sartre nenhuma situação - e note-se que estamos sempre em situação - configura um tal determinismo; existe sempre uma alternativa que dá sentido á decisão, uma opção por mais dolorosa que seja - por exemplo, sob a tortura, uma consciência pode decidir não ceder, não denunciar, pode decidir-se pela morte; mas nenhuma tortura pode suprimir a liberdade e decidir a decisão do torturado. é o exemplo de Lucie em Morts sans Sépulture, torturada e violada no contexto da resistência durante a guerra, personagem que diz - «não me tocaram. Nada me tocou. Eu era de pedra e não senti as mãos deles. Olhava-os e pensava: nada sucede. Nada sucedeu.»(curiosamente, Lucie ultrapassa a tortura decidindo-se pela má fé, transcendendo o seu corpo e a sua facticidade, o que dá bem conta da estranheza que suscitam as leituras morais do fenómeno da má fé).
4. Neste sentido, compreende-se por que razão Sartre fala da liberdade como de uma condenação - na verdade, a liberdade desconforta; sem esteio nem nada que o justifique, o sujeito de liberdade não pode não ser livre; o seu futuro é feito de possíveis sem que nenhum, de entre estes, seja impositivo. A cada momento é preciso decidir, renovar a decisão, e assim viver a angústia de que nada está decidido á partida e que o decidido outrora nada vale para o futuro se a decisão não for uma vez mais decidida. Sartre exemplifica na figura de um jogador inveterado, um viciado no jogo, esta angústia - ele angustia-se por não conseguir determinar-se a não jogar mais. Todos os motivos que o levam a se decidir por não tornar a jogar, motivos que o puderam convencer num dado momento, são absolutamente impotentes quando ele procurar impedir-se futuramente de tornar a jogar. Tem de os recriar no próprio momento em que decide. Diz-nos Sartre: «é necessário que eu reencontre esse medo de desolar a minha família, que o recrie como medo vivido; ele posta-se atrás de mim como um fantasma sem osso, só depende de mim emprestar-lhe a minha carne».
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