Explicar o Direito: para além do modelo episódico dominante

Enviado por Atahualpa Fernandez


Explicar o Direito

A doutrina jurídica tradicional, e em particular a filosofia do direito, se interrogam desde sempre acerca do modo como as regras sociais e as normas jurídicas surgem e se impõe na sociedade, ao que se acrescenta a questão relativa á maneira como essas regras e normas se legitimam. Também se manteve durante séculos a tese de que o ser humano é sociável por natureza e, portanto, somente na sociedade organizada alcançava o indivíduo humano sua mais plena e perfeita realização. Assim, as normas e a organização sócio-política seriam uma seqüela necessária do próprio ser do homem, a dimensão ou componente imanente de sua natureza moral e racional.

Com a chegada da época moderna entra em crise essa justificação teleológica e metafísica da ordem social e de suas normas. O ser humano deixa de ver-se como puro autor racional de um guión pré-escrito e prescrito com anterioridade e se torna autor de sua própria vida e suas realizações sociais. Manter-se-á até nossos dias a idéia comum de que não há sociedade sem normas, mas as normas já não são mais a expressão de nenhum fim (teleológico ou transcendente) pré-estabelecido, senão um produto propriamente humano, evolucionado, contingente e variável.

A correlação entre normas jurídicas e natureza humana se torna explícita e a questão da origem, evolução e natureza dessa natureza (humana) e de seus produtos normativos (sócio-adaptativos) passa a constituir um problema teórico e central das mais modernas filosofias e teorias sociais normativas. Frente ao tradicional desdobramento do sujeito em indivíduo moral (ou quase divino) e ser genérico portador de uma racionalidade quase que absoluta, o sujeito moderno se concebe ao mesmo tempo como o resultado de um processo biológico de hominização e um processo histórico de humanização.

Já não somos portavozes de uma racionalidade (ou divindade) de alguma forma transcendente que se nos impõe e converte nossas vidas e agrupações em realização de um fim predeterminado, senão uma espécie que descobriu que determinados comportamentos e vínculos sociais são necessários para resolver problemas adaptativos relativos á sobrevivência, ao êxito reprodutivo e á vida em comunidade, e aceitou a necessidade de assegurá-los e controlá-los mediante um conjunto de normas e regras de conduta. O sujeito moral deixa seu lugar ao ser humano produto da evolução por seleção natural.

O problema da tradição jurídica filosófica e da ciência do direito (ainda predominantes) é o de que trabalham muitas vezes como se os humanos só tivessem cultura, uma variedade significativa e nenhuma história evolutiva. De fato, no âmbito do jurídico quase sempre se relega a um segundo plano - ou simplesmente se desconsidera - a devida atenção á evolução da natureza humana e á estrutura e ao funcionamento material do cérebro humano como fonte dos instintos e predisposições que permitem criar e explorar os vínculos sociais relacionais que lá estão. Não há que estranhar-se, pois, de que o processo de realização do direito (de elaboração, interpretação e aplicação) seja um dos mais problemáticos e contestados publicamente de todas as empresas jusfilosóficas. E uma vez que tanto o direito como a ética carecem das bases de conhecimento verificável da natureza humana necessários para obter predições de causa e efeito e juízos justos baseados nelas, necessitamos, para compor o conteúdo e a função do direito, tratar de descobrir como podemos ou devemos fazê-lo a partir do estabelecimento de vínculos com a natureza humana.

Aliás, diga-se de passo, um dos "fetiches" mais comuns é o de assegurar - principalmente para os alunos dos cursos jurídicos - uma concepção ontológica substancial do direito que reside, em última instância, em "algo" predeterminado (ou vinculado de forma absoluta) por uma indefinida e indecifrável "natureza" considerada sempre igual, por um sistema universal e imutável de princípios e valores ou, com mais atualidade, pela expressão da juridicidade oferecida por um corpo de normas (o ordenamento jurídico) postas pelo legislador, isto é, como um sistema autônomo de leis (im-) postas (com anterioridade) pelo poder (seja este de que natureza for: religiosa, econômica, militar, política, etc.).

E não somente isso. Os operadores jurídicos, quando abordam o estudo do comportamento humano e do direito, têm o costume de falar de diversos tipos de explicações: sociológicas, antropológicas, normativas, axiológicas e outras, apropriadas ás perspectivas de cada uma das respectivas disciplinas e áreas de conhecimento, quer dizer, sem sequer considerarem a (real) possibilidade de que exista somente uma classe de explicação para a compreensão da juridicidade na sua projeção metodológica. Mas tal explicação unitária de base existe. Desde o ponto de vista teórico é possível imaginar uma explicação que atravesse as escalas do espaço, do tempo e da complexidade unindo os fatos aparentemente inconciliáveis do social e do natural, sempre e quando se parta de um cenário mais credível da emergência do fenômeno jurídico devidamente sustentado em um modelo darwiniano sensato sobre a natureza humana - que não é uma construção social pós-moderna, senão uma construção natural muito antiga que  recapitula a história filogenética da linhagem humana.

Dito de outro modo - e em termos muito gerais -, de que os grupos humanos atuais nasceram a partir de grupos de Homo erectus, e estes a partir de grupos de Australopithecus, e estes, por sua vez, de antepassados comuns aos humanos e chipanzés que, não obstante serem de maneira provável uns animais com uma certa vida social, nasceram da sociedade de um  elo perdido entre símios e macacos, e assim por diante, até chegar ao ponto em que começamos, como uma espécie de animal essencialmente social, prioritariamente moral, particularmente cultural e decididamente diferente. Em síntese, de que para uma compreensão mais adequada do comportamento humano normativo é necessário ver a vida ética e social humana como um produto da história evolutiva que nos precede, com antecedentes em outras espécies. Longe de ser uma tábula rasa difusa, a arquitetura cognitiva humana, altamente diferenciada e especializada, é um mosaico de vestígios cognitivos dos estágios antigos da evolução humana, previamente adquiridos por nossos ancestrais hominídeos.


Página seguinte 



As opiniões expressas em todos os documentos publicados aqui neste site são de responsabilidade exclusiva dos autores e não de Monografias.com. O objetivo de Monografias.com é disponibilizar o conhecimento para toda a sua comunidade. É de responsabilidade de cada leitor o eventual uso que venha a fazer desta informação. Em qualquer caso é obrigatória a citação bibliográfica completa, incluindo o autor e o site Monografias.com.