A presente dissertação trata de uma perplexidade, a princípio simplesmente antevista, depois aprofundada, não sem passos de hesitação, em várias instâncias de discussão, finalmente resolvida, bem ou mal, num argumento.
A anunciada perplexidade prende-se com duas fortes convicções filosóficas. Por um lado, aquilo a que chamamos "mente" deveria explicar-se por meio de acontecimentos nos nossos cérebros, seus processos bioquímicos, biofísicos, físico-químicos, no quadro, segundo cremos, de uma sobreveniência natural do mental sobre o neural. Razões relativamente elementares sustentam esta convicção - primeiramente, nenhuma mente humana sobrevive á morte do corpo, do seu cérebro; depois, muitos estados mentais deixam-se atestar numa sincrónica observação de estados neurais que, de algum modo, lhes correspondem. Por outro lado, aquilo a que chamamos "mundo real", "mundo exterior', estados de coisas descritos pela Física, pela Química, pela Biologia, nada disso é experimentado a não ser sob a pressuposição de uma mente que os experiencie. Outras razões, tão elementares como as anteriores, sustentam esta convicção - como só se constatam as exterioridades do mundo real que tenham, de algum modo, sido dadas a experienciar, e como toda a experiência a que se acede é experiência de uma mente, então apenas pelo cabal esclarecimento do que seja a experiência de uma mente se poderá esperar uma explicação para aquilo que deveria explicar a mente. Eis a perplexidade: o explanans e o explanandum, no que respeita ao problema mente/cérebro, estão reciprocamente implicados. Restará, pois, a admitir esta posição paradoxal do problema, tentar resolver virtuosamente uma circularidade que não se quer viciosa.
De uma forma algo imprecisa, mas também bastante sugestiva, a dificuldade que se enfrenta ao nos depararmos com esta perplexidade deixar-se-ia formular por duas interrogações: Se são os factos naturais que explicam a mente, então como expor esses factos sem recorrer á mente que desejamos ver por eles explicada? Se é a mente que conhece, se é a mente que experiencia, então como conhecer, experienciar a mente?
Por outro lado, o conhecido argumento do hiato explicativo (explanatory gap argument) deixa-nos perante a sombra de um mistério - mesmo perante uma concebível descrição completa das correlações entre o mental e o neural, faltaria dar uma explicação sobre o modo como o mental chega "a ser" a partir do neural. Ora, a primeira grande tese proposta nesta dissertação é a de essa expectativa, justamente a do mental resultar do neural, ser, desde logo, uma expectativa errada. O mental não resulta do neural, muito menos o inverso; o mental e o neural são tão-só aquilo que experienciamos, diversamente é certo - o mental como subjectivo e privado, o neural como objectivo e público -, mas ambos na condição de percipi e não de esse. Significa isto que há um dualismo experiencial, cuja constituição se deixa elucidar em várias instâncias, um dualismo incompatível com a presunção ingénua de o neural (ou o mental) ser o fundamento do mental (ou do neural). Tal dualismo constitui a diferença entre duas perspectivas mentais básicas, uma dita da primeira pessoa, outra da terceira pessoa.
Agora, se há presunção de resolver o problema mente/corpo é, então, desse mesmo de que mente e corpo são perspectivas que se deverá esperar uma explicação. Mas, atente-se, será uma explicação que se descobre, não se constata. Constatá-la seria passar ao plano percipi, o que, por princípio, está interdito tratando-se de explicar, de forma consequente, o próprio percipere. Importa, por certo, acautelar-nos relativamente a esta circularidade viciosa, mas importa sobretudo não afectar o poder explicativo de uma descoberta simplesmente pelo facto de esta não poder ser constatada, i.e, dada de um modo ostensivo á experiência.
Para lá desta ideia de que o mental e o neural são perspectivas do mesmo, ideia que expressamos através do emprego da distinção esse/percipi (ser/ser percebido), a nossa tese assume uma designação mais particular, a saber, a de sobreveniência especial. Com esta especificação, procuramos demonstrar que o mental qua experienciado não sobrevém normalmente ao neural qua experienciado, mas apenas num sentido que qualificamos de especial. Trata-se de uma sobreveniência mais originária do que aquela que identificamos na natureza - a sobreveniência normal -, pois esta envolve apenas um dos planos percipi, o relativo á perspectiva na terceira pessoa, ou seja, apenas um dos dois planos de observação envolvidos na sobreveniência especial. O carácter mais originário desta explica por que razão, ao contrário da sobreveniência normal, não nos é possível reconduzir os correlata ao mesmo através de um procedimento de adopção de escalas intermédias, não sendo sequer possível encontrar entre os correlata experienciados um terceiro plano de observação. Donde, haver uma descontinuidade, no plano percipi, entre o neural e o mental; donde, não ser expectável encontrar uma continuidade explicativa nesse plano. Tal corresponderia a procurar explicar um dado "efeito" através de outro "efeito" concomitante, assumindo um como "causa" do outro. Nestes termos, o problema do mentalismo residirá em assumir por "causa" o mental e por efeito o "neural", ao passo que o do materialismo residirá em inverter esta "ordem causal". Ora, ambos estes posicionamentos condenam-se ao mistério a que conduz o argumento do hiato explicativo, justamente porque os termos que tomam em consideração relevam apenas do plano percipi, são apenas da ordem do que é experienciado, e também porque, enquanto experienciados, são termos que não dispõem de nenhuma continuidade. A haver continuidade, a haver uma "ordem causal" será no plano esse.
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