Estado de Necessidade e a apreciação de suas inúmeras possibilidades na exclusão da ilicitude penal



Evidentemente, o conceito jurídico de Estado de Necessidade não traz em si qualquer complexidade, sendo prioritariamente difundido por doutrinadores penalistas, todavia, o instituto não deixa de ser exemplificado com igual clareza em âmbito civil. Contudo, sob o aspecto que nos interessa dissertar, sugere-nos que sua compreensão se dê sob uma outra ótica. Ou seja, queremos debater sobre a impulsão psicológica sofrida pelo indivíduo, capaz de delimitar a circunscrição gradual de sua necessidade, necessidade esta, que se torna justificante de sua ação, a ponto de excluir de seu ato o caráter denso de contrariedade á lei.

Reiteramos que, o Estado de Necessidade pode ser verificado tanto na órbita criminal quanto na civil, porque em qualquer delas, teremos a experiência de um agente sob influência de estímulos motivacionais, capazes de direcionar sua ação imediata á finalidade de suprir uma necessidade iminente.

Sendo, notadamente distinto da Autotutela e da Legítima Defesa, o Estado de Necessidade encerra em si um diferencial marcante, por não tratar de empreender reação a uma agressão, tampouco se situa naquilo que seria um contra-ataque em face de uma lesão, é, por isto, simplesmente, um agir diferenciado, praticado em meio a uma situação de ocorrência involuntária, em que o indivíduo pratica um ato inevitável, fundado em sua percepção pessoal da necessidade existente, ação esta, que acaba por violar uma ou algumas das normas jurídicas vigentes, porém, angaria uma avaliação atenuada pela finalidade fundamental de preservação da integridade física; de direitos ou de bens, próprios ou alheios.

Propositadamente mencionamos a "finalidade fundamental da ação", porque só esta pode ser justificante da "necessidade" experimentada pelo indivíduo.

De tal maneira, de posse do conceito expressado pelo Código Penal Brasileiro, em seu artigo 24:

"Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se".

Ainda do Código Penal podemos extrair os requisitos autorizantes de sua invocação: Que haja perigo atual; ameaça a direito próprio ou de terceiro, cujo sacrifício não era razoável exigir-se; situação involuntária, não provocada pela vontade do agente; conduta inevitável de outro modo; conhecimento da situação de fato, como requisito subjetivo e, por fim, inexistência do dever legal de enfrentar o perigo.

Cabendo ressaltar quanto á questão da "atualidade" do perigo vivenciado, como um dos requisitos basilares de caracterização do Estado de Necessidade, temos que refletir um pouco sobre alguns conceitos correlacionados. E, tentando elucidar esta compreensão específica do que pode ser considerado "atual", buscamos fundamento nos ensinamentos do autor francês Pierre Lévy, para quem, a definição de atual está em justa oposição áquilo que é virtual, posto que, no virtual existe tão-somente uma potencialidade de existência, que pode ou não vir a ser algo; enquanto na órbita do atual existe presença, decididamente, não se fala de possibilidade, tampouco, em potencialização, mas sim, no possível que ganha existência, através da forma e estabilidade no tempo.

Portanto, segundo as afirmativas de Pierre Lévy, é quando o virtual se concretiza que nos surge o atual, porque o atual possui presença existencial, sendo passível de ser tocado, ouvido, sentido ou visto. Todavia, é importante ressaltar que virtual não se opõe ao real, até porque, a imaterialidade do virtual não lhe subtrai plenamente os efeitos reais. Em síntese, o atual é de alguma forma sempre apreensível pelos sentidos humanos. Daí porque, se constata efetivamente ou formalmente presente. E assim, Lévy define:

"O virtual não se opõe ao real, mas sim ao atual. Contrariamente ao possível, estático e já constituído, o virtual é como o complexo problemático, o nó de tendências ou de forças que acompanha uma situação, um acontecimento, um objeto ou uma entidade qualquer, e que chama um processo de resolução: a atualização."1

Todavia, ao nosso ver, aquém da existência desses requisitos autorizantes, seu reconhecimento estaria mais adstrito ao campo da valoração, portanto, diferindo do contexto dos valores absolutos. O que nos leva crer que, dentro da regra expressa pelo Código Penal, sua invocação poderá dar-se sobre outras variantes. Posto que, a valoração por ser relativa e condicional, possivelmente não será congruente, tampouco, simétrica á avaliação daquele que julgará sua utilização circunstancial, como justificativa viável e permissiva de escusa ao cumprimento de uma norma jurídica, descaracterizando assim, a existência de um ato ilícito.

Lembrando que, necessidade revela o que é imprescindível em qualquer sentido; a necessidade prevista no artigo 188 do Novo Código Civil pode traduzir-se em três aspectos gradativos: Caso de Necessidade; Caso de Extrema Necessidade e Caso de Necessidade Comum. Tendo cada um destes aspectos porção valorativa diferenciada, talvez, a mensuração esteja atrelada á proporção da coação exercida pelo perigo iminente vivenciado e experimentado por quem pratica o ato necessário. Lembrando que, "perigo" é o elemento chave de uma circunstância que prenuncia um mal para alguém ou para alguma coisa, ainda que putativo. E, de tal modo, temos que: a necessidade pura e simples, desde que respeitadas as devidas proporções, é por si só suficientemente autorizante para permitir inobservância de preceitos positivos da lei natural, penal ou civil.

Temos consciência de que todas as questões humanas são metafísicas e axiomáticas e, quando relacionadas aos institutos jurídicos estas questões não se descaracterizam, ou se dão de modo diverso. Daí porque, observamos que o estudo do Estado de Necessidade sugere observações, argumentos e leituras multidisciplinares, porque o indivíduo não pode ser decifrado, decodificado ou compreendido isoladamente, tampouco, sua conduta ou seu agir.

E o homem, ser descrito por Aristóteles como um animal social, tem no ordenamento jurídico sua garantia de coexistência e convivência pacífica, o que não é suficientemente apaziguador diante daquilo que resulta de seu instinto. Percebemos, portanto, que o estudo do tema requer que se correlacione o Direito com vários outros ramos científicos, tais como: Sociologia, Psicologia, Antropologia, Filosofia, Deontologia etc.

Seguros de que as atitudes, os valores e os conceitos humanos são resultantes do universo cognoscível existente em cada um de nós, constatamos que este universo é individual, subjetivo e particularizado em cada um dos seres humanos, porque se forma a partir de escolhas intelectuais; modeladas por uma personalidade exclusiva, e são esculpidas não só pelo caráter, mas por experiências próprias de cada um. Pierre Teilhard de Chardin, afirma que:

"O homem moderno tem obsessão de despersonalizar o mundo, e com isto, perde o verdadeiro sentido da natureza humana, talvez, porque o indivíduo perca as devidas proporções existentes entre o seu eu e as dimensões do Cosmo á sua volta".2


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