Procurámos indicar no estudo anterior as condições que uma vontade tem de satisfazer para que se diga, num dado contexto de acção, uma vontade livre. Defendemos que essas condições consistem na existência de possibilidades alternativas, por um lado, e na boa formação da vontade, por outro.
Há que notar, porém, que, entendida neste sentido, uma vontade livre nada tem de moral ou imoral. Designadamente, o facto de ser bem formada não pode ser pensado como um facto que respeite á moralidade ou imoralidade da acção. Com efeito, assumindo que existem possibilidades alternativas, a vontade de um agente pode ser livre e, ao mesmo tempo, imoral ao exprimir, enquanto desejo final, a totalidade dos desejos e crenças do agente - e daí ser livre -, mas numa situação tal em que a maioria desses desejos não seja moralmente permissível, bem como a vontade apurada. Em contrapartida, uma vontade pode não ser imoral ainda que tenha sido mal formada. Portanto, vontade boa/má e vontade bem/mal formada não devem ser confundidas. Na realidade, dizem respeito a âmbitos inteiramente distintos. A boa ou má formação da vontade diz respeito ao processo de apuramento do desejo que guiará a acção; prende-se, pois, com o agir por desejo e é assunto para uma filosofia da acção. Se nisto a vontade se diz livre é porque o agente reconhece como própria a vontade, ou seja, assume como sua a causalidade da vontade e, além disso, pôde, caso o quisesse, ter agido de forma diferente. Mas, agir por desejo e apropriação da vontade não implicam moralidade para a acção e para a vontade que a determina. Uma filosofia da acção e uma filosofia moral são disciplinas contíguas, mas ainda assim distintas.
Se por esta razão a vontade boa ou má não pode ser pensada simplesmente segundo o agir por desejo, então há que reconhecer a existência de um agir por dever, distinto daquele, e relativamente ao qual se diga que uma vontade é boa ou má. Radicalizar esta diferença entre ambas as formas de agir é uma das pedras basilares da ética kantiana. Por isso, após o estudo que fizemos do agir por desejo, importa-nos acompanhar e avaliar como Kant pensa o agir por dever.
De acordo com Kant, o mesmo "querer" pode ser determinado quer moralmente quer por uma faculdade do desejo. Se por meio desta se age em função de um interesse ou inclinação (cujo apuramento pode envolver uma boa ou má formação da vontade), já no caso de uma determinação moral do querer, age-se, não por desejo, mas por dever. Esta contraposição entre desejo e dever como duas formas de determinar a vontade é clara e repetidamente ilustrada por Kant na sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785). Por exemplo, o querer ser caritativo por si só não prova que uma vontade que o adopte seja boa. Tal querer, aparentemente bom, até poderia ter sido determinado sem nenhuma consciência de dever, mas simplesmente por um qualquer interesse que instrumentalize a caridade, por uma projecção do que se pode ganhar em se ser caritativo, ou ainda por uma simples inclinação natural para a caridade. Isto significa, pois, que o querer ser caritativo pode ser determinado com total independência em relação a uma consciência de dever, mas tão-só por razões ligadas ao desejo. Em contrapartida, e esta é a tese de Kant, o mesmo querer ser caritativo pode ser determinado apenas pelo dever, e independentemente do desejo. Ora, só neste caso, segundo Kant, se verifica uma vontade boa. Conclui-se assim que para se ter uma vontade realmente boa é necessário que as acções se pratiquem, não por inclinação, mas por dever.
Agir independentemente do desejo não significa, naturalmente, agir contra o desejo - á partida, procurar satisfazer os desejos, cumprir as inclinações, alcançar bem-estar e prazer, em suma, perseguir a felicidade não é, obviamente, em si mesmo imoral. O ponto aqui reside em a determinação da vontade pelo desejo não se substituir á sua determinação pelo dever. Em geral, as pessoas desejam conservar a sua vida. Não há, evidentemente, nenhum dever que determine agir-se contra esse desejo. Mas, se esse desejo de conservar a vida cessar por alguma razão; então resulta em dever conservá-la mesmo contra a vontade desiderativa. Isto, claro está, se cada qual conservar a sua própria vida for efectivamente um dever.
Convém aqui despistar um possível equívoco. Em muitas circunstâncias, reconhecemos que fizemos ou pensámos fazer algo que não era realmente a nossa vontade, ou seja, que a nossa vontade fora mal formada, influenciada por um estado de ânimo exaltado, por uma avaliação distorcida, etc. Compreender isto até pode ser uma maneira de, por exemplo, argumentarmos que o desejo de conservar a vida só cessa ilusoriamente. Importa, porém, ter em atenção que toda esta forma de argumentar ainda se inscreve no âmbito de uma vontade estritamente desiderativa, onde o que pode estar em causa é apenas se foi bem ou mal formada e não se foi, em sentido moral, uma vontade boa ou uma vontade má. Se há um dever de cada qual conservar a sua vida, tal não pode ser determinado por este tipo de razões, ainda que estas sejam razões que possam conduzir ao mesmo querer.
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