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De fato, parece que a única razão que justifica a proibição desse tipo de prática é o tabú imposto pelo fundamentalismo religioso. E é precisamente aqui que reside o problema, pois discutir acerca de princípios e valores éticos absolutos baseados em crenças ou mitos religiosos é inútil porque seus interlocutores, que não são poucos, se negam terminantemente a admitir qualquer tipo de argumento que ponha em causa suas fantasias teológicas fundadas em mandamentos "divinos", isto é, que priorize o sofrimento humano em detrimento da vontade de um Deus onipotente e misericordioso. Quando a postura moral alude a valores que alguém tem por universais, divinos e eternos, esse algúem não vai dar o braço a torcer baixo nenhuma circunstância: assim se lhe torture, se lhe dê argumentos razoáveis ou se lhe enfrente com as necessidades de outras pessoas; seus valores supremos não sofrerão nenhum câmbio.
Entrar em polêmicas com devotos de qualquer facção religiosa resulta uma perda de tempo e até um absurdo de raiz. Se se pensa que cada embrião humano tem uma alma merecedora de preocupação moral, que existe alma em cada um dos blastocistos e que os interesses de uma alma - digamos, a alma de uma criança afetada por uma doença genética degenerativa - não podem predominar sobre os interesses de outra alma, mesmo que essa alma viva dentro de um tubo de ensaio, então apaga tudo e vámo-nos descansar. Nada do que sustentem os cientistas, os políticos e os juristas esclarecidos (amém de alguns Ministros do STF), fará mover nem um milímetro a opinião dos devotos dessa aterrorizante combinação de um dogma religioso com uma grande estupidez, para dizer o mínimo.
Resulta até inútil recordar que os valores eternos e absolutos não se mostram nem absolutos, nem por vezes eternos. A consideração de "ser humano", de "dignidade humana", foi cambiando ao longo da história inclusive, por exemplo, por parte da própria Igreja. E, se não fora inútil, seria coisa de recordar algumas encíclicas como aquela na qual o papa Paulo III, referindo-se aos protestantes, assegurava que "enforcarei, matarei de fome, ferverei, esfolarei, estrangularei e enterrarei vivos a esses hereges infames; desgarrarei os estômagos e os úteros de suas mulheres e esmagarei as cabeças de seus filhos contra a parede". E nem sequer eram embriões.
Salvo que as mulheres e os filhos dos hereges, deixando de lado aos próprios hereges, claro, não sejam considerados seres humanos, parece que há aí um pequeno problema enquanto ao absoluto dos valores. Certo é que sucedia em 1576, mas os valores que querem ser eternos, porque atemporais, não entendem de séculos. Se não fora inútil, caberia argumentar que os papas fundadores do Santo Ofício tinham suas razões para obrar como obraram, na medida em que os valores não são nem tão eternos nem tão absolutos como para rechaçar os matizes. Opôr-se a Galileu era até razoável em 1633, quando se lhe obrigou a enunciar sua cérebre retratação. Mas não o é hoje, nem ninguém na Igreja católica, que eu tenha notícia, pretende fazê-lo. Sucede que desde 1633 até hoje hão passado quase quatro séculos. Talvez, pois, dentro de quatro mais a Igreja católica e as demais facções fundamentalistas - se é que existirão no Brasil, porque os sacerdotes e pastores seguro que sim - entendam que as pesquisas em células-tronco embrionárias com fins científicos e terapêuticos não somente é admissível senão que desejável (como o de que a existência de alienígenas e que o universo pode ter vida inteligente fora da Terra não contradiz a fé em Deus, segundo o Pe. José Gabriel Funes, principal astrônomo do Vaticano).
O que se espera é que com a decisão do STF se deixe de lado essas discussões inúteis acerca de valores eternos e absolutos fundados em idiossincrasias religiosas. Qualquer devoto religioso que insista na defesa de argumentos irracionais é um perigo para o futuro da ciência e para a própria sobrevivência da humanidade. E em que pese sigam imperando entre as altas instâncias da hierarquia dominante brasileira os esquemas que relacionam de maneira estreita a natureza do homem e uma determinada ideologia religiosa, o melhor e mais prudente será, a partir de agora, centrar-nos diretamente nas razões éticas, jurídicas e sociais das pesquisas em células-tronco e reservarmos a questão dogmática para os assuntos próprios do dogma. Como a oportunidade de devolver ás mulheres a alma. Porque não recordamos quando, nem por parte de quem, mas sim que nos parece que lhes foi negada por razões teológicas.
Restituamos aos que sofrem, aos que padecem de alguma enfermidade ou defeito, sua condição completa de ser humano, reconhecendo direitos e garantias que até agora lhes têm sido negados, direitos que assegurem (de forma inviolável, autônoma e digna) a capacidade á esse coletivo humano concreto de plena e livre realização pessoal e social, isto é, de pôr, no que se refere aos seus legítimos interesses, os avanços da ciência ao efetivo serviço da eliminação ou minimização da infelicidade e do sofrimento que padecem: que não se produza sofrimento quando seja possível preveni-lo, e que o sofrimento inevitável se minimize e afete com moderação aos membros individuais da sociedade, aos cidadãos. Ainda que somente seja por respeito aos valores absolutos.
Por certo que em um terreno tão delicado como este a prudência parece ser sempre uma boa atitude. Mas não deveríamos ser prudentes por medo ás pesquisas científicas senão mais bem pela vontade de assegurá-las a qualquer custo em benefício daqueles que as necessitam. Como agudamente observou o ministro Joaquim Barbosa - ao aderir ao grupo de integrantes da Corte que votaram pela constitucionalidade da lei, sem restrições -, "proibir a pesquisa é fechar os olhos para o desenvolvimento científico".
E porque neste ponto são legítimos os interrogantes e as dúvidas morais e jurídicas, parece razoável considerar a necessidade de se desenhar um modelo normativo e institucional (de parâmetros para as pesquisas e criação de órgãos de fiscalização) que, desde já, trate não somente de viabilizar o acesso de todos por igual aos benefícios provenientes dessas pesquisas, como, e muito especialmente, de evitar que alguns (ou muitos) possam sair enormemente prejudicados por um particular uso e aplicação tendencialmente direcionada a interesses espúrios. Isto é, de um modelo normativo e institucional que, assegurando a equidade da distribuição de benefícios e cargas como uma questão de justiça social, trate de disciplinar eticamente essas pesquisas na busca de encontrar pontos de equilíbro para acomodar as expectativas (éticas, de validade jurídico-social e de legitimidade substancial) de uma comunidade de indivíduos diante da qual a qualidade de suas normas será medida por sua humanidade, pela precisão de sua adesão á natureza e ás necessidades humanas.
O certo é que a recente decisão do STF desmascarou a tese daqueles que invocam o direito supremo á vida sem entrar em matizes acerca da qualidade dessa vida e o que se está pagando, em termos de sofrimento, por ela. As células-tronco embrionárias se converteram, assim, em uma bandeira defendida curiosamente por aqueles que parecem não ter, ou se negam a ter quando o tema ronda a impessoalidade, uma dimensão real do sofrimento humano. Isto é, de que aos devotos a quem afeta tal decisão não lhes importam muito esse tipo de preocupação, desde que, no fundo, saiam beneficiados aos olhos e aos caprichos de Deus. Afinal, algumas vezes a maldade e a crueldade também podem disfarçar-se com uma proposta "divinamente ética".
Autores:
Marly Fernandez
Doutora em Filosofía Moral/ Universitat de les Illes Balears- UIB/Espanha; Mestra em Cognición y Evolución Humana/ Universitat de les Illes Balears- UIB/Espanha; Mestra em Teoría del Derecho/ Universidad de Barcelona- UB/ Espanha ;Research Scholar da Universitat de les Illes Balears/ UIB-Espanha (Etología, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana).
Atahualpa Fernandez
Pós-doutor em Teoría Social, ética y Economia pela Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política pela Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas pela Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California,Santa Barbara;Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha;Especialista em Direito Público pela UFPa.; Professor Colaborador Honorífico (Livre Docente) da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana); Membro do MPU (aposentado) ; Advogado.
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