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Para o Husserl das Investigações, não há actos não intencionais como veremos adiante na secção 5. Tal posição corresponde, a nosso ver, a uma rejeição, avant la lettre, dos qualia. Poder-se-á, porém, encontrar algumas pontes com a temática dos qualia sobretudo em Experiência e Juízo, obra editada por Landgrebe em 1938, e na qual Husserl se coloca num plano pré-objectal, o da passividade originária (Cf. a nota de L. Landgrebe em Husserl, 1938. Expérience et Jugement. Erfahrung und Urteil, trad. Denise Souche-Dagues, P.U.F., Paris, 1991, §17, p.82, n.1).
Block, N., 1995. "On a confusion about a Function of Consciousness", in Block, Flanagan e Güzeldere (editores), 1997. The nature of Consciousness, MIT Press, Massachusetts, pp.381-382.
«At the root of all this lie two quite distinct concepts of mind. The first is the phenomenal concept of mind. (…) The second is the psychological concept of mind. This is the concept of mind as the causal or explanatory basis for behavior. According to the psychological concept, it matters little whether a mental state has a conscious quality or not. What matters is the role it plays in a cognitive economy.»(Chalmers, D., 1996. The Conscious Mind, Oxford University Press, Oxford, p. 11)
«The functionalist account corresponds precisely to the definition I have given of psychological properties. Most nonphenomenal mental properties fall into this class, and can therefore be functionally analysed.»(Chalmers, idem, p.16)
Chalmers, ibidem.
Este defende que, pelo menos conceptualmente, é possível pensar um A-consciência sem P-consciência e vice-versa. (Cf. Block, idem, pp. 385-389)
«It is common to reject a simple sense-datum view, and claim instead that one's experience is of a mind-independent world, and that in order for it to be so, one's experience must be representational. This leads some to endorse the view that experience has both representational and non-representational subjective aspects, and for others to embrace purely representational views. Some have questioned whether the representational nature of experience requires that it should be conceptual, and have floated the idea that experience involves a form of non-conceptual representation. But the tendency has been to assume that the choice is between experience as non-representational and subjective, or as involving a mind-independent world and thereby being representational.» (Martin, M., 1999. "The Transparency of Experience", http://www.nyu.edu/gsas/dept/philo/courses/concepts/martin.html)
Observe-se que aqui se fala de experiência em dois sentidos distintos - experiência como acto e experiência como momento do acto. Na segunda acepção a palavra aparece entre aspas e antecedida pela palavra caracter: caracter "experiência". O emprego da mesma palavra nos dois casos visa chamar a atenção para o facto de que não há experiência sem o caracter "experiência", ou seja, que a experiência como acto herda a sua experiencialidade do caracter "experiência". Por outro lado, a experiência como acto pode coincidir com o caracter "experiência" caso nela não se encontrem os restantes caracteres que a podem acompanhar - "significação" e "referência". A afirmação de tal coincidência não se deve, pois, a uma confusão terminológica.
A respeito do emprego da expressão "qualidade do acto", vide supra n. 8.
Sydney Shoemaker emprega, exactamente como Block, a oposição entre propriedades intencionais e propriedades qualitativas (ou fenoménicas), fazendo corresponder as primeiras a objectos intencionais - e por isso mesmo com a propriedade, de segunda ordem, de permanecerem idênticos através de diferentes estados mentais em que sejam visados - e as segundas aos qualia. «If Fred"s house looked yellow to him at both t1 and t2, then with respect to colour his house "looked the same" to him at those two times in the sense that is experiences of it on those two occasions were of the same objective colour, or had the same colour as their "intentional object". Call this the intentional sense of "look the same". But in another sense his house did not "look the same" to him at the two times; call this the qualitative sense of that expression.»(Shoemaker, S., 1982. "The Inverted Spectrum" in Block, Flanagan e Güzeldere, The Nature of Consciousness, p.647) Donde que seja razoavelmente pacífico estabelecer dois grupos de conceitos: i) perspectiva da terceira pessoa, A-consciência e objectos intencionais (ou referentes); ii) perspectiva na primeira pessoa, P-consciência e qualia.
Wittgenstein, L., Philosophische Untersuchungen. Investigações Filosóficas, trad. M.S. Lourenço, 1995, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, p. 545.
Já em Metáforas da Consciência dávamos conta deste tipo de experiência, que ilustramos agora com o exemplo de Wittgenstein. «Há experiências sem percepção - é o caso das experiências, aliás não raras, em que sentimos dificuldades em perceber o que estamos em dado momento a ver. Esta dificuldade só é sentida precisamente porque vemos alguma coisa sem que percepcionemos o quê. Esse ver confuso prova a existência de um plano experiencial anterior á percepção e que é condição material desta. Dir-se-ia que estes dois planos tendem a confundir-se tanto mais quanto menos confusa for uma percepção, e que, portanto, há circunstâncias, embora especiais, que nos confrontam com um ver sem percepcionar. A este ver alguma coisa sem percepção de coisa nenhuma chamamos sensação.»(Barata, A., 2000. Metáforas da Consciência, Campo das Letras, Porto, p. 202) Observe-se, contudo, que aí a sensação é pensada apenas no âmbito de uma dualidade com a percepção, quando a relação envolve três termos. Por isso, afirmar que "ao ver alguma coisa sem percepção de coisa alguma chamo sensação" é insuficiente. é preciso explicitar que á sensação falta um referente objectivo, característico da percepção, mas também que lhe falta o caracter sentido, justamente aquele caracter que permite o reconhecimento, desde logo nos qualia.
Isto significa que é sempre possível, num certo registo de atenção, converter um quale numa sensação. Veremos adiante que também toda a percepção pode ser convertida num quale. Ou seja: através da focalização da atenção para certos registos, é sempre possível dispensar na experiência de uma representação intencional os caracteres "significação" e "objecto" que nela ocorrem. Contudo, note-se, numa experiência em que não ocorram tais caracteres não é possível suscitá-los por nenhuma modificação do modo da atenção. Não se deve confundir este trabalho da atenção que permite a conversão do olhar com a abstracção, numa experiência, de um seu momento. A diferença é que a conversão acede a uma experiência enquanto acto, ao passo que a abstracção simplesmente isola momentos do acto (cujo acesso resulta apenas de forma derivada).
A respeito desta afirmação de que os qualia são privados por não serem objectais (e apesar de serem significativos), é muito interessante as observações de Luísa Couto Soares sobre a crítica de Wittgenstein ás "linguagens privadas" - «Nada nos impede de conciliar a crítica wittgensteiniana, lúcida e pertinente, com uma perspectiva da subjectividade do sentir na qual se reencontram a dimensão "privada", enquanto sentir de um sujeito, com a dimensão "pública" que lhe é conferida precisamente pelo seu carácter intencional. A ideia principal de Wittgenstein na sua argumentação conta a linguagem privada é precisamente corrigir o modo de entender as sensações como "fenómenos internos", "objectos de sentido interno", apresentando-no-los como "estados de um organismo vivo". O que é posto em causa é precisamente o estatuto "objectal" das sensações, sentimentos, dores, etc.(...)» (Couto Soares, L., "A dinâmica intencional da subjectividade", Análise, 21 (2000),Campo das Letras, Porto, p.53)
«When you attend to a pain in your leg or to your experience of the redness of an apple, you are attending to a quality of an occurrence in your leg or a quality of the apple. Perhaps this quality is presented to you as an intrinsic quality of the occurrence in your leg or as an intrinsic quality of the surface of the apple. But it is not at all presented as an intrinsic quality of your experience.» (Harman, G., 1990. "The Intrinsic Quality of Experience", in Block, Flanagan e Güzeldere, The Nature of Consciousness, p. 668)
«Standing on the beach in Santa Barbara a couple of summers ago on a bright, sunny day, I found myself transfixed by the intense blue of the Pacific Ocean. Was I not here delighting in the phenomenal aspects of my visual experience? And if I was, doesn't this show that there are visual qualia?
I am not convinced I experienced blue as a property of the ocean not as a property of my experience. My experience itself certainly wasn't blue. Rather it was an experience that represented the ocean as blue. What I was really delighting in, then, were specific aspects of the content of my experience. It was the content, not anything else, that was immediately accessible to my consciousness and that had aspects that were so pleasing» (Tye, M. 1992. "Visual qualia and visual content". In The Contents of Experience, edited by T. Crane. Cambridge: Cambridge University Press, p. 160 - citado de Martin, M. 1999."The Transparency of Experience" http://www.nyu.edu/gsas/dept/philo/courses/concepts/martin.html)
Uma posição crítica relativamente aos argumentos de M.Tye e G. Harman, algo semelhante a esta, é exposta por Georges Rey - «Harman is presenting us with a wrong prediction (...). I think we can attend to "intrinsic" properties of our experience, but without indulging in qualiaphilia and regarding those properties as properties of the representation.» (Harman, G., 1997, Contemporary Philosophy of Mind, Blackwell, Oxford e Massachusetts, p. 302.)
Estabelecemos aqui um filiação forte da diferença entre a atitude própria á tematização de representações não intencionais e a atitude própria a representações intencionais (no caso da percepção, respectivamente qualia e percepta) na diferença aristotélica entre logos hermeneutikos e logos apofantikos. Na sequência desta filiação, a retórica e a poética, em contraste com o discurso sobre a verdade, são discursos que dão a experienciar propriedades comparativas de uma experiência, que reproduzem experiências para delas tirar um efeito experienciável (sob o compromisso da verosimilhança).
Chalmers, idem, p.227.
Chalmers, idem, p. 221.
O mesmo tipo de equívoco parece estar presente na seguinte afirmação de Colin McGuinn - «what the experience is like is a function of what it is of, and what it is of is a function of what it is like». (McGuinn, C., 1988. "Consciousness and Content", in Block, Flanagan e Güzeldere, The Nature of Consciousness, p.298) Isto não significa que McGuinn esteja equivocado quando, por outro lado, afirma que «(…)perceptual experiences are Janus- faced» (ibidem). é que esta última afirmação é pronunciada a respeito das experiências perceptivas, ao passo que aquela generaliza uma implicação de duplo sentido independentemente do tipo de experiência em causa.
A explicação deste processo depende da possibilidade de dar uma resposta explicativa ao mind-body problem, tal como é habitualmente designado na literatura filosófica mais recente. Mas, observe-se, da carência de uma explicação para o processo não se infere de forma alguma a inexistência do mesmo. Em todo o caso, o presente artigo não se debruça sobre o mind-boddy problem.
«Dennett, for example, has supposed in some of his writings that it is of the essence of qualia to be non-relational, incorrigible (too believe one has one is to have one) and to have no scientific nature. This is what you get when you let an opponent of qualia define the term.» (Block, N., "Qualia" in Guttenplan, S. (editor), 1994. A Companion to the philosophy of mind, Blackwell, Oxford, p.514)
Church, Jennifer, s/d. "Fallacies or Analyses?", in Block, Flanagan e Güzeldere, The Nature of Consciousness, p. 425.
A noção de um Background é retirada de John Searle, a que corresponde a seguinte definição: « O Background é um conjunto de capacidades mentais não representacionais [restringindo aqui o alcance de "não representacionais" a "não intencionais"] que permite que toda a representação tenha lugar "capacidades mentais não representacionais" (Searle, J,. 1983. Intentionality. Intencionalidade, trad. Madalena Poole da Costa, Relógio d"Ãgua, Lisboa, 1999, p. 185).
Shoemaker, S., idem, p. 649.
Block, N., idem, p. 408.
Husserl, E., Logische Untersuchungen, V, §11.
"Na significação se constitui a referência ao objecto. Assim, pois, usar com sentido uma expressão é o mesmo que referir-se expressivamente ao objecto (representar o objecto). (...) A expressão por ter significação refere-se a um objecto."(Husserl, E., idem, I, §15)
Paisana, J., ""Experiência e Comunicação"", Phainomenon, 1 (2000), Colibri, Lisboa, p. 79.
Paisana, J., "Discurso Científico e Poético na Filosofia de Aristóteles", Philosophica, 9 (1997), Colibri, Lisboa, p.83.
Piotr Boltuc, a este propósito, afirma o seguinte: «The first person statements are based on an immediate experience (or on a hermeneutics) of qualia, and not on proof of any kind.» E referindo-se a Harman acrescenta: «Harman adopts Dilthey's notion (he calls it Das Verstehen) which refers to the understanding non-reducible to the method of physical science in studying the mind. Das Verstehen refers to the irreducibly first-person experience necessary for understanding certain claims e.g. "Pain!" As Harman put it, obviously following Nagel: "You can know everything objective there is to know about a person without knowing what it is like to be that person".» (Boltuc, P., 2000. "Qualia, Robots and Complementarity of Subject and Object", in http://www.bu.edu/wcp/Papers/Mind/MindBolt.htm)
Paisana, J., Phainomenon, p. 79.
Alguns dos pontos desenvolvidos neste artigo não o teriam sido sem um precioso conjunto de observações e precisões que devo a Luísa Couto Soares, João Paisana e Pedro Alves, que me obrigam, e reconhecidamente, a um agradecimento.
Autor:
André BarataUniversidade da Beira Interior
Instituto de Filosofia Prática
URL: www.phi.no.sapo.pt
www.ifp.ubi.pt
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