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Alienação fiduciária: algumas considerações sócio-políticas (página 2)

Suzana J. de Oliveira Carmo

Talvez, a referida norma fosse adequada áquela circunstância sócio-política, onde sob o ponto de vista do Regime Militar, o equilíbrio das relações contratuais e a proteção ás liberdades do homem não figuravam em primeira ordem a este legislador atípico, nem nos parece, que estavam no plano das prioridades governamentais. Ademais, é uma mácula histórica neste lapso temporal, onde o poder executivo legiferou sem qualquer antevidência ao homem comum, quiçá preocupou-se imaginar este homem comum, como sujeito de direito e contratante nas relações privadas, portanto, passível da tutela estatal. Era um momento em que estas questões não compunham a vontade do legislador.

Porém, hoje, a referida norma já não nos serve, estando totalmente disforme ante a nossa realidade, haja vista, os rumos sociais alcançados ao longo destas décadas e, o dinamismo fático atinge as relações de direito, bem como, as formas pelas quais se dão os negócios jurídicos.

Não obstante, Adroaldo Fabrício, com exposição lógica e convincente argumentação, demonstra haver incompatibilidade dos bens fungíveis com a alienação fiduciária, principalmente nos casos daqueles que constituem o próprio objeto de mercadoria do financiamento. Com isso, tem-se que:

"Melhor entendimento é o de que na alienação fiduciária é inadmissível coisas fungíveis.[...]tenho, para mim, todavia, sem embargo de opiniões respeitabilíssimas em contrário, que a alienação fiduciária deve ter como pressuposto á infungibilidade da coisa alienada, para que não se dificulte a satisfação do credor, em caso de mora do devedor ".5

Sublinhados os tópicos trazidos a foco, verifica-se que por força de lei, foi instituída uma modalidade distinta de alienação fiduciária em garantia em nosso ordenamento jurídico, uma forma pela qual se admitiu a possibilidade de ser transferido ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta do bem, bem adquirido pelo fiduciante com o empréstimo concedido, porém, conservando ao devedor fiduciante o direito de uso e fruição, ou seja, a posse direta do bem. Contudo, o exercício deste direito de detenção da posse direta da coisa móvel objeto da alienação, acarreta ao mesmo o ônus de assumir a condição de depositário do bem, vez que o texto legal faz tal equiparação.

Porém, esta modalidade de alienação fiduciária gera controvérsias, especialmente no que é pertinente á equiparação do devedor fiduciante ao depositário, pois são figuras jurídicas distintas, como também o são os institutos de direito. Há pontos necessariamente plausíveis de serem relembrados, senão vejamos: O depósito é em regra, gratuito; é contrato principal; não confere ao depositário a prerrogativa de uso da coisa depositada; não se resolve pelo cumprimento de uma outra obrigação e só advém dele a obrigação de restituir o bem, caso o depositante o reclame, de forma que, está devolução jamais será impulsionada pela mora ou inadimplemento pecuniário, noutras palavras, por dívida contraída com o depositante.

Conseqüentemente, desse modo, o legislador ordinário autoriza uma transmutação jurídica, uma metamorfose do instituto, tornando-o outro, bem diverso do originário, e esta metamorfose de finalidade, converte a alienação fiduciária em garantia em depósito clássico.

Reiterando que, o Decreto-Lei 911 foi promulgado á luz da Constituição de 1969, que em seu art. 153, § 17, prelecionava que: "Não haverá prisão civil por dívida, multa ou custas, salvo o caso do depositário infiel ou responsável pelo inadimplemento de obrigação alimentar, "NA FORMA DA LEI ". (grifo nosso).

Neste contexto, a expressão "NA FORMA DA LE" foi interpretada pelo AI 5, de maneira equivocada, e será que esta errônea interpretação concedeu ao legislador infraconstitucional o poder de igualizar figuras jurídicas,ou, ainda, de modificar institutos? Notadamente, sim! Pois, tal poder se revela na equiparação do fiduciante ao depositário, posto que, a "lei ordinária" elasteceu as hipóteses de prisão civil, com isso, vemos uma precária legalidade violar uma norma de cunho e índole constitucionais.

A Constituição de 1988, limitou a atividade legiferante infraconstitucional, ao suprimir de seu texto a expressão " NA FORMA DA LEI " que finalizava a disposição do texto revogado, dando ao inciso LXVII uma interpretação restritiva, tornando o referido dispositivo em norma de eficácia plena, não mais permitindo que a legislação ordinária margeasse a ampliação de seus efeitos.

Ante estes fatos gritantes, diretrizes nos são traçadas por juristas como Celso R. Bastos:

"Vemos que a Constituição de 1988 é o marco a partir do qual se erige a ordem jurídica. Seria um contra-senso admitir que o que lhe vem abaixo (Dec-Lei 911/69) viesse de repente a insurgir-se contra essa ordem lógica, fornecendo critérios para a inteligência do próprio preceito que lhe serve de fundamento de validade".6 (inserção e grifo nosso)

Diante do exposto, concluímos, solidários á idéia de que todo credor faz jus a seu crédito. Contudo, resta-nos a certeza de que do ponto de vista legal, impõe-se o reconhecimento da inconstitucionalidade da prisão civil do devedor fiduciante, havido impropriamente como depositário infiel, não só do prisma jusnaturalista, mas ante a evidente lesão e violação ao texto Constitucional. E ainda, há que ser ressalvada a constitucionalidade do Decreto-Lei 911/69, em face de seu vício de forma insanável, o que reflete, objetivamente, sua ilegalidade. Temos, por fim, que conceber o subjugo do homem (devedor) é um grande ultraje humano, mas, violar o texto constitucional em que se funda o Estado, é muito mais grave, porque importa em constranger e expor a perigo toda a sociedade.

Notas de rodapé convertidas

1 CRUZ E TUCCI, José Rogério. "Processo Civil; Realidade e Justiça", Ed. Saraiva, São Paulo, 1994. p.1-2
2 MOREIRA ALVES, José Carlos."Direito Romano", Vol.II, ed.6ª, Ed.Forense, Rio de Janeiro, 1998. p.125
3 Ensaio sobre a Alienação Fiduciária em Garantia, ACREFI, São Paulo, 1969. p. 29-30.
4 In O Desvio de Poder na Função legislativa, Ed. FTD, São Paulo,1997. p.63.
5 in RT 617/17
6 in, Curso de Direito Constitucional.

 

 

Autor:

Suzana J. de Oliveira Carmo

suzanajm[arroba]hotmail.com



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