No último quartel do Séc. XX, instalou-se na Filosofia da Linguagem um vivo debate entre duas teorias acerca da referência, a teoria descritivista, formulada por Bertrand Russell e com raízes na filosofia de Frege, e, a desafiar esta, a teoria causal da referência, sob o impulso de Putnam e de Kripke. Há, por outro lado, importantes estudos do pensamento de Husserl, centrados sobretudo em Ideias I, que dão conta da possibilidade de uma sua leitura fregeana.
O intuito desta comunicação reside, primeiramente, em mostrar que, não obstante essas leituras, os aspectos semânticos mais originais na fenomenologia de Husserl e, além disso, também mais interessantes para o debate sobre o problema da referência, se encontram logo na Primeira das Investigações Lógicas. Com efeito, nesse texto, cremos ser possível mostrar que a teoria da expressão de Husserl não se ajusta nem á teoria descritivista nem á teoria causal da referência.
As razões do desajustamento, segundo tese que propomos, prendem-se com o facto de ambas as teorias da referência, descritivista e causal, disputarem entre si o problema da fixação da referência das expressões como se esse fosse o problema de saber o que faz com que as expressões refiram.
Mostrar que não é assim com Husserl, conduz-nos a um terceiro problema, na obra póstuma Experiência e Juízo, sobre a constituição dos referentes, enquanto objectos de uma relação directa ao individual, ou seja, enquanto objectos de experiência. Quererá isto dizer, concluindo, que o problema da referência, antes de respeitar ás expressões referenciais, respeita á própria experiência e que tal problema deverá, por isso, resolver-se na constituição passiva e ante-predicativa da experiência.
A teoria descritivista afirma que as extensões dos termos referenciais são determinadas exclusivamente pelas suas intensões. Por outras palavras, a intensão de um termo referencial é condição suficiente para a determinação da sua extensão. E diz-se descritivista porque, por um lado, assenta na determinação da intensão desse termo e porque, por outro lado, esta determinação se faz, empregando o vocabulário de Russell, através de uma descrição definida. No caso de termos genuinamente referenciais (como nomes próprios ou termos para tipos naturais), considera-se que a fixação da referência se faz via uma descrição definida associada ao termo.[1]
Esta posição teórica obriga a duas pressuposições problemáticas no que respeita aos termos genuinamente referenciais. A primeira pressuposição resume-se á tese descritivista de que os termos genuinamente referenciais refeririam o que uma presumível descrição definida associada refere. O problemático aqui prende-se com o facto de, em situações contrafactuais, como ilustrou Saul Kripke, os nomes próprios (designadores rígidos) e as descrições definidas (designadores flexíveis) terem comportamentos semânticos diferentes, a saber, enquanto aqueles obtêm necessariamente os mesmos referentes, estas só contingentemente obtêm os mesmos referentes. Por exemplo, numa situação contrafactual, Aristóteles poderia muito bem não ter sido o maior filósofo da Antiguidade; significa isto que a descrição definida "O maior filósofo da Antiguidade" obteria um referente diferente na situação contrafactual sem que o nome próprio "Aristóteles" deixe, apesar disso, de referir Aristóteles. Ora, não se podendo deixar de considerar esta diferença de comportamento entre nomes próprios e descrições definidas, então não será aceitável afirmar que a referência de um nome próprio (ou de qualquer outro termo genuinamente referencial) seja suportada por uma descrição definida, i.e, seja o resultado de uma determinação intensional.[2]
A segunda pressuposição problemática prende-se com a ideia de que o uso competente de um termo genuinamente referencial obrigaria á posse, por parte do sujeito que emprega o termo, de uma descrição definida associada a esse termo. Significa isto que o utente de um termo genuinamente referencial (seja um nome próprio, um termo para espécie natural ou um qualquer termo geral) não poderia deixar de estar na posse do conhecimento do conjunto de propriedades inclusas na descrição definida associada ao termo. Ora, tal vínculo colide com a existência de usos igualmente competentes de termos genuinamente referenciais por parte de sujeitos linguísticos que, não obstante, revelam variados graus de conhecimento (ou de ignorância) de descrições associáveis a esses termos.
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