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Nietzsche e a educação (página 2)

Vicente Zatti

            Mas a vontade de poder não é uma força absoluta que a tudo domina. Ela é uma força operante em todo o acontecer e é composta por uma pluralidade de forças. Isso não determina um fim necessário, havendo o rompimento com o sentido do progresso histórico. "Quero dizer que também a inutilização parcial, a atrofia e a degeneração, a perda de sentido e propósito, a morte, em suma, está entre as condições para o verdadeiro progressus, o qual sempre aparece em forma de vontade e via de maior poder, e é sempre imposta à custa de inúmeros poderes menores."[10]

            Como nos diz Muller-Lauter, "A vontade de poder é a multiplicidade das forças em combate umas com as outras".[11] Safranski[12] afirma que Nietzsche enxergou que o poder não é algo substancial, mas relacional. é o jogo e o contrajogo dessa multiplicidade de forças. As unidades de poder são mutáveis, a unidade é apenas organização, sob a ascendência transitória de vontades de poder dominantes. Dessa forma: "A unidade de formação de domínio, nas quais está inserida a multiplicidade de quanta de força, não tem nenhum ser."[13]

            O ser é uma ficção vazia. A unidade é uma tentativa de nosso intelecto para compreender e simplificar a realidade, o que leva ao engano e à ilusão. "De fato, nada até agora teve mais ingênua força persuasiva do que o erro do ser, ..."[14] Por isso, na tentativa de auto-afirmação, de criar, de querer mais, a vontade de poder cria um número infinito de "verdades".   

            Müller-Lauter adverte que temos que nos prevenir e não substancializar a vontade de poder no sentido de totalidade do efeito. Isso significa que a vontade de poder se deixa encontrar em tudo o que consideramos, mas ao mesmo tempo, ela não subsiste por si. "A qualidade vontade de poder não é Um efeito; esse Um nem sequer subsiste de alguma maneira por si, nem sequer é fundamento do ser. Só há efetiva unidade como organização e combinação de quanta de poder."[15]

            A vontade de poder só existe como única qualidade nos quanta de poder ou como essência apenas na multiplicidade, nunca como um princípio universal. Assim, os fins, sentidos, metas, são maneiras de expressão e metamorfoses de uma vontade. Falar em uma vontade de poder que submete outras é uma simplificação insuficiente. Müller-Lauter usa os termos jogo de oposição e concerto para explicar como se dá a vontade de poder. Por exemplo, um homem forma um quantum de poder que organiza em si inúmeros quanta de poder e ao mesmo tempo, por estar em relação com outros homens, pertence a organismos mais abrangentes (sociedades, povos, estados).

            Da mesma forma que para Nietzsche, a unidade só é unidade como organização, o todo não pode ser um mundo unitário. Isso porque essa unidade teria que pertencer a um incondicionado, e "não se poderia deixar de tomá-lo como instáncia suprema e batizá-lo Deus."[16] Incorreríamos então, em preconceito metafísico. Dessa forma, o mundo não está enraizado na vontade de poder como um fundamento do ser. Quando Nietzsche fala de mundo não entende como unidade e sim como unidade de organização, mas não há nenhuma força fundamental organizando o mundo num todo. O mundo então, é o caos das organizações de poder se alternando permanentemente. Mas, a vontade de poder tem como traço fundamental a estabilização em meio a esse jogo de vontades de poder.

            As próprias "leis naturais" não são provas de que haja uma constáncia originaria de todo acontecer. A inabalável seqüência de certas aparências não demonstra nenhuma lei, mas uma relação de poder entre duas ou mais forças. Por isso não há lei natural universal, todas são resultados de vontade de poder.

PERSPECTIVISMO

            Os conceitos surgem a partir da diferenciação. Comparando os diferentes, o homem coloca semelhanças e com elas formula os conceitos. Esse processo é arbitrário, é o ser humano que confere um sentido ao acontecimento, domina-o, coloca-o numa forma adequada a si próprio."Portanto, conhecer é um processo de poder no qual estão forças criativas, um processo que culmina em figuras e idéias acabadas, poderosas, vitais. O que afirma dessa maneira então é chamado de verdade. Nesse processo a verdade é um poder que se torna verdadeira na medida em que se impõe."[17]

Se as verdades não são dadas a nós a priori e sim criadas por nós, elas são portanto, interpretações que fazemos da realidade, são perspectivas em meio a inúmeras outras. O critério de verdade deixa de ser universal e passa a ser condicionado ao poder que a interpretação possui para se estabelecer."Todas as interpretações são perspectivas; não há qualquer parámetro de medida no qual se pudesse provar qual é mais correta e qual a menos correta, o único critério para a verdade de uma exposição da efetividade consiste em que medida ela está em condições de se impor contra outras exposições. Cada exposição tem tanto direito quanto tem poder. A compreensão da perspectiva de todas as interpretações, a que conduz a doutrina da vontade de poder de Nietzsche, pode por isso, propiciar aos que são fortes em poder a boa consciência para a incondicional imposição de seus ideais".[18]

O conhecer já é um exercício de vontade de poder, além disso, ninguém pode conhecer ou representar sem categorias específicas e condicionadas, o distanciamento que seria necessário para a imparcialidade é então, impossível. "Isso porque o intelecto humano não poderá deixar de se ver, ao proceder a essa análise, através das suas formas perspectivistas, e só delas".[19] Não havendo conhecimento que não afirme uma perspectiva, temos de admitir a possibilidade de um número infinito de interpretações.

Nietzsche refuta a existência de conhecimentos profundos no sentido metafísico, para ele o conhecimento é uma força de superfície. Isso porque o conhecer se faz por meio de conceitos e assim sendo, o pensar é um denominar, o que decorre do arbítrio do homem e não provém de nenhuma essência. Afirma que os conceitos correspondem à imagem, portanto, superficiais. Não havendo essência, a priori, o conhecimento permanece na superfície.

A impossibilidade de um discurso teórico neutro é constantemente enfatizada por Nietzsche, todo discurso que queira se estabelecer como verdade depende do valor que damos, que criamos. Se depender do valor que damos, ela não possui os atributos que a caracterizariam como verdade, portanto é uma ilusão. Inclusive, a veneração pela ilusão da verdade é conseqüência de outra ilusão, Deus. "O mundo que tem valor, criamo-lo nós! Ao reconhecer isto, reconhecemos também que a veneração pela verdade é já a conseqüência de uma ilusão, que era Deus, e que, mais que a verdade, devemos estimar a força que cria, simplifica, configura e inventa. Tudo é falso! Tudo é permitido!"[20]

"O que é verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos..., após longo uso, aparecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões..."[21] Verdades são ficcionais, são ficções úteis a serviço da autoconservação, mas não apenas, servem para a afirmação da vontade de poder. Por isso vontade de poder ocasiona um número infinito de verdades. Não havendo uma compreensão de mundo como unidade da forma como pretendia a metafísica, abre-se a possibilidade para várias interpretações, para as diferenças, para as perspectivas.

O conhecer é a busca pela satisfação das próprias necessidades, é vontade de afirmar o próprio poder. Para compreendermos isso, Nietzsche usa a metáfora da teia de aranha. "Ao fim e ao cabo, não procedemos em relação ao conhecimento de maneira muito diferente da aranha, quando tece a teia para caçar e sugar as presas: ela pretende viver graças a estas artes e atividades, satisfazer as suas necessidades - a nós conhecedores, pretendemos exatamente o mesmo ao deitarmos a mão a sóis e a átomos, como que os fixando e determinando".[22]

Nietzsche afirma que todo aparelho de conhecimento é um aparelho de abstração e de simplificação que não visa o conhecimento, mas o domínio das coisas. Assim, não há conhecimento absoluto, o caráter perspectivista, ilusório é intrínseco à existência. Conhecer é um processo que nós inventamos e é controlável por nós mesmos. Essa capacidade de criar que compreende impor forma, descobrir, inventar, é hábito que se implanta de tal forma, a tal ponto, que a vida de espécies inteiras dependem deles. Nessa atividade, nós acabamos impondo nossos valores ao mundo:"...um mundo considerado segundo valores, ordenado, escolhido de acordo com valores, isto é, neste caso, segundo o ponto de vista da utilidade para a conservação e aumento de poder de uma  determinada espécie animal".[23]

A lógica é um exemplo de criação feita por abstração e simplificação pelo homem. "A lógica fornece o modelo de uma ficção completa. Procede-se aqui a invenção de uma maneira de pensar em que um pensamento é posto como causa de outro pensamento".[24] O pensamento lógico ou qualquer espécie de conhecimento consiste na introdução de ficções completas como modelos com que pensamos os processos mentais de uma maneira mais simples do que acontece na realidade. Mas é devido a essa simplificação que o pensamento se torna captável por sinais, perceptível e comunicável. Essa simplificação dá a falsa idéia de analogia e identidade. Por isso o conhecimento é a falsificação do heterogêneo e do imensurável a tal ponto de torná-los idênticos, análogos, mensuráveis. No entanto, é justamente essa falsificação que torna possível a vida. "A vida, por conseguinte, só é possível em virtude de um tal aparelho de falsificação. Pensar é um transformar falsificado, sentir é um transformar falsificado, querer é um transformar falsificado".[25] O fato de ser condição da vida não elimina o caráter fictício. Isso ocorre porque aquilo que para uma perspectiva é insuportável, para outras é adequado.

A ordem, a clareza, o caráter sistemático não são necessariamente inerentes às coisas em si. Elas são colocadas pelo intelecto nas coisas para poderem ser compreensivas. Todos acontecimentos têm um caráter interpretativo. O interpretador agrupa fenômenos selecionados e reunidos. Então ocorre uma antromorfização, introdução de nossos modos de avaliar e compreender nos acontecimentos. "Introduzimos os nossos valores dentro das coisas como interpretação. Todo sentido é vontade de poderio".[26]

O conhecimento é modo de interpretação e modo de explicação. Nós distinguimos o autor da ação, causa, que passa a ser o sujeito, e aquilo que é representado, pensado, desejado, inventado, é a coisa, o objeto. Assim, não conseguimos imaginar acontecimentos sem intenções o que assenta a necessidade psicológica de crer na causalidade. "O conhecimento só é possível com base na crença do ser".[27]

Nós não suportaríamos um mundo que não coubesse em nossas categorias. Por isso criamos novas formas de conservação."O intelecto, como um meio para a conservação do indivíduo, desdobra suas forças mestras no disfarce; pois este é o meio pelo qual os indivíduos mais fracos, menos robustos, se conservam, aqueles aos quais está vedado travar uma luta pela existência com chifres ou presas aguçadas".[28] Portanto, conhecer foi uma forma que nossa espécie encontrou para afirmar sua vontade de poder, já que não possuía chifres ou presas para tal. Portanto, não existe conhecimento e ciência que sejam universais.

Dessa forma a verdade perde seu status tradicional. Passa a ser resultado de uma designação da realidade como metáfora, em que o homem na tentativa de afirmar sua vontade de poder produz tais verdades. "A nossa capacidade de produzir verdades não passa de impulso do intelecto, como uma ramificação da vontade de potência. O mundo inteligível e suas verdades são produzidas por essa vontade".[29]

3. A GENEALOGIA DA MORAL

Nietzsche exclui a validade incondicional de uma construção que impõe o conhecer e o agir como fundamento absoluto e vai falar que o único fundamento é o ato de fundar, impor, valorar, ato criativo que aprecia ou deprecia. Esse ato criativo é uma forma de interpretação que impõe sua perspectiva, também no campo moral. "A interpretação instituidora de novos valores, por parte dos futuros poderosos só pode ser, do mesmo modo, perspectivas".[30]

Na Genealogia da Moral, Nietzsche procura mostrar que os conceitos de bom e mau não são conceitos que se estabelecem de acordo com uma razão prática universal. Esses conceitos são expressões do modo de ser daqueles que avaliam. Quem avalia estabelece um valor, que, portanto, não é fato moral e sim uma interpretação moral.

Coloca que o conceito "bom" foi estabelecido pelos mais fortes: "Foram os bons mesmos, isto é, os nobres poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, e vulgar e plebeu".[31] Então os mais fortes que tiveram condições de afirmar sua vontade de poder fizeram valer sua interpretação e estabeleceram como bons seus próprios atos e pensamentos. Já os plebeus que tinham menos força de afirmação, tiveram seu modo de vida posto como sinônimo de ruim. A origem do conceito de ruim está próxima a comum, baixo. Bom é a afirmação da aristocracia, do mais nobre, do guerreiro mais forte.

Bem diferente dos juízos de valor cavalheiresco-aristocráticos que valorizam a guerra, a aventura, a caça, a dança, o vigor físico, é o modo de valoração nobre-sacerdotal, os sacerdotes são os mais impotentes. "Na sua impotência, o ódio toma proporções monstruosas e sinistras, torna-se a coisa mais espiritual e venenosa".[32] A vingança sacerdotal gerou a inversão dos valores aristocráticos e estabeleceram que bons seriam os pobres, impotentes, baixos, sofredores, necessitados, feios, doentes. Para esses últimos, caberia toda bem-aventurança e, para os nobres e poderosos, a desventurança, o castigo eterno. Essa revolta de escravos, como fala Nietzsche, começou com os judeus e foi legada ao cristianismo.

"A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginária obtêm reparação".[33] Foram esses homens ressentidos que estabeleceram o conceito de "mau" para seu inimigo, o homem nobre. Nota-se que o homem nobre se estabelece como bom e cria o conceito de ruim para aquilo que é diferente e inferior. Já os ressentidos atribuem a seu inimigo, o conceito de mau. Então, com a rebelião escrava ocorre uma transvaloração que cria novo sentido aos valores. O "bom" da moral do nobre se torna o "mau" e o "ruim" se torna o "bom".

O homem forte não vê o homem fraco como inimigo, mas o contrário ocorre. No entanto, a impotência em reagir contra o inimigo, fez a vingança tomar roupagem de virtude que cala, renuncia, espera e remete a vingança a Deus e a um reino imaginário, o Reino dos Céus. Isso também é fruto do instinto de autoconservação, auto-afirmação, é uma tentativa doente de exercício de poder.

Isso foi constituidor do que hoje chamamos de civilização: "Supondo que fosse verdadeiro o que agora se crê como verdade, ou seja, que o sentido de toda cultura é amestrar o animal de rapina homem, reduzi-lo a um animal manso e civilizado, doméstico, então deveríamos sem dúvida tomar aqueles instintos de reação e ressentimento, com cujo auxílio foram finalmente liquidadas e vencidas as estirpes nobres e os ideais, como os autênticos instrumentos de cultura".[34] Com isso, o autor não pretende justificar qualquer poder aristocrático, mas demonstrar a origem histórica de uma moral que era dita universal.

Essa moral surge como uma tentativa de tornar-se forte, como maneira de exercício da vontade de poder. "Fé em quê? Amor a quê? Esperança de quê? -Esses fracos - também eles desejam ser fortes algum dia, não há dúvida, também o seu reino deverá vir algum dia - chamam-no simplesmente o Reino de Deus, como vimos: são mesmo tão humildes em tudo".[35] Nessa citação dá um exemplo de contradição do pensamento religioso. Nele também há o desejo de ser forte e, portanto, o discurso de humildade serve como máscara para tal desejo de poderio.

O homem foi tornado confiável, sociável, por meio do que Nietzsche chamou de moralidade do costume. "...o papel fundamental da moralidade do costume e da tradição: inscrever no homem o social, conter-lhe os instintos".[36] Foi a partir do momento em que o homem foi capaz de fazer promessas que foi possível um homem constante, uniforme, confiável, um homem liberto que poderia prometer, que tinha poder sobre o próprio destino e, portanto, consciente. A própria consciência é historicamente constituída. Mas, como o homem tem tendência natural para esquecer, e também o que causa dor fica por mais tempo na memória, os povos utilizaram castigos, sacrifícios, martírios. Isso foi feito em especial pelas religiões. Com a ajuda dessa espécie de memória, chegou-se à razão, que proporciona seriedade, domínio sobre os impulsos.

A má consciência ou consciência de culpa teve origem no conceito de dívida. Durante muito tempo quando o devedor não pagava, o credor podia provocar-lhe um dano equivalente, compensando a dívida com a dor. "Nesta esfera, a das obrigações legais, está o foco de origem desse mundo de conceitos morais: culpa, consciência, dever, sacralidade do dever - o seu início, como o início de tudo grande na terra, foi largamente banhado de sangue".[37]

Quanto mais ativo, violento, excessivo for o homem, tanto mais livre será, terá uma melhor consciência, pois não precisa avaliar o objeto de modo falso. Inversamente a má consciência é presente no homem ressentido. A origem da má consciência está na pressão que o homem viveu ao ser encerrado no ámbito da sociedade e da paz. Ao não poder dar vazão aos seus instintos por estar em sociedade, descarregou seus instintos para dentro, ou seja, internalizou-os, surgindo o que se denomina alma. Essa separação do homem de seu passado animal e a internalização de seus instintos o tornam doente.

é igualmente o sentimento de culpa que dá origem a idéia de Deus: "A convicção prevalece de que a comunidade subsiste apenas graças aos sacrifícios e às realizações dos antepassados - e de que é preciso lhes pagar isso com sacrifícios e realizações: reconhece-se uma dívida que cresce permanentemente, pelo fato de que os antepassados não cessam em sua sobrevida como espíritos poderosos, de conceber à estirpe novas vantagens..."[38] O cristianismo foi a religião que encontrou um alívio momentáneo para a culpa do homem, um Deus que é crucificado para redimir a nossa culpa.

Na terceira parte da Genealogia da Moral, Nietzsche analisa o ideal ascético, que é um suporte metafísico para religiões, moral, filosofia, ciência e educação que tenha pretensão de universalidade. O autor nos diz que o ideal ascético manifesta-se como instinto não satisfeito, um instinto contraditório à vontade de vida, sua origem é a vida que se degenera, e vê nesse ideal a única maneira de se conservar. "Pois uma vida ascética é uma contradição: aqui domina um ressentimento ímpar, aquele de um insaciado instinto de vontade de poder que deseja senhorear-se, não de algo da vida, mas da vida mesma; ... aqui se faz a força estancar a fonte da força..."[39] A contradição consiste em lutar contra a própria vida e ao mesmo tempo retirar dessa luta a maneira de preservar a vida. Isso porque no ideal ascético um ressentimento se volta contra tudo o que é forte, próspero, mas procura de uma forma doentia afirmar sua vontade de potência. Por isso a moralidade nada tem de elevação, de aperfeiçoamento, mas é a desvalorização da vida, freamento das pulsões, negação da finitude.

"O ideal ascético nasce do instinto de cura e proteção de uma vida que se degenera, a qual busca manter-se por todos os meios, e luta por sua existência; indica uma parcial inibição e exaustão fisiológica, que os instintos de vida mais profundos, permanecidos intactos, incessantemente combatem com novos meios e invenções."[40] Ideal ascético é um recurso a que certos se apegam para preservar a vida. A condição doentia do homem domesticado, do homem que não pode extravasar sua força, frente a sua degeneração, é tentar afirmar a vida em outro plano que não a realidade. Então ele procura o ideal como forma de se conservar.

O sacerdote ascético afirma sua vontade de poder, sua vida, ao dominar os fracos. Assim Nietzsche se refere ao sacerdote ascético: "A ele devemos considerar o salvador, pastor, defensor predestinado do rebanho doente: somente então entenderemos a sua tremenda missão histórica. A dominação sobre os que sofrem é o seu reino, para ela o dirige seu instinto, nela encontra ele sua arte mais própria, sua mestria, sua espécie de felicidade".[41] Todo doente procura um culpado para sua doença. O sacerdote ascético diz: "Isso mesmo, minha ovelha. Alguém deve ser culpado: mas você mesma é esse alguém - somente você é culpada de si!"[42] Com isso a direção do ressentimento é mudada. Para essa tarefa os sacerdotes servem-se principalmente do conceito de pecado.

O grande estratagema do sacerdote ascético foi transformar o sentimento de culpa em pecado. Ele transforma o doente em pecador, por meio do entendimento de que o sofrimento é uma punição. Assim em vez de curar, o sacerdote combate o sofrimento sem combater a causa, aliás, quanto mais domestica, abranda, mais a doença se agrava. A religião acaba sendo então, um narcótico que alivia a dor provocada pela vida em sociedade que suspende os instintos, tornando a existência suportável.

Na ánsia de superar a fraqueza, superar a doença, as pessoas tentam se afirmar no rebanho, na coletividade. "Numa vontade de reciprocidade deste modo suscitada, vontade de formar rebanho, comunidade, cenáculo, a vontade de poder assim estimulada, mesmo num grau mínimo, deve por sua vez alcançar uma nova e mais plena irrupção: a formação do rebanho é avanço e vitória na luta contra a depressão".[43]

Ainda, o ideal ascético apresenta-se como possibilidade de preenchimento do vazio existencial. "O ideal ascético significa precisamente isto: que algo faltava, que uma monstruosa lacuna circundava o homem - ele não sabia justificar, explicar, afirmar a si mesmo, ele sofria do problema do seu sentido".[44] Esse ideal fornece um sentido e salva a vontade, mesmo que seja uma vontade de nada, um querer o nada. O nada querer seria insuportável.

No entanto não é apenas o ideal ascético que se coloca como detentor de verdades, o que consiste numa ilusão, como vimos. "Ambos, ciência e ideal ascético, acham-se no mesmo terreno - já o dei a entender - na mesma superestimação da verdade (mais exatamente: na mesma crença na inestimabilidade, incriticabilidade da verdade), e com isso são necessariamente aliados de modo que, a serem combatidos, só podemos combatê-los e questioná-los em conjunto".[45]

Com essas reflexões Nietzsche mostra os fundamentos não-morais da moral. Eles são resultado das relações de luta e de força. Não há moral como atributo da natureza humana, moralidade a priori. "Para os genealogistas da moral, nos moldes de Nietzsche, entretanto, ela se revela apenas como uma espécie de moral humana entre inúmeras outras possíveis, ou que deveriam sê-lo".[46]

Como Nietzsche percebeu a impossibilidade de fundamentação racional da moral e do conhecimento, buscou sua origem e a encontrou na vontade de poder. "A capacidade de conhecer e produzir valores deriva da vontade de potência. Na vida, a vontade de potência, de auto-afirmação se manifesta em todos seus movimentos instintivos. Quando o homem entra em contato com algo, ele o faz para conservar-se, e disso resulta a pluralidade de forças, perspectivas que lutam pelo poder".[47]

IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS

Educação é uma forma que a humanidade encontrou para transmitir suas verdades às gerações posteriores, suas perspectivas científicas que estão representadas em conhecimentos e também, suas perspectivas morais, valorativas. Justamente esses elementos, são os principais recursos e produtos do luta da espécie para afirmar sua vontade de poder. Também, é por meio deles que a educação promove o enquadramento dos indivíduos na civilização.

Com Nietzsche tem início a desconstrução, pela crítica à moralidade e ao conhecimento, dos nossos profundos hábitos mentais e pressupostos metafísicos. Ele põe em suspeita a tradição e a educação que pretendam ter universalidade ética e levar ao aperfeiçoamento moral. Assim, é questionada a possibilidade de construção de um sujeito autônomo no molde kantiano. "Nietzsche desmascara conceitos pedagógicos originários do contexto do idealismo alemão, tais como os de humanidade, autonomia, julgamento, razão, autenticidade como autotransparência e unidade de entendimento e de ação".[48]

Sendo o sujeito constituído por relações de poder e não por normas objetivas, não havendo um mundo em si, não havendo um absoluto (Deus) que garanta a universalidade; só o sujeito pode constituir-se e constituir o mundo como forma de autoconservação e expressão de sua vontade de poder. Isso tira o controle absoluto do processo educativo da mão do professor, bem como da garantia de sucesso da intervenção pedagógica, não há garantias de uma educação para o aperfeiçoamento e moralidade.

A destruição do primado moral e a transvaloração dos valores, deixa a tradição educativa sem solo. A autodeterminação individual é radicalizada, mas não mais conduzida pela idéia de aperfeiçoamento moral. Há uma autonomia inevitável em que cada sujeito luta pela sua afirmação. Como ninguém deu ao homem sua essência, cabe a ele fazer seu destino, ele é responsável pelo seu vir-a-ser.

A vontade de poder leva à transvaloração dos valores, ou seja, criação dos valores. Por isso a filosofia aqui posta nos provoca a criar, transformar, sermos os construtores da própria obra, e isso para a educação é importante, pois valoriza o desafio de cria e nos chama para essa responsabilidade. Larrosa coloca esse papel criativo como a arte de fazer com que cada um torne-se a si, desenvolva suas potencialidades. "Chega a ser o que és! Talvez a arte da educação não seja outrora senão a arte de fazer com que cada um torne-se em si mesmo, até sua própria altura, até o melhor de suas possibilidades. Algo, naturalmente, que não se pode fazer de modo técnico nem de modo massificado".[49]

O pensamento de Nietzsche é também para a educação uma provocação, por lançar suspeita nos fundamentos pedagógicos e um alerta, já que os sistemas de idéias não são neutros, são expressão de vontade de poder.

Por fim, abre espaço para pluralidade e aceitação das diferenças. Não há aluno ideal, nem todos se enquadram no modelo escolar moderno. Por isso temos que trabalhar com os alunos reais, aceitando as diferenças, o que abre espaço na escola para alunos que antes eram excluídos do processo educativo. Incluir sem negar as diferenças para que cada um possa tornar-se a si mesmo, é o desafio.

BIBLIOGRAFIA

AZEREDO, Vánia Dutra de. Nietzsche e a dissolução da Moral. São Paulo: Discurso Editorial e Editora UNIJUI, 2000.

GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Sonhos e pesadelos da Razão esclarecida: Nietzsche e a modernidade. Passo Fundo: Editora UPF, 2005.

HERMANN, Nadja. Pluralidade ética em Educação. Rio de Janeiro:  DP&A, 2001.

LARROSA, Jorge. Nietzsche & a Educação. Trad. Alfredo Veiga-Neto. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

MARQUES, António. Sujeito e perspectivismo: seleção de textos de Nietzsche sobre teoria do conhecimento. Lisboa: Dom Quixote, 1989.

MÜLLER-LAUTER, Wolfang. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. Trad. Oswaldo Giacoia Junior. São Paulo: Annablume, 1997.

NIETZSCHE, Friedrich. Obras incompletas. In. Os Pensadores. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad. Paulo César de Souza. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da tragédia: ou helenismo e pessimismo. Trad. J. Guinsburg. 2 ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

SAFRANSKI, Rüdigger. Nietzsche: biografia de uma tragédia. Trad. Lya Luft. 2ª ed. São Paulo: Geração Editorial, 2002.


[1] HERMANN, 2001, p. 90

[2] NIETZSCHE, 2003, p. 30

[3] HERMANN, 2001, p. 71

[4] Os termos "vontade de potência" e "vontade de poder" são usados para designar a mesma coisa. São duas variantes de traduções distoantes.

[5] MÜLLER-LAUTER, 1997, p. 54-55

[6] Além do bem e do mal, § 13

[7] NIETZSCHE, 1996, p. 222

[8] NIETZSCHE, 1996, p. 222

[9] Além do bem e do mal, § 36, p. 43

[10] Genealogia da moral, II, § 12

[11] MÜLLER-LAUTER, 1997, p. 74

[12] SAFRANSKI, 2002, p. 264

[13]MÜLLER-LAUTER, 1997, p.  75

[14] NIETZSCHE, 1996, p. 375

[15] MÜLLER-LAUTER, 1997, p.  85

[16]MÜLLER-LAUTER, 1997, p. 103

[17] SAFRANSKI, 2002,  p. 262-263

[18] MÜLLER-LAUTER, 1997, p. 131

[19] MARQUES, 1989, p. 65

[20] MARQUES, 1989,  p. 74

[21] NIETZSCHE,1996, p. 57

[22] MARQUES, 1989, p. 71

[23] MARQUES, 1989, p. 101

[24] MARQUES, 1989, p. 79

[25] MARQUES, 1989, p. 80

[26] MARQUES, 1989, p. 87

[27] MARQUES, 1989, p. 88

[28] NIETZSCHE, 1996,  p. 53-54

[29] HERMANN, 2001, p. 78

[30] MÜLLER-LAUTER, 1997,  p. 132

[31] Genealogia da Moral, I, § 2

[32] Genealogia da Moral, I, § 7

[33]Genealogia da Moral, I, § 10

[34]Genealogia da Moral, I, § 11

[35] Genealogia da Moral, I, § 15

[36] AZEREDO, 2000, p. 95

[37] Genealogia da Moral, II, § 6

[38] Genealogia da Moral, II, § 19

[39]Genealogia da Moral, III, § 11

[40]Genealogia da Moral, III, § 13

[41]Genealogia da Moral, III, § 15

[42]Genealogia da Moral, III, § 15

[43]Genealogia da Moral, III, § 18

[44]Genealogia da Moral, III, § 28

[45]Genealogia da Moral, III, § 25

[46] GIACOIA-JUNIOR, 2005, p. 38

[47] HERMANN, 2001, p. 71

[48] HERMANN, 2001, p. 80

[49] Larrosa, 2002, p. 45

 

 

Autor:

Vicente Zatti
vicentezatti[arroba]yahoo.com.br



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