O apelo à construção do socialismo do século XXI, que Chávez formulou, repôs em cena os debates sobre caminhos, tempos e alianças para forjar uma sociedade não capitalista. Esta discussão é retomada quando o grosso das forças progressistas já se acostumara a omitir quaisquer referências ao socialismo. A recuperação da credibilidade popular neste projecto não é ainda visível, mas a meta da emancipação é de novo debatida nas organizações populares que procuram um norte estratégico para a luta dos oprimidos. Qual é o significado actual de uma proposta socialista?
A América Latina converteu-se num cenário privilegiado para este debate por várias razões. Em primeiro lugar, a região é o principal foco de resistência internacional ao imperialismo e ao neoliberalismo. Várias sublevações populares levaram nos últimos anos à queda de presidentes neoliberais (Bolívia, Equador e Argentina) e consolidaram uma poderosa presença dos movimentos sociais.
Num quadro de lutas - que inclui reveses ou repressão (Peru, Colômbia) e também refluxo ou decepção (Brasil, Uruguai) - novos contingentes se juntaram ao protesto popular. Estes sectores contribuem com uma renovada base juvenil (Chile) e modalidades muito combativas de auto-organização (Comuna de Oaxaca no México). O socialismo oferece uma perspectiva estratégica para estas acções de massas e pode vir a transformar-se num tema de reflexão renovada.
Em segundo lugar, o socialismo começa a gozar de uma certa popularidade na Venezuela. Esta sua difusão confirma uma proximidade ideológica do processo bolivariano relativamente à esquerda que esteve envolvida em outras experiências nacionalistas. Na época da União Soviética, alguns governantes do Terceiro Mundo assumiam a identidade socialista com fins geopolíticos (contrariar as pressões norte-americanas) ou económicos (obter subvenções do gigante russo). Como essa vantagem já desapareceu, o resgate actual do projecto tem conotações mais genuínas.
O ressurgimento do socialismo é constatável também na Bolívia, nos propósitos de vários dirigentes do Estado, e está vivo em Cuba, ao cabo de 45 anos de embargos, sabotagens e agressões imperialistas. Se o desmoronamento que estilhaçou a URSS e a Europa Oriental se houvesse estendido à Ilha, ninguém poderia postular actualmente um horizonte anticapitalista para a América Latina. O impacto político de tal regressão teria sido devastador.
O socialismo constitui, em terceiro lugar, uma bandeira que a oposição de esquerda retomou contra os presidentes sócio-liberais, que abandonaram qualquer alusão ao tema para congraçar-se com os capitalistas. Bachelet, Lula e Tabaré Vázquez desfizeram-se nos seus discursos de todas as referências ao socialismo, renunciaram a introduzir reformas sociais e colocaram-se num terreno oposto ao das às maiorias populares. Bachelet nem sequer recorda o nome do seu partido quando preside à Concertação que recicla o modelo neoliberal. Lula esqueceu-se do seu namorico de juventude com o socialismo, para privilegiar os banqueiros, e Tabaré repete este mesmo padrão quando tenteia os acordos de livre comércio com os Estados Unidos. Nestes três países o socialismo é um estandarte contra essa deserção, que reaparece num quadro regional muito diferente daquele que foi o predominante nos anos 90.
A etapa de uniformidade direitista findou e as personagens mais emblemáticas do neoliberalismo extremo saíram da cena. O militarismo golpista perdeu viabilidade e a mobilização popular conquistou vastos espaços democráticos. Assim, governantes conservadores coexistem com presidentes de centro-esquerda e com governos nacionalistas radicais.
Na América Latina, em quarto lugar, alastra uma mudança no contexto económico que favorece o debate em torno de alternativas populares. Em vários sectores das classes dominantes tem vindo a despontar um movimento de opinião neo-desenvolvimentista em desfavor da ortodoxia neoliberal, depois de um período traumático de concorrência extra-regional, desnacionalização do aparelho produtivo e perda de competitividade internacional.
A viragem em curso é "neo" e não plenamente desenvolvimentista porque preserva a restrição monetária, o ajuste fiscal, a prioridade às exportações e a concentração do rendimento. Apenas defende o incremento dos subsídios estatais à indústria para reverter as consequências do livre-cámbio extremo. A vulnerabilidade financeira da região e a ligação a um padrão de crescimento muito dependente dos preços das matérias-primas induzem ao ensaio desta mudança. Contudo este movimento de opinião tem vindo a afectar todos os dogmas económicos que dominaram na década passada e abre espaços para contrapor alternativas socialistas ao modelo neo-desenvolvimentista.
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