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Parte mais fraca. Relação entre editoras e compositores deve ser repensada (página 2)

Daniel Campello Queiroz

 Retenção ilegal do repertório

 O fato é que, como detém o controle da utilização econômica da obra, a editora musical passa a poder autorizá-la a seu bel prazer.

 Assim, as empresas fixam preços altíssimos para a utilização das composições em gravações e sincronizações; o que, muitas vezes, impede o uso da obra, ainda que o compositor tenha interesse pessoal envolvido.

 Não raro os compositores pretenderiam cobrar pouco pelo uso de sua obra, uma vez que pode ser importante para sua carreira determinada utilização em um fonograma; porém, sua vontade nestes casos nem sequer é ouvida pelas editoras.

 É de se ressaltar que esta atitude das editoras se dá em franco desrespeito ao art. 60, da LDA (Lei 9.610/98), que positiva a regra segundo a qual às editoras "compete fixar o preço da venda, sem, todavia, poder elevá-lo a ponto de embaraçar a circulação da obra."(g.n.)

 Exemplo da conduta de retenção ilegal do repertório dos compositores foi o ocorrido, em finais de 2005, com o compositor Zé Ramalho.

 A Editora multinacional EMI, em virtude de interesses próprios, e alheios ao conhecimento do autor, fez valer o autoritarismo fruto de seu poder econômico e impediu que o intérprete Zé Ramalho gravasse o seu próprio repertório, não apresentando qualquer razão plausível para tal.

 A pretensão da EMI de barrar o lançamento do CD pela gravadora BMG fundamentava-se no fato de que, na opinião da empresa, como editora, poderia negar o uso de qualquer obra sob o seu controle, mesmo quando o intérprete seja o próprio compositor.

O caso foi parar no Judiciário, e a 13ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro revogou liminar concedida à editora, permitindo ao compositor que lançasse o CD com suas composições, interpretadas pelo próprio.

 Trata-se de pequena demonstração pública do quão negligentes podem ser as editoras musicais, notadamente aquelas detentoras de grande poder econômico advindo do fato de fazerem parte de grupos multinacionais.

 O truque da concessão do adiantamento ou advance

 Porém, a voracidade pelo poder econômico e pelo lucro não pára por aí; há também a necessidade das editoras de garantirem perdas mínimas decorrentes dos contratos assinados com os autores.

 Para tanto, são incluídas nesses a cláusula que contém a maior de todas as artimanhas: o truque da concessão do adiantamento, ou advance.

 Utilizando como chamariz o adiantamento de uma boa quantia em dinheiro, referente aos valores a que os compositores fariam jus no futuro com a inclusão de suas obras em faixas gravadas, as editoras se aproveitam da, em regra, periclitante situação financeira dos autores para os persuadirem a assinar os contratos.

 O fato é que a indústria editorial da música brasileira se apóia em práticas de engenharia contábil, que não resistiriam a uma apreciação judicial mais aprofundada.

 Isto se dá a partir da transformação do valor concedido como adiantamento em "unidades vendidas", também denominadas de "faixas" – que representam a cessão dos direitos autorais fonomecânicos que reproduzam obras do compositor.

 Com esta transformação, cria-se uma espécie de "correção monetária paralela", uma vez que o valor das "faixas" é corrigido ano a ano.

 Cria-se na editora, desta forma, um saldo devedor em nome do compositor.

 Saldo este que é descontado à medida que as obras do autor são utilizadas em faixas de CDs, em filmes e executadas publicamente.

 Porém, este saldo devedor não permanece inalterado. Com sua transformação em "faixas", o mesmo vai crescendo de acordo com o aumento, formulado pelas editoras, no valor das faixas.

 A título de exemplo, a editora que concede 20.000 (vinte mil) reais de adiantamento ao compositor, em verdade está adiantando ao mesmo o valor corresponde a 200.000 (duzentas mil) faixas que incluam suas obras, isto é, duzentas mil utilizações econômicas dessas obras.

 Disso resulta que a editora adiantou ao compositor 10 centavos de real por cada obra sua incluída em uma faixa gravada.

 Como apenas o valor das faixas é corrigido, o compositor, que na data da assinatura do contrato recebeu 20.000 (vinte mil) reais de adiantamento, vê o seu saldo devedor aumentar anualmente, uma vez que o valor de cada faixa gravada é alterado, por meio de uma tabela de correção de preços formulada pela associação que representa as editoras, a Abem.

 Ocorre que, para que o saldo devedor seja completamente zerado na editora, as obras do compositor têm que alcançar o número de utilizações em "faixas" estabelecido previamente pela mesma, em determinado prazo.

 Do contrário, ocorre outro absurdo estipulado em contrato: a prorrogação automática do contrato em caso de haver "saldo devedor".

 Simples concluir que as editoras, com vistas a evitarem perdas, exageram sobremaneira nas previsões, pré-estabelecendo patamares altíssimos para as vendas das obras dos contratados.

 Resultado: terminado o prazo estipulado em contrato, que em regra é de três anos, é feito um novo cálculo do saldo devedor do compositor, que na maioria dos casos encontra resultado positivo.

 Assim, se foi estipulada pela editora a inclusão de obras do autor em 200.000 (duzentas mil) faixas vendidas – como em nosso exemplo –, e as obras do autor foram utilizadas em 100.000 (cem mil) faixas, o contrato é automaticamente prorrogado.

 Porém, o saldo devedor, que deveria ser de 10.000 (dez mil) reais – resultado da multiplicação das 100.000 (cem mil) faixas pelos 10 centavos de real equivalente a cada uma –, é recalculado com base no novo valor "faixa.

 Considerando-se que, por hipótese, a correção no valor da faixa, no período de 3 anos, tenha sido de 50%, o preço de cada faixa passa a ser de 15 quinze centavos de real.

Dessa maneira, o compositor, que à época da assinatura do contrato, recebeu 20.000 (vinte mil) reais de advance da editora, mesmo tendo tido suas composições incluídas em 100.000 (cem mil) faixas – o que é um resultado bastante razoável, tendo em vista a crise do mercado fonográfico – passa a ter um saldo devedor na editora no valor de 15.000 (quinze mil) reais.

 Por mais complicado, absurdo e revoltante que possa parecer o exemplo utilizado, o mesmo expressa precisamente o que se dá na prática.

 Além de ter que se desdobrar para divulgar suas obras – visto que as editoras simplesmente, como exposto, "sentam em cima" de seu repertório e aguardam que alguém venha procurá-las para conceder as autorizações –, os compositores precisam também correr contra o tempo, uma vez que sua "dívida" cresce anualmente, em patamares só comparáveis aos juros cobrados por empréstimos bancários.

 Dessa forma, a maioria dos contratos, mesmo que já expirados cronologicamente, continuam em vigor, sem qualquer amparo legal, de modo que os autores ficam inteira e eternamente reféns da empresa editorial.

 Ao mesmo restam duas opções para reconquistar sua liberdade: ceder novas obras à editora, e aguardar que as mesmas alcancem os altíssimos patamares de vendagem; ou devolver, em dinheiro, o valor do saldo devedor, já corrigido.

 Trata-se de um retorno à época da escravidão, e ao instituto da compra da carta de alforria.

 Assim é que o compositor, que na data da assinatura do contrato havia ficado satisfeito com a possibilidade de saldar suas dívidas, e de quem sabe adquirir um automóvel popular do ano, acaba por ser obrigado a entregar novas criações à editora, e, o que é mais absurdo, se torna devedor de valores altíssimos, em virtude do esquema de correção do valor individual das faixas.

A Jurisprudência

 Em que pese se tratar de uma relação que enseja diversas demandas judiciais, notadamente em virtude das arbitrariedades cometidas pelas editoras musicais, sobretudo pelas majors, as decisões judiciais acerca do tema ainda não permitem sustentar a tese de que as ilegalidades cometidas findarão quando do ajuizamento de ações com vistas a cessá-las.

No entanto, há um acórdão, proferido pela 10ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que representa verdadeiro alento aos compositores.

A decisão foi proferida nos autos de Recurso de Apelação, em ação anulatória de cláusula contratual movida pelo compositor Dudu Falcão em face da editora BMG Music Publishing.

O objeto do pedido do autor foi a anulação da cláusula que determina a prorrogação indefinida do contrato firmado até a recuperação total dos valores concedidos como adiantamento ao compositor; precisamente a que analisamos.

Inconformado com a necessidade de entregar novas obras à Editora para se ver livre da exclusividade avençada, o compositor ajuizou a ação anulatória, a qual teve o pedido deferido pelo Juízo.

A Editora interpôs a Apelação, e a decisão, que vale ser transcrita, ratificou e ampliou a sentença de primeiro grau, senão vejamos:

 "Com efeito, a previsão contratual da prorrogação automática do contrato, impondo ao Autor uma obrigação continuada de resgatar os adiantamentos concedidos através de empréstimos, por meio de novas obras, significa uma forma de aprisionamento da parte mais fraca da relação, o que não condiz com o princípio da livre vontade de contratar.(...)

Não se trata de excluir os efeitos próprios do período de (...) comercialização das obras cedidas. O que não de admite é conceder-lhe, de forma definitiva, a exclusividade dessas vantagens, vedando ao autor o direito de explorá-las por si mesmo, após a rescisão do contrato.

Ora se o prazo da cessão foi de um ano e rescindido o contrato com sua expiração, logicamente o bem do cedente retorna ao seu patrimônio, nos termos do art. 49, III, da Lei 9.610/98 (APELAÇÃO CÍVEL 2005.001.42174 – Trecho do Voto do Desembargador Relator José Geraldo Antonio)" (g.n.)

 O acórdão, da lavra do desembargador relator José Geraldo Antonio, 11ª Câmara Cível, assevera a patente ilegalidade da atitude das editoras em exigir dos compositores o resgate de valores concedidos a título de adiantamento, com o pagamento do mesmo com novas obras.

 Ainda, determina que a propriedade definitiva das obras pelas editoras, nas palavras do ilustre desembargador, é também inaceitável, de modo que não se admite "conceder-lhe, de forma definitiva, a exclusividade dessas vantagens, vedando ao autor o direito de explorá-las por si mesmo, após a rescisão do contrato."

Conclusão

 Resta patentemente demonstrado, portanto, que a relação jurídico-comercial ditada pelas editoras musicais aos compositores deve ser repensada.

 De fato, reavaliar esta relação não só passa pela necessidade de os compositores contarem com a possibilidade de serem melhor assessorados no momento da assinatura dos contratos; mas, também, de o Poder Judiciário atuar, no momento da solução aos litígios, de maneira intolerante em relação às barbáries cometidas pelas editoras.

 É de se comemorar o fato de que, nos dois casos apresentados – dos compositores Zé Ramalho e Dudu Falcão – o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro tenha se posicionado não do lado destes, mas em defesa do bom direito que buscavam ver concretizados por meio daquelas demandas.

 Como muito bem salientou o desembargador José Geraldo Antonio, o compositor é a parte mais fraca da relação; as soluções dadas às lides deduzidas em juízo não podem ignorar este fato.

 Além disso, faz-se necessário refundar as premissas do debate acerca dos direitos autorais, para que as discussões sobre o tema passem a estar permeadas pela necessidade de se garantir ao compositor meios de viver de seu trabalho.

 

Daniel Campello Queiroz

danielcampello[arroba]hotmail.com

[1] Disponível em: http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/lemonde/2007/09/29/ult580u2688.jhtm


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