Há um desassossego no ar. Temos a sensação de estar
na orla do tempo, entre um presente quase a terminar e um futuro que ainda
não nasceu.
O desassossego resulta de uma experiência paradoxal: a vivência
simultânea de excessos de determinismo e de excessos de indeterminismo.
Os primeiros residem na aceleração da rotina. As continuidades
acumulam-se, a repetição acelera-se. A vivência da vertigem
coexiste com a de bloqueamento. A vertigem da aceleração é
também uma estagnação vertiginosa. Os excessos do indeterminismo
residem na desestabilização das expectativas. A eventualidade
de catástrofes pessoais e coletivas parece cada vez mais provável.
A ocorrência de rupturas e de descontinuidades na vida e nos projectos
de vida é o correlato da experiência de acumulação
de riscos inseguráveis. A coexistência desses excessos confere
ao nosso tempo um perfil especial, o tempo caótico onde ordem e desordem
se misturam em combinações turbulentas. Os dois excessos suscitam
polarizações extremas que, paradoxalmente, se tocam. As rupturas
e as descontinuidades, de tão freqüentes, tornam-se rotina e
a rotina, por sua vez, torna-se catástrofe.
(Boaventura de Sousa Santos)
Quando a sociedade moderna percebe que seus padrões coletivos de vida, de progresso, de controlabilidade de catástrofes naturais e de exploração da natureza são drasticamente alterados pelo conhecimento de que a ocorrência interligada de processos de desenvolvimento como a globalização, a individualização, a revolução de gênero, o desemprego e, principalmente, a manipulação do superdesenvolvido processo tecnológico emanava "riscos" de produção de efeitos colaterais que, se concretizados, poderiam dar causa a catástrofes de globais, como incidentes nucleares, buraco na camada de ozônio, poluição das águas e do ar por agentes químicos, quedas de aeronaves, guerras químicas, biológicas ou atômicas e etc., seus institutos fundamentais e suas instituições de controle social, além de toda a coletividade que a integra, são postos em movimento no sentido de se antever e, assim, conter toda e qualquer conduta, individual ou coletiva, que traga em seu contexto hipotético a idéia de um "risco".
O Direito Penal, tradicionalmente utilizado como meio de intervenção estatal na repressão de condutas socialmente indesejadas, passa a ser um dos mecanismos mais utilizado pelo Estado na luta pela contenção preventiva de condutas hipoteticamente arriscadas. Seu campo de atuação é, portanto, largamente expandido, ou seja, passa assim o Direito Penal a intervir onde até então lhe era estranho, como a economia, o meio ambiente, as relações de consumo, a manipulação genética, etc.
No entanto, ao se expandir para cumprir os ideais prevencionistas, norteados pelo ideal dos riscos, o Direito Penal viu-se diante de dilemas estruturais internos, uma vez que esses novos campos demandavam um atuar completamente distinto de seus mecanismos. Deste modo, o arcabouço principiológico fundamental do Direito Penal tradicional passou a ser redesenhado para que surgisse um "Direito Penal do Risco", um idéia de Direito Penal eficiente no combate preventivo aos novos riscos, altamente punitivista e flexionador, por vezes até abolicionista, dos princípios e pressupostos de garantias de liberdade fundamentais do que se pode chamar "Direito Penal Clássico" (uma contraposição à concepção ideal do "Direito Penal de riscos").
Esta nova concepção de "Direito Penal do Risco" gerou,
paradoxalmente, pontos conflitantes na estrutura fundamental do Direito Penal
contemporâneo. Pontos estes que o afetam de maneira tal que se chega a
questionar a legitimidade, a necessidade e a finalidade dessa atuação
expansionista. Isto, além de causar dúvidas sobre quais os rumos
que serão tomados pelo Direito Penal contemporâneo em um futuro
próximo. Se de um lado, a realidade contemporânea carece dessa
atuação preventiva penal, pois enfrenta processos de transformação
social que refletem, dentre outros efeitos, perplexidade, desconcerto, dúvida
e espanto geral, portanto, carente de mecanismos eficientes de atuação
em face da nova realidade que se insurge, por outro, a reformulação
do Direito Penal, nos moldes como se apresenta hodiernamente, causa também
perplexidade, pois princípios e garantias fundamentais, que funcionam
como obstáculos para a intervenção estatal penal na esfera
de liberdade individual, passam a ser incondicionalmente flexionadas e, muitas
vezes, até desprezados pela busca de uma aludida eficiência no
combate aos "riscos". Uma busca que, contudo, não consegue
alcançar a almejada eficácia e, assim, pode vir a transformar
o Direito Penal em um mecanismo puramente "simbólico".
Vale, portanto, uma primeira aproximação ao problema. Mas esta,
destarte, se dará aqui apenas de modo expositivo e limitado, ou seja,
apenas de modo introdutório (o objetivo de presente escrito).
O assim chamado por Winfried Hassemer "Direito Penal clássico"(1) remota seus pilares fundamentais nos idos do século XVIII, apogeu dos ideais iluministas, momento em que homens como Montesquieu, Rousseau e Voltaire, dentre outros de não menor expressão, exercem elevada influência nas reformas do então vigente Direito Penal absolutista. Reclamava-se independência do Poder Judiciário, liberdade política, igualdade entre os cidadãos e uma completa renovação dos costumes judiciários e das práticas dos Tribunais.
Neste clima, no ano de 1764, o Marques de Beccaria publica em Milão o opúsculo Dei Delitti e delle pene, obra que assenta as primeiras bases fundamentais (e científicas) do Direito Penal. Beccaria parte da idéia do contrato social rousseauniano e afirma princípios indissolúveis para que se assegurasse o respeito à personalidade humana. Assim, como forma de oposição à arbitrariedade dos Tribunais absolutistas, defendia a conveniência de leis penais claras e precisas, que sequer o julgador as poderia interpretar. Combatia a pena de morte, a tortura e o processo inquisitório. Pugnava pela aplicação de penas certas, moderadas e proporcionais ao dano causado pelo fato criminoso. Afirmava o fim exclusivamente preventivo da pena.
Mais tarde, a influência da obra garantista de Beccaria na revolução francesa, faz surgir a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e os Códigos Penais de 1791 e 1810. Estes Códigos, desde então, passam a exercer influência nas legislações penais de inúmeros países(2).
O arcabouço axiológico jurídico-penal se firma então em princípios e pressupostos como a legalidade, a razoabilidade, a proporcionalidade, a necessidade, a subsidiariedade, a fragmentariedade, a ultima ratio, a lesividade, a ofensividade, a dignidade, a causalidade, a culpabilidade, a pessoalidade, o bem jurídico, tipicidade, dentre outros. E a partir de então, a dogmática inicia o aprimoramento sistemático da Ciência Penal. No Brasil, o Direito Penal vivencia a influência da escola tecnicista italiana, notadamente de Arturo Rocco, e, em 1940, positiva o Código Penal.
Na Alemanha e em grande parte da Europa continental é vivenciado o longo embate científico travado entre Causalistas e Finalistas. Buscava-se comprovar que a sistemática de sua respectiva teoria se sobressairia frente à outra, porque melhor esclareceria as problemáticas internas da Ciência Penal. Neste cenário de discussões de problemas sistemáticos, mormente, internos da Ciência Penal, a Dogmática penal chega aos anos 60, quando então começa a se ocupar da Política Criminal, todavia, ainda de maneira singela. E assim, voltada quase que exclusivamente a problemas internos de sua sistemática, chega a Ciência jurídico-penal aos anos 80.
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